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Hisone to Masotan, ou, como a Netflix chamou, Pilotos de Dragão: Hisone to Masotan, é um anime original do estúdio Bones, escrito por Mari Okada (Hanasaku Iroha, Anohana, Kokoro ga Sakebitagatterunda) e dirigido por Hiroshi Kobayashi, cujo único trabalho como diretor de série antes havia sido Kiznaiver, no qual trabalhou junto com Mari Okada também.

O que chama a atenção instantaneamente, porém, é o character design de Toshinao Aoki, que publica até hoje (fevereiro/2018) a adaptação para mangá da história do anime.

 

 

Para quem está acostumado com o estilo anime, os personagens de Hisone to Masotan são bastante cartunescos, tanto na aparência quanto na forma de se mover. Isso pode levar alguém a ter a ideia errada de que Hisone to Masotan seja um anime para crianças, ou adequado para crianças, mas isso está longe de ser o caso.

Não é o caso de dizer que “história adulta é melhor que história infantil”, porque isso é algo que você jamais me verá dizendo, mas sim que os temas de Hisone to Masotan não só não apelam para um público infantil como talvez seja incompreensível para uma criança a forma como eles são abordados no anime. Não acho que seria prejudicial deixar seu filho assistir, porém, mas acredito que ele vá se entediar rápido, ainda que talvez as piadas visuais possam fazê-lo rir.

 

 

A protagonista, Hisone, é uma garota que recém se formou no ensino médio e não é exatamente a pessoa mais sociável da classe. Bem o contrário, na verdade. Ela não é reclusa, mas é solitária. Se tornou assim porque foi estimulada pelos pais a ser sempre honesta, e como resultado se tornou honesta demais. Ela não tem tato ou traquejo social, ela fala exatamente o que pensa, inclusive e muito especialmente o que pode irritar ou machucar outras pessoas.

Com o tempo, ela simplesmente desistiu de tentar manter relações com outras pessoas. Por causa de algo que parecia positivo (honestidade), Hisone se tornou uma pessoa solitária, com forte tendência auto-depreciativa. O que fazer, nessas circunstâncias, depois da formatura? Faculdade ela nem cogitou. Seriam mais quatro anos exatamente daquele jeito que ela não aguenta. Sem rumo na vida, com o formulário entregue pela escola em sua mesa para preencher, ela olha para o céu.

Vê um jato militar voando, e apenas por impulso, escreve lá que quer trabalhar na Força Aérea de Auto-defesa do Japão. Sem que ela saiba seu formulário passa por uma triagem secreta do governo e ela é realmente recrutada. Passou algum tempo apenas entregando documentos de um lado para o outro e já estava começando a se cansar dessa nova vida, quando sua chefe a manda entregar documentos no misterioso Hangar 8.

Fica longe de tudo. Ela nem sabia onde ficava. Chega lá e está tudo apagado, e aparentemente vazio. Vagando pelo hangar, tem o encontro que sela seu destino: um dragão emerge de uma piscina.

E a devora.

 

 

Mas fica tudo bem porque ele a vomita depois. É assim que esse mundo é: existem dragões, eles são disfarçados de aviões para mantê-los em segredo, e mulheres os pilotam de dentro de seus estômagos.

O primeiro arco do anime desenvolve a relação entre Hisone e seu dragão, que ao final ela dá o nome de Masotan. Ela descobre que os dragões escolhem suas pilotas, e com isso pela primeira vez na vida ela sente que alguém a aceitou exatamente como ela é, e exatamente porque ela é. Para alguém como Hisone, que já havia desistido de tentar ser outra pessoa e de tentar ter qualquer tipo de relação mais séria com alguém por causa de sua personalidade, isso significou o mundo.

Aos poucos, raciocina ela, se Masotan a pode aceitar, então ela também pode se aceitar, e conforme se aceita Hisone consegue estabelecer vínculos com outras pessoas também. Esse aspecto do enredo é o típico coming of age, uma história de amadurecimento, mas não para por aí.

