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Se você tem poder suficiente para impedir algo que é errado (por exemplo, uma luta) você deve fazê-lo? Segundo a escola filosófica do Tio Ben (“grandes poderes trazem grandes responsabilidades”) a resposta é um inequívoco “sim”. O mundo real, contudo, teima em ser mais complicado do que isso, principalmente se outros elementos forem adicionados. Há vida após a morte? Somos julgados pelo que fazemos em vida? Religião complica sobremaneira esse tipo de decisão. Mas mesmo sem religião envolvida há uma penca de situações e considerações que tornam essa decisão não tão simples quanto parece.

Maria odeia guerra, batalhas, lutas, enfim, ela é uma bruxa pacifista em plena Idade Média. Por isso ela impede cada batalha que pode. O resultado é frustrante: os exércitos apenas buscam novos campos de batalha e, com assustadora frequência, acabam atacando povoados pacíficos. Mas são os soldados que estão errados, Maria está certa! Não é? Sim e não. Principalmente quando atacam aldeões indefesos, claro que quem busca a guerra é que está errado. Mas Maria não está resolvendo o problema também, está apenas o adiando. Não é como se um dia alguém tivesse ficado entediado e para se animar um pouco tenha decidido partir para a guerra. A guerra é uma solução frequentemente errada para uma série de problemas graves e complexos, e apenas evitando as batalhas Maria não está cuidando desses problemas, que continuarão existindo.

Mas se ela tiver conhecimento desses problemas anteriores à guerra, poderia ela resolvê-los? Como uma bruxa ela poderia fazer isso? Ela poderia usar seus dragões e outros pokémons para coagir nobres e reis a pararem totalmente a guerra e resolver seus problemas de outra forma. Supondo que o Céu e outras bruxas não a impeçam e que ela tenha poder suficiente, ela poderia impôr a paz à força. Em escala, já é isso que ela vem fazendo no campo de batalha mesmo. Pergunta: no momento que fizesse isso, em que ela seria diferente de qualquer outro rei mesquinho que comanda seu reino com mãos de ferro? Claro, ninguém morre em batalha. Claro, todos podem ser felizes camponeses, artesãos ou comerciantes. Mas nada disso muda o caráter tirânico das ações de Maria.

Farei uma digressão agora. Você certamente conhece o Superman, aquele super-herói com tantos poderes que sua própria editora o compara a um deus com razoável frequência. Não sei se Maria consegue, mas o Superman, se quiser, consegue governar o mundo inteiro. Não vou aqui entrar nas minudências do universo DC, sobre como outros heróis poderiam tentar se opôr e essas coisas, porque aí sim estaria me desviando demais do assunto. O Superman é um defensor da justiça e tem poder suficiente para acabar com toda a injustiça do mundo (ou pelo menos tentar e chegar bem perto de conseguir) se assim desejar. Como um super-herói americano, contudo, ele sabe que isso viria ao custo de pisotear as liberdades individuais das pessoas, e sua moral não pode permitir que faça isso. Algumas histórias bem interessantes do Superman tratam justamente da hipótese em que ele não possui ou abandona essa moral e decide impôr a justiça ao mundo. Entre a Foice e o Martelo é a história de um Superman que não caiu nos EUA, mas na URSS, foi usado como propaganda do regime, ascendeu nas fileiras do partido e se tornou o comandante soviético supremo após a morte de Stálin. Então ele decide conquistar o mundo inteiro com seu poder sozinho, sem derramar uma única gota de sangue (o tanto quanto possível, pelo menos), e transforma quase o planeta inteiro (exceto alguns estados americanos, lógico) em uma distopia de ordem e paz artificiais. Em jogo e HQ mais recente, Injustiça conta a história de um Superman que amargurado após ser enganado pelo Coringa a matar Lois (grávida de seu filho) e destruir Metrópolis com uma bomba atômica, abandona seus antigos valores e decide dominar o mundo para impôr a justiça.

Esse é um tema popular em ficção (e infelizmente, em algumas ideologias totalitárias reais também, mas esse blog não é lugar para falar delas). Em Psycho-Pass (a primeira temporada, por favor desconsidere a segunda) o ser todo-poderoso que impõe a paz e a ordem a toda a sociedade é um supercomputador. E é um tema caro à religião também: se Deus existe, por que permite que haja injustiça e sofrimento? Já chego lá. É fácil pensar que tudo bem, deu errado com o Superman e com o Sistema Sybil, mas poderia dar certo com Maria, não poderia? Infelizmente a resposta é não. Pode Maria garantir que todas as pessoas estarão completamente felizes e realizadas o tempo todo? Mesmo que ela possa, como ela irá fazer isso? Depois de acabar com as guerras, irá acabar com os roubos? E então com pequenas infrações? Com discussões em bares? Problemas familiares? Tendo poder suficiente ela pode ir até as últimas consequências e a sociedade sob seu total controle seria menos que um aquário de formigas, com cada circunstância milimetricamente calculada. É óbvio que ir até as últimas consequências, então, não importa quão bem intencionada Maria possa estar, é errado. Ela tem que parar em algum ponto antes disso então, certo? Em qualquer ponto anterior que ela parar será como é hoje: ela impede a consequência, mas haverá uma causa anterior que não estará sob o controle dela. Não estou aqui defendendo a futilidade da justiça, claro. Se ela pode impedir um assassinato, acho que ela deve impedi-lo, sim! Mas ela não pode ceder à tentação de se transformar em polícia, juíza, promotora e executora. Em uma sociedade essas funções são todas cumpridas por pessoas diferentes e isso não é à toa. O meu veredito é que ela deve sim tentar impedir ao máximo que civis e aldeões sofram com a guerra, mas deve se afastar o tanto quanto possível da guerra em si.

Então temos a dimensão divina de Junketsu no Maria. Se Deus existe, por que permite que haja injustiça e sofrimento? No mundo real essa questão já foi respondida muitas vezes. A resposta é quase sempre nessas linhas: deus vai julgar a todos após a morte, a injustiça e o sofrimento que eventualmente tenham sofrido não significará nada perto do futuro no paraíso que a pessoa terá se for fiel ou uma boa pessoa ou ambos. Em religiões que assumem a existência de reencarnação, normalmente o que alguém sofre é consequência de atos ruins em vidas passadas e se ela for uma boa pessoa nessa vida, na próxima sofrerá menos. Em Junketsu no Maria deus existe, e tudo indica, é Cernuno (talvez ele seja só um entre vários), e os questionamentos que ele faz à Maria nesse episódio mais uma vez indicam a futilidade das ações da bruxa. Ela salva uma pessoa aqui, mas outra morre noutro lugar. E como eu tratei extensamente, mesmo se ela pudesse impedir todas as mortes, ela estaria errada da mesma forma. Ainda mais porque, na certeza de que há vida após a morte, as ações de Maria apenas impedem que a verdadeira natureza dos homens venha à tona para que eles possam ser julgados (isso me lembra Death Parade, bom anime, você devia assistir). De imediato, se ela impede uma batalha está evitando que soldados morram, não apenas pobres coitados como o pai de Ann, mas também mercenários sedentos de sangue. Não defendo a morte de ninguém, mas ao salvar esse tipo de pessoa Maria não está ajudando a tornar o mundo um lugar melhor. É por isso que Deus apenas observa. Os homens têm livre-arbítrio para escolherem seus caminhos, e serão julgados pelas escolhas que fizerem. Nem mesmo Maria, com todo o seu poder, pode mudar isso.

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