Ghost in the Shell – A existência e seus fantasmas

Apesar de assistir animes há tantos anos e já tê-los assistido na casa das centenas, eu nunca havia visto Ghost in the Shell. Li seus primeiros capítulos na versão em inglês pela Dark Horse, assisti a confusa prequel Arise (talvez devesse assistir de novo, quem sabe eu entenda melhor?) em sua versão recompilada para a tevê, o Alternative Architecture. Assisti até Koukaku no Pandora, um spin-off não canônico (até onde eu sei) de comédia produzido em conjunto por Masamune Shirow, o autor de Ghost in the Shell, e Koushi Rikudou, autor de Excel Saga. Mas Ghost in the Shell, o original, eu nunca havia assistido.

Até comprei o DVD! Sentia que era algo que me faltava. Não apenas é uma obra famosa e aclamada, como eu adoro cyberpunk, não tinha mesmo nenhum motivo para não assistir. Então aproveitei o lançamento da sua adaptação com atores de carne e osso hollywoodiana para, enfim, assistir o filme anime de 1995! Não me arrependi nem um pouco e apesar de tudo o que já li e já ouvi sobre, Ghost in the Shell ainda conseguiu me surpreender com um tema que eu não esperava que fosse o seu principal.

Ah, não se deixe levar pelo tom da minha resenha, o anime tem muitas e excelentes cenas de ação também!

Desde a abertura eu esperava algo meio Matrix. Tem aquelas animações com caracteres verdes, que certamente inspiraram o filme dos então irmãos Wachowski. Aliás, durante os anos de Matrix eu apenas lia mangás, e ainda nem eram muitos, mas lembro-me muito bem do quanto Ghost in the Shell tornou-se comentado na época. Realidade ou fantasia, o que vemos e sentimos é real? Podemos acreditar naquilo que percebemos? Mas ora, se não acreditarmos, em que iremos acreditar então? Nossos sentidos são a única coisa entre a nossa consciência e o mundo real. O que é real?

Esse padrão animado

Esse tema certamente está presente em Ghost in the Shell, e de forma muito mais grave do que em Matrix. Quero dizer, no fim das contas, apesar de tudo, Matrix de fato tem um mundo real e um mundo fictício bastante distintos, não é? E basta uma pílula para você escolher em qual deles viver e em qual deles acreditar. Já em Ghost in the Shell só existe um mundo, no qual coabitam seres humanos com variados níveis de mecanização, até alguns transformados em ciborgues completos, com até mesmo seu cérebro orgânico substituído por um eletrônico. Ah, se a consciência real de uma pessoa pode ser transferida para uma máquina (um cérebro eletrônico, ou, na terminologia de Ghost in the Shell, um cyber-cérebro) então consciências não são diferentes de programas, de forma que uma inteligência artificial suficientemente avançada pode clamar ser ela também uma forma de vida!

E se os sentidos falham?

Em um mundo desses, ou se escolhe ter um cérebro 100% orgânico ou não se pode mais ter certeza de nada. Máquinas podem ser hackeadas, memórias falsas podem ser inseridas. A sua “alma” pode ser completamente apagada e substituída por outra. Existem leis contra isso, evidentemente, mas uma placa na qual se lê “proibido pisar na grama” não torna a grama de fato impossível de ser pisada, se é que me entende. Mas acreditar ou não na realidade é o menor dos problemas para Motoko Kusanagi, a protagonista. Ou talvez tenha sido em algum momento o primeiro dos problemas, que a levou ao problema que o filme aborda de fato:

O que sou eu? Quem sou eu, por que sou eu, e o que faz de mim eu mesmo?

