2016 foi um grande ano para a indústria da animação japonesa. Além da coprodução com a França em A Tartaruga Vermelha, do holandês Michael Dudok de Wit, que rendeu uma indicação ao Oscar na categoria, chegaram aos cinemas Koe no Katachi, de Naoko Yamada, Kimