Bom dia!

Definitivamente Askeladd se tornou o protagonista de fato na segunda metade do anime, não é? Nada contra. Focar no mal humorado Thorfinn não iria ser muito útil, de todo modo, já que ele não tem quase nenhuma agência.

E seria chato. Ele é mal humorado, afinal.

O protagonista de fato mas não de direito Askeladd se encontra em sua maior crise desde o combate contra Thors. Ou talvez sua maior crise desde sempre, ou pelo menos desde que se tornou um guerreiro, já que contra Thors ele contava com a lealdade de seus homens, sem o que sua vitória seria impossível.

Com efeito, ele jamais teria enfrentado Thors sozinho. Se até mesmo um guerreiro viking de sangue quente e sedento por batalhas como Thorkell já admitiu que não entra em um conflito que sabe que vai perder, não seria o calculista Askeladd a fazê-lo.

Aliás, esqueça “sozinho”. Askeladd não enfrentaria Thors sem uma avassaladora vantagem numérica e estratégica, como a que ele trabalhou para construir.

No entanto, esse mesmo Askeladd frio e calculista, cuidadoso até não mais poder, que seleciona a dedo as batalhas que vai travar, não recuou um passo, não se deixou acuar ou convencer, e desafiou cerca de 50 homens tendo ao seu lado apenas Bjorn e Thorfinn.

 

Askeladd enfrenta sozinho 50 homens

 

Foi além: ofendeu seus adversários. Homens que o traíram covardemente, mas que ainda o respeitavam e não tinham interesse nenhum em combatê-lo.

Não foi à toa que Torgrim, o líder dos amotinados, disse que Askeladd não estava agindo como ele mesmo. E não estava. E tinha uma boa explicação para isso: ele está ficando velho, pode sentir que está, sabe que não tem mais muito tempo. É algo que ele já havia dito para Thorfinn alguns episódios atrás.

A sua vida inteira não foi uma vida de pilhagens e guerras – não da mesma forma que para seus homens, pelo menos. Ele sempre teve um objetivo além, um horizonte: o retorno de Artorius, o lendário general romano e rei da Bretanha celta-romana.

 

Lydia, mãe de Askeladd e descendente de Artorius

 

Artorius é obviamente inspirado no Rei Arthur, que de romano não tinha nada. Conforme pesquisei e expliquei em artigo anterior, o Rei Arthur é um rei bretão lendário que teria derrotado os anglo-saxões entre os séculos 5 e 6.

Os romanos se retiraram da então Província da Britânia no século 4, mas em Vinland Saga Artorius era um general romano estacionado na ilha no século 5 – folclore e ficção se encaixam.

No anime, os celtas (galeses) esperam pelo mítico retorno de Artorius, que não teria morrido, mas sim partido para Avalon, para se curar, e retornaria para salvar a Bretanha mais uma vez quando chegasse a hora.

Isso também se alinha com a lenda do Rei Arthur.

De forma mais ampla, é um tipo de lenda messiânica bastante comum, e como frequentemente envolve antigos reis e heróis descansando dentro de montanhas, é chamado genericamente de Rei sob a Montanha, Rei da Montanha, Herói Adormecido e outras variações.

Portugal tem seu próprio exemplo famoso: é o Rei Sebastião I, o penúltimo da Casa de Avis, que morreu na Batalha de Alcácer-Quibir, em Marrocos. Como não encontraram o corpo do rei, a corte e a população aguardaram tensas por notícias sobre o rei, na esperança de que ele ainda retornasse.

Conforme relatos sobre a derrota chegavam, acabou-se aceitando a morte presumida do Rei Sebastião I, e seu tio Henrique I acedeu ao trono. Henrique porém era um cardeal, sem herdeiros, e já velho, tendo morrido apenas dois anos depois e pondo fim à Dinastia de Avis e iniciando uma crise pela sucessão que terminaria com Felipe II da Espanha herdando a coroa portuguesa e dando início à União Ibérica.

Surgindo com o desaparecimento do Rei Sebastião, e crescendo em força após cada vicissitude, o sebastianismo é a crença de que o Rei Sebastião está vivo e irá retornar para salvar Portugal, quando esse precisar e for a hora certa. Dados a herança cultural portuguesa do Brasil e o nosso histórico monárquico, crenças sebastianistas surgiram por aqui também, principalmente após a Proclamação da República.

Além do lendário Rei Arthur e do real Rei Sebastião I, e entre uma enormidade de exemplos, há ou houve crenças semelhantes envolvendo Carlos Magno, Rei Lombardo e depois imperador do Sacro Império Romano, Constantino XI Paleólogo, o último imperador romano, e Vlad III Dracul, aquele que eu aposto que você já imaginou quem é.

Será que Askeladd acredita no retorno literal de Artorius? Esse é um mundo e uma época muito mais supersticiosos, como atestam as reiteradas afirmações, por diversos personagens, de que o Apocalipse bíblico é iminente. Não sei se apostaria que esse fosse o caso de Askeladd, mas não muda o seu curso de ações.

Queira ele estar pronto para servir Artorius quando ele voltar, queira apenas se vingar dos dinamarqueses ou de alguma forma obter uma vantagem para os galeses contra eles e contra os anglo-saxões, tudo o que ele fez se explica da mesma forma.

No final das contas, eu apostaria que mesmo entre os que professam fé no retorno messiânico de algum Rei sob a Montanha não acreditam que isso irá acontecer literalmente. Apenas têm essa fé como parte da construção de sua identidade como pertencente a um povo ou nação.