Essas são as questões que afligem Motoko. Ela tem uma resposta simples, porém insatisfatória: o “eu” é uma coleção de memórias e auto-conhecimento, coisas como a própria voz, o próprio rosto; mas a partir do momento em que se define o que é “eu”, o ser passa a se limitar. É lógico que isso não elimina nenhuma das dúvidas sobre a realidade, das quais nascem em primeiro lugar a dúvida sobre a própria identidade. Pior do que isso, a limitação é real, e se passa a proteger e agir em benefício daquilo que se acredita ser o “eu”, independente de qualquer outra coisa. Pode-se dizer que isso cria uma forma de hackear o cérebro para usar o instinto de auto-preservação para qualquer proveito. Mesmo que se lhe diga e prove que a identidade que acredita possuir seja falsa, isso irá apenas causar sofrimento. É melhor não ter memória nenhuma do que ter memórias falsas ou de veracidade duvidosa?

O que é ser? O que é estar vivo?

No final das contas Ghost in the Shell não dá uma resposta a essas questões existenciais tão fundamentais, e acredito que entendo porquê. Não é preciso tecnologia fictícia de ponta para se ter essas dúvidas em primeiro lugar, não é? Máquina ou orgânico, só o que sei da realidade, e de mim mesmo, é aquilo que é mediado através de meus sentidos. Quem sou eu? Não tenho uma resposta melhor do que a Major Kusanagi. Como ela, apenas tenho as memórias que carrego e só sei do mundo as coisas que sinto.

Nesse momento, enquanto digito esse texto em um notebook velho e escuto suas teclas tilintarem, estou com uma ligeira dor de cabeça ou um incômodo do tipo. Sei que a lata de energético à minha direita está praticamente vazia e isso me faz sentir preguiça, pois em breve precisarei me levantar dessa cadeira, de frente a essa mesa, e ir até a cozinha pegar alguma outra coisa para beber. E não é como se cadeira e mesa fossem muito confortáveis, bem longe disso na verdade. A mesa em particular é horrível, é baixa, deve ter sido feita para crianças, o espaço para as pernas é estreito de modo que a cadeira não entra embaixo e eu acabo ficando longe, afastado da tela e com os braços esticados no ar para alcançar o computador, o mouse, e tudo o que estiver na mesa. Também estou com um pouco de frio pois não estou suficientemente agasalhado, fora que um ventilador barulhento está ligado e apontado para o notebook, senão ele superaquece, e seu vento congela minhas mãos. Isso é tudo o que eu sei.

Acordar de um sonho e saber que acordou de um sonho. Saber que você é você e se reconhecer. Parece trivial, mas não é.

Na verdade, tudo o que eu sinto. Eu posso estar plugado em uma matriz, como no filme dos Wachowski. Eu posso ser um cérebro em uma jarra sendo alimentado com quaisquer estímulos. Desde criança, na verdade, eu penso que talvez quando eu morrer eu acorde em outro lugar, tendo terminado um “jogo”: eu nunca estive “vivo” aqui, essa vida que eu tenho não é senão uma ilusão-jogo projetada por um programa que eu próprio (o verdadeiro eu próprio) escolhi em outro mundo talvez bem diferente desse. Ou talvez eu seja uma borboleta sonhando ser um homem, como sugeriu Zhuang Zhou no século 4 antes de Cristo. Lembra-se, contudo, da definição da própria Major? E de como ela admitia que, uma vez bem definido quem sou eu, estou para sempre limitado àquela definição? Talvez não haja resposta certa para essa pergunta, no final das contas, e talvez o certo seja não respondê-la. Eu sou quem acho que sou, sou um cérebro em uma jarra, ou sou uma borboleta? Não importa. O importante mesmo é saber que eu sou. Motoko vai de Descartes: Penso, logo existo!

Há muita coisa no mundo para perder tempo se preocupando apenas consigo mesmo

    • Fábio "Mexicano" Godoy

      Lain ninguém vai entender. Eu já assisti e não sei nem o que foi que eu vi, quanto mais o que aquilo tudo tá tentando dizer =D

      Compreensão à parte, GitS continua atual enquanto Lain precisaria ser bastante atualizado para os dias de hoje para continuar sendo um thriller. Não existe mais conexão discada e todo mundo está conectado o tempo todo, para começar com o óbvio.

      Dito isso, quero muito reassistir Lain. Me sinto incompleto por não tê-lo entendido =P

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