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Assistir GitS:AAA é como ser forçado a andar através de um lugar caótico especialmente cheio de pessoas e objetos e pontos de referência e ser obrigado a decorar tudo aquilo. Bom, na verdade é praticamente isso só que ao invés de andar você tem que assistir, com a pressão adicional de saber que tudo aquilo está conectado entre si de alguma forma e faz um sentido. Ou vários sentidos. Aí você tem duas escolhas: ativar o overclock no seu cérebro ou desistir completamente e sei lá, ir assistir Houkago no Pleiades. Nada contra Houkago no Pleiades, só estou comparando o nível de dedicação mental necessário para os dois. Caramba, até a abreviação é complicada. É tentador imaginar que AAA significa Associação dos Alcoólicos Anônimos também. Ok, não é, não tem nada a ver, mas eu não consigo parar de pensar nisso, e espero que você não consiga também agora que eu mencionei.

Em um mundo futurista cyberpunk que já viveu algumas guerras mundiais além do nosso, duas coisas são notáveis: o enfraquecimento dos governos perante as grandes companhias (o que há quem afirme que já ocorre no nosso mundo, mas eu acho um exagero) e a massificação da tecnologia cibernética. O mundo inteiro está conectado via redes de computadores (internet é brinquedo de criança perto do caos que realmente existe em GitS) e partes robóticas para substituir o corpo existem e estão à disposição de quem tiver dinheiro para pagar. Inclusive cérebros artificiais. Como é comum em histórias com esse tema, em GitS fica claro como a existência de tecnologia não diminuiu a distância entre ricos e pobres: ainda que o grosso das tarefas mais simples tenham sido completamente mecanizadas, livrando seres humanos de boa parte do trabalho sujo e mais pesado, o fato é que quem tem mais dinheiro pode melhorar mais seu corpo e prolongar mais sua vida com próteses robóticas, além de ter uma vida em geral melhor graças a essas mesmas próteses e diversas outras tecnologias relacionadas direta ou indiretamente com a cibertização da sociedade.

O grande dilema por trás de Ghost in the Shell é surpreendentemente similar a um dos temas mais importantes de Plastic Memories: o que diferencia o homem e a máquina? Em Plastic Memories, um anime muito mais simples, há máquinas com capacidade de desenvolverem personalidades e terem sentimentos humanos. Em Ghost in the Shell, até onde você pode cibernetizar-se e ainda continuar sendo humano? A fronteira final parece ser o que está no título do anime e desse artigo: o Fantasma. Aqui, fantasma significa alma, mas não em um sentido místico. É o lado subjetivo do ser humano, sua personalidade, valores e sentimentos (mais ou menos aquilo que em Plastic Memories torna giftias robôs quase humanos). O misticismo é rejeitado de propósito, já que o mundo desse anime é propositalmente material. A única forma de se conectar com um mundo material é através dos sentidos, mas esses são falhos. Com redes em escala global e com implantes cerebrais, até mesmo pessoas se tornam hackeáveis, então além de ser possível alterar o mundo ao redor para criar percepções falsas, é possível também injetar essas percepções diretamente no cérebro de uma pessoa. Memórias (outro tema caro à Plastic Memories) não são confiáveis, embora governos garantam que não existe tecnologia para manipulação de memórias e criação de memórias falsas, é lógico que elas existem. Assim, a única coisa que torna uma pessoa realmente ela mesma é seu íntimo, sua personalidade, seu fantasma. Adicionar partes cibernéticas para ampliar as capacidades do cérebro torna uma pessoa mais vulnerável mas ainda a mantém sendo quem ela é (a menos que um hacker invada seu cérebro e ferre com seu fantasma, mas você sabia do risco quando instalou implantes), mas existe a possibilidade de substituir o cérebro inteiro por um cérebro cibernético que terá uma capacidade de processamento ainda maior e que será, talvez, parecido com quem a pessoa era, mas definitivamente não será mais ela. E prometo que as comparações com Plastic Memories ficam só nesse parágrafo, hehe.

O mundo de Ghost in the Shell começou com um mangá e um filme, com basicamente os mesmos personagens dessa série. Mas Arise Alternative Architecture é um spin-off prequela, ou seja, uma história antes da história principal. Por isso, apesar daquela dificuldade toda explicada no primeiro parágrafo, pode ser assistido por quem não conhece a série original tanto quanto por quem já devorou tudo o que foi lançado sobre GitS. Esses dois primeiros episódios formam um arco que serve basicamente para mostrar tudo isso o que eu falei: as relações entre governos e empresas, o cyberterrorismo, hacking de fantasmas, a equipe que irá protagonizar a série (uma agência governamental para combater crimes e terrorismo cibernético), e toca nas questões filosóficas por trás da série (mas não espere muito desenvolvimento nesse campo).

O espectador é jogado direto no meio da ação, sem saber direito o que está acontecendo ou quem são os mocinhos. Mas bom, resumidamente, nesses dois episódios dois hackers que tiveram seus cérebros substituídos por um tipo novo de cérebro cibernético, chamado neurochip, pelo exército, tentam se vingar de, sei lá, genericamente todo mundo eu acho. É um mulher e um homem, ambos criados separadamente mas que em algum momento se conheceram pela rede (o amor é lindo) e que usam um vírus eletrônico, uma arma fornecida a eles pelo próprio exército. Por terem tido seus cérebros substituídos eles sofrem o dilema de saber se ainda são humanos. Basicamente ele acha que o cérebro eletrônico não é o seu próprio cérebro e portanto não é ele quem está pensando, concluindo que não é mais capaz de pensar, enquanto ela conclui que com um cérebro eletrônico não deve mais ser capaz de ter sentimentos. Adequadamente, eles se chamam de Espantalho e Homem de Lata, como os personagens do Mágico de Oz. No final o exército consegue destruí-los mas um grupo terrorista estrangeiro os ataque em represá-lia ao dano que causaram então a que é aparentemente a chefe do setor de inteligência (totalmente transformada em máquina) sobrevive mas fecha um acordo com o governo para que façam vista grossa para ela e a protejam em troca de colaboração nas investigações sobre o caso. E isso é só um arco introdutório, no fim das contas. Isso tudo até agora ainda foi fácil.

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