[sc:review nota=4]

Não sei se o único tema desse anime (ou mesmo o principal) será o relacionamento amoroso entre mulheres (yuri), mas apesar do uso abundante de metáforas visuais não há nada oculto aqui. Ao contrário de Utena, outra obra famosa do mesmo diretor Ikuhara e onde as questões de papel de gênero e relacionamento entre mulheres eram centrais, em Yurikuma Arashi os personagens falam e agem naturalmente de acordo com suas escolhas homoafetivas. E falando em homoafetividade, não fosse por um detalhe crucial (sobre o qual falarei adiante), pelo menos esse primeiro episódio poderia tanto representar relacionamentos entre mulheres, como ele faz, quanto entre homens. Se essa escolha é apenas estética ou de conteúdo ainda está para ser revelado.

Uma base simples e ao mesmo tempo absurda: uma chuva de meteoros transformou todos os ursos do planeta em comedores de gente, e para se livrar deles e seus ataques a humanidade construiu uma imensa muralha. Isso poderia ser a semente de qualquer tipo de história, e a história em questão traz um casal de protagonistas humanas, estudantes colegiais e garotas que se amam, e um casal de protagonistas ursas, que atravessam a muralha disfarçadas de humanas para comer outros humanos e entram na mesma escola das protagonistas humanas. E que também se amam. Não falta amor nesse anime.

As protagonistas humanas são Kureha Tsubaki e Sumiko Izumino. Kureha tem aparência mais forte, mais decidida, enquanto Sumiko parece ser mais frágil e delicada, e embora não pareçam se envergonhar nem pareçam sentir seu relacionamento particularmente ameaçado, só se encontram em lugares onde podem ficar sozinhas, quase como se quisessem esconder o que são. Kureha dá a entender em dado momento do anime que elas sequer chegaram a se beijar ainda. Já as ursas são Yurishiro Ginko e Yurigazaki Ruru (muitas garotas no anime trazem “Yuri” no nome), entraram na escola disfarçadas de humanas e pretendem comer humanos. Elas têm seus olhos voltados particularmente para o casal Kureha e Sumiko. Ginko tem comportamento mais severo, quase fria, quase cruel, enquanto Ruru é bastante extrovertida. Elas parecem ter pouca ou nenhuma preocupação que o resto do mundo saiba sobre seu relacionamento. Essas são as diferenças entre os dois casais da história, e considero importante tê-las em mente.

O anime é carregado na parte simbólica. Não para ocultar ou cifrar o que está acontecendo, mas por opção estética, provavelmente para dar um ar surreal à história (e para não virar um hentai, certamente). O mundo parece ser habitado apenas por mulheres, e lírios são um elemento chave nesse episódio (e provavelmente serão durante todo o anime). O lírio representa a pureza, a virgindade, mas também a tentação, o amor proibido e a porta para o inferno. Quando Kureha e Sumiko estão fazendo juras de amor enquanto admiram os lírios elas na verdade, duas garotas ainda puras, estão à beira de ceder à tentação. O corte dos lírios por uma pessoa misteriosa (talvez uma das ursas, mas temo que esse possa não ser o caso) é um presságio para o desaparecimento de Sumiko e a consequente separação entre as garotas. Por ser uma flor fálica, seu corte meticuloso (ao invés do simples pisoteamento do jardim, que seria mais normal) representa também a castração. Em um dado momento as ursas lambem a seiva de um lírio suspenso sobre uma Kureha nua, e acho que o significado simbólico disso é evidente, ainda mais considerando que elas fazem isso após um julgamento onde elas são inocentadas com as palavras “Yuri aprovado” e recebem autorização para comer Kureha. O verbo comer aliás é usado o tempo todo pelas ursas sem nem tentar esconder seu significado metafórico vulgar. Até mesmo o marco de início do “levante” dos ursos pode ter um significado simbólico: é possível que a chuva de meteoros seja apenas uma explicação simples para um evento que começou do nada, mas em um anime cheio de simbolismos não dá para ignorar a Hipótese da Panspermia, segundo a qual a vida veio do espaço semeada por meteoros e cometas. A ser assim, uma chuva de meteoros pode ser enxergada como uma inseminação do próprio planeta. Há mais simbolismos, mas falo sobre eles em outra ocasião.

A inseminação aqui é o primeiro elemento efetivamente feminino. Por todo o resto, poderia o anime tratar tanto de homoafetividade feminina quanto masculina. Claro, provavelmente seriam necessárias outras escolhas estéticas e talvez simbólicas para operar essa mudança, mas ela seria possível sem alterar o enredo substancialmente. Não sei que peso terá a chuva de meteoros no seguimento da história, se for mesmo só um elemento aleatório para começar a história, então esse elemento feminino apontado aqui torna-se irrelevante. Mas há um elemento ativo da história que não poderia ser alterado sem mudar o próprio significado dela, e que certamente continuará sendo importante. Como eu já disse, praticamente há apenas mulheres no anime. Só aparecem homens em um lugar: um tribunal. O tribubal que julgou as amantes ursas e decidiu que elas eram inocentes e podiam comer a Kureha. Um tribunal evidentemente é uma instituição de poder, mesmo um tribunal surreal como o apresentado em Yurikuma Arashi. São homens que julgam o relacionamento de mulheres, e se fosse o contrário, mulheres julgando o relacionamento de homens, desapareceria completamente a crítica social embutida nessa cena.

Mas de longe o elemento que mais me confunde é o Muro da Extinção. Esse é o nome do muro erigido pela humanidade para isolar os ursos do lado de fora. Ele provavelmente representa um hímen, mas parece haver mais. Ele é citado no tribunal, ao mesmo tempo em que falam em uma grande extinção que estaria vindo para acabar com toda a vida no planeta. Mas esse futuro escatológico não é tratado como uma tragédia, ao invés, é comparado ao nirvana, o estado final de todo ser vivo após atingir o mais alto grau de evolução, onde ele deixa de existir como indivíduo e tem sua essência incorporada ao próprio ciclo da vida em si. Do pó viemos, e ao pó retornamos (e o grande oceano de gelatina em Evangelion onde todas as formas de vida são dissolvidas não é um despropósito ou algo que tenha sido inventado pela cabeça doentia do Hideaki Anno). Mas o que isso tudo quer dizer para a história? Escrevi um parágrafo inteiro sobre isso e poderia continuar escrevendo mais, mas não consigo vincular esse elemento ao resto da história. Talvez, e isso é um chute às cegas, ao construir a muralha a humanidade negou a inseminação cósmica (ao fazer isso para se livrar de seu efeito visível, os ataques dos ursos) e condenou o planeta. Isso ainda explica pouco, mas pelo menos seria uma ligação entre os ursos e o nirvana. Supondo que a muralha não seja apenas um hímen e todo o resto não seja apenas despiste.

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