Além de Hisone e Masotan há um número de outros personagens, dos quais os mais importantes são Nao, a pilota reserva, que é briguenta e inicialmente antagoniza Hisone porque não foi escolhida pelo dragão, e Haruto, o mecânico que cuida do Masotan e por quem na segunda metade da história a Hisone desenvolve sentimentos românticos.

 

 

Outras pilotas e seus dragões entram na história, e todas elas têm, como Hisone, um problema, algo que as perturba. Mayumi é uma garota grande e parece que as pessoas tinham medo dela por causa disso? Ou é o que ela diz, mas o mais provável se pedir a minha opinião é que tenha sofrido bullying mesmo. Ririko é a típica nerd/otaku reclusa, e Eru detesta ser uma pilota de dragão porque queria ser pilota de caça de verdade.

Das três, porém, só Eru tem algum destaque na história, sendo as outras duas meras coadjuvantes de luxo. Isso de forma alguma é uma crítica negativa. O anime funciona bem assim, e visto no detalhe, quase se pode dizer que tinha que ser assim. Em todo caso, em uma obra carregada no ombro pelos seus personagens ao mesmo tempo caricatos e muito humanos, essa variedade de personagens se provou positiva ao permitir mais interações, diferentes e mais complexas.

Com efeito, seus personagens são seu maior ativo para Hisone to Masotan.

 

 

O amadurecimento, como eu escrevi sobre a Hisone, é um tema inicial do anime, e algumas personagens passam por arcos equivalentes, com destaque para Nao e Eru. Mas é só o tema inicial, quase incidental, do anime. Desde o começo estava lá algo que chamava tanto ou mais atenção, e que é tratado ao longo do mangá: o sexismo que mulheres sofrem, especialmente em locais de trabalho.

Desde o começo a Hisone tem que lidar com piadas sexistas na base, e a coisa só piora quando chegam mais pilotas. Chega ao ponto do bullying mesmo, a depreciação. Dizem os digníssimos pilotos homens que as mulheres só estão lá, afinal, porque só elas podem pilotar os dragões. Mas eles seriam pilotos naturalmente melhores e blá blá blá, todo mundo já conhece a ladainha.

Noutras situações é objetificação mesmo, com os homens da base babando pelas garotas e não tendo sensibilidade nenhuma na hora de abordá-las. Eventualmente as duas coisas (bullying e objetificação) se combinam, porque na verdade não são mesmo duas coisas separadas, e um dos pilotos, Zaito, decide “quebrar o orgulho” de uma das pilotas para depois poder “conquistá-la”. Ele se referia à Eru, a pilota que detesta ser pilota de dragão.

O caso dela é complexo. Forças militares costumam mesmo ser um ambiente bastante masculino, e no caso da Força Aérea de Auto-defesa do Japão, mulheres não podiam ser pilotas de caça até 2015. Até 1993 elas sequer podiam entrar para a Força Aérea de Auto-defesa, para qualquer posição. A primeira pilota de caça oficial no Japão foi nomeada após o final do anime, em agosto de 2018. A semelhança dela com a Eru, aliás, me faz pensar se a personagem não foi inspirada pelo menos parcialmente nela (só foi nomeada depois, mas o treinamento começou muito antes, é provável que já houvesse notícia do caso).

Enfim, era esse território que Eru queria desbravar. Ao contrário das demais, ela queria especificamente ser pilota de caça. E quando ela conseguiu, foi pareada com um dragão. Como dragões só podem ser pilotados por mulheres de todo modo, a posição que ela havia conquistado antes de repente não tinha mais esse valor. Ela queria algo apesar de ser mulher, e não por ser mulher.

Ela sabia das dificuldades que teria que enfrentar desde que decidiu-se pelo seu sonho, quando ainda era criança, e é provável que tenha sofrido bullying, o que ajudou a formar sua casca grossa, bem como por isso e outras razões ela desenvolveu uma quase aversão a homens no geral. E era essa mulher que Zaito decidiu desafiar e conquistar.

 

 

A história dá voltas, e bem, eles acabam formando um casal. Eu não acho que tenha sido de uma forma ruim, teve desenvolvimento significativo levando a isso. Se a maioria dos homens no anime escapa ileso com seu sexismo rampante, Zaito pelo menos teve que se redimir, e pareceu sincero. Mesmo assim, não tem como ignorar que a mensagem ficou cruzada com uma resolução dessas.

Outra crítica do anime contra o sexismo é também uma bastante japonesa, embora em diferentes graus provavelmente se aplique a qualquer país: a dicotomia entre carreira e família. No Japão, é muito comum que mulheres abandonem o trabalho quando se casem. Ainda que algumas possam se sentir confortáveis com isso, a ponto de muitas meninas dizerem que quando crescerem querem ser noivas (como se isso fosse uma profissão mesmo), não só não é o caso de todas como não funciona para todas. Depender do salário de uma pessoa só é sempre mais arriscado, afinal.

Mas é tão comum que empresas evitam promover mulheres por receio de que se casem e abandonem o trabalho ao mesmo tempo em que mulheres casadas são socialmente pressionadas a abandonar o trabalho. Uma coisa meio esquizofrênica, tendo sempre a mulher no lado mais fraco.

No anime, as pilotas precisam, descobrimos, ter “um buraco no coração”. Elas precisam de alguma forma pertencer aos seus dragões e depender deles, de tal forma que, caso se apaixonem, seus dragões não mais as aceitam. Os dragões, porém, embora bastante inteligentes, ainda são retratados como animais, como cães ou gatos, então não dá para colocar uma culpa de um comportamento social humano neles, mas sabendo que isso aconteceria a base toda se mobiliza para fazer a Hisone e a Eru terem o “coração partido”, a fim de que se dediquem apenas aos dragões. O tiro sai pela culatra e a esquadrilha de dragões fica desfalcado logo antes da missão para a qual ele foi formado em primeiro lugar.

Acredito, porém, que apesar de retratar o sexismo do ponto de vista das mulheres, o que leva qualquer espectador sensato a simpatizar com elas e com suas dificuldades, o anime em momento algum tenha tido a intenção de “superar” o que critica. Ao invés de mostrar como o mundo estaria melhor (ou, pelo menos, as mulheres estariam melhores) sem objetificação, depreciação, bullying e expectativas sexistas de carreira, Hisone to Masotan mostra como as suas mulheres vivem nesse mundo apesar disso tudo.

Como uma “denúncia”, porém, Hisone to Masotan talvez seja um cenário fantasioso demais para provocar reflexão. Mas se isso ainda me provoca sentimentos mistos, o ponto absolutamente mais baixo do anime não tem nada a ver com isso e só se mostra em sua inteireza no arco final.

 

 

Existe um motivo para o Japão precisar das pilotas de dragão. Há algo que só elas podem fazer. Se elas não fizerem, uma catástrofe literal vai acontecer. E essa hora chega no arco final, mas é algo tão definitivamente fora do mundano, do dia a dia que todos aqueles personagens vinham vivendo até então, que se destaca, e de forma negativa, de todo o resto. O fato de ter um desenvolvimento apressado apesar das pseudo-pistas ao longo do resto do anime não ajuda.

Não estou dizendo que o final é ruim, porque não é. É até emocionante, e dá um pouco mais de nuance para a personagem principal, a Hisone. Mas é tão diferente de tudo o que veio antes que não posso deixar de olhar para trás e perguntar: ok, legal, mas quem pediu isso?

Da forma como eu assisti esse anime, um episódio por semana, um de cada vez, foi uma experiência incrível. E eu ainda escrevi análises de seus episódios aqui no Anime21 e discuti ele no Café com Anime, então eu estava bastante envolvido. Desse modo, foi natural para mim me cercar pelas muitas qualidades de Hisone to Masotan e menosprezar seus defeitos.

Pessoalmente, Hisone to Masotan é um 10/10 para mim, mas sei que isso depende em grande parte da minha experiência com o anime e isso pode variar loucamente, por isso a minha nota técnica, por assim dizer, e para não correr risco de frustrar muita gente, é um 7/10. Muito recomendado, principalmente se você gosta de uma história que coloca suas personagens em destaque ou que tenha um aspecto visual diferente e muito bem trabalhado.

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