A crença em Artorius professada por Askeladd e pelos galeses seria, portanto, um grito de guerra, uma causa unificadora, um símbolo em comum entre os tantos reinos galeses diferentes.

No momento, é Askeladd quem carrega o estandarte dessa união simbólica-cultural, como filho de Lydia, e por isso ele tem legitimidade para por em ação seus planos para a libertação dos reinos galeses dos assaltos dinamarqueses após a esperada derrota inglesa.

Planos esses que estão à beira do fracasso graças à perseguição de Thorkell e a subsequente rebelião de Torgrim, o que tudo o mais constante ele poderia relevar alguns anos antes, mas agora já está velho demais para esperar ter outra oportunidade como a que tem agora.

 

Bjorn é o ultimo guerreiro fiel a Askeladd

 

Enquanto isso, Artorius continua descansando em Avalon.

É curioso e, provavelmente não mera coincidência, que Avalon seja dita em Vinland Saga como uma terra “além do mar a oeste” e “de verde permanente” – como a Vinlândia de Leif Erikson em que Thorfinn acredita.

A quantidade de paralelos que o anime vem acumulando entre Askeladd e Thorfinn não é brincadeira. Resta saber se o protagonista de direito irá seguir os passos do protagonista de fato quando a hora chegar.

 

Thorfinn vem ao "resgate" de Askeladd

 

  1. Faz tempo que não comento um artigo por aqui, mas este artigo de Vinland foi magnifico.

    Gostei particularmente da inserção da lenda de Dom Sebastião, deixem-me dizer que em poucos parágrafos explicou melhor a lenda de Dom Sebastião que muitos professores por aqui. Aqui mesmo muito tempo após a noticia desaparecimento de Dom Sebastião em Alcácer Quibir muitos nobres da corte e nobres latifundiários mais velhos, sempre tiveram a esperança que um dia Dom Sebastião voltaria para salvar Portugal das mãos dos Filipes (dessa situação nasceu a personagem Velho do Restelo da grande obra literária “Os Lusíadas” de Luís Vaz de Camões).

    Voltando ao episódio, sempre gostei da lenda do Rei Artur, a versão do anime mostrada neste episódio é tão ou mais romantizada que a lenda original.
    O Askellad faz tempo que é o melhor personagem do anime (desde da morte do Thors), ele tem tudo para ser um vilão, mas o carisma dele, a inteligência e lábia dele, não dá para odiá-lo. Este episódio foi apenas a ponta do icebergue do passado do Askellad, quando li o mangá senti uma raiva enorme do pai do Askellad, a forma como ele usou e abusou da Lydia foi nojenta. A doença de Lydia mãe de Askellad provavelmente adveio da mudança repentina de país, depois os abusos tudo culminado mataram a Lydia fisicamente e mentalmente. Deu uma dó do Askellad no flasback ao cuidar da mãe doente num estábulo imundo, nem ele nem a sua mãe mereciam aquilo, eles descentes do grande General Arthorius.

    Quanto ao confronto entre o Askellad e os homens que o traíram, tal situação já era de se esperar faz tempo. O Askellad não é de agora que refere que está a ficar velho, mas neste episódio isso ficou muito mais evidente quando Askellad enfrentava sozinho 50 homens. Pensando que não pessoas acima dos 40 anos daquela época já poderiam ser consideradas anciões, o próprio Torkell tem 50 anos (mas ele é um allien, 50 anos não devem ser nada).
    Quando o Torkell apareceu achei o pormenor do Askellad nunca ter largado a sua espada, como os outros fizeram, pareceu até que ele já sabia que o Torkell não gosta de fracos que abandonam as suas armas.

    Por fim, não posso esquecer de mencionar a carga berserk protagonizada pelo Thorfinn, ele estava possesso, ninguém pode mexer na presa dele, nem o assustador Torkell o Alto.

    Como sempre, mais um excelente artigo Fábio.

    • Fábio "Mexicano" Godoy

      Olá Kondou, tudo certinho?

      Eu pesquisei, e Os Lusíadas foi lançado ainda durante o reinado de Dom Sebastião, em 1572. A Batalha de Alcácer-Quibir foi em 1578. Com isso eu quero dizer que o Velho do Restelo não pode ser uma referência aos primeiros nobres proto-sebastianistas. Com efeito, as estrofes 6 a 18 do Canto I de Os Lusíadas são uma dedicatória a Dom Sebastião. O Velho do Restelo representa os pessimistas, antes das Grandes Navegações, que não acreditavam que Portugal fosse conseguir chegar à Índia e aquela era uma empresa infrutífera e custosa.

      Quanto ao sebastianismo, é provável que seu surgimento tenha muito a ver com o medo (e raiva) da anexação espanhola. Portugal vinha de uma sequência de grandes reis e grandes feitos, ter tudo isso interrompido já seria um baque tremendo, piorado ainda pelo sinistro que estava à espreita, e eventualmente se concretizou.

      Sobre o Askeladd já conversamos no Facebook: ele é velho, mas continua fiel ao seus objetivos. Ou talvez seja mais fiel do que nunca justamente porque velho? Quero dizer, desistir agora seria admitir que a vida toda foi uma mentira, suponho?

      E isso é interessante porque é um tipo de conflito que vemos Thorfinn já começando a ter. Ele quer apenas se vingar de Askeladd, mas sabe, em seu íntimo, que não é isso que seu pai iria querer.

      Vinland Saga não tem nenhum herói.

      Obrigado pela visita e pelo comentário! 🙂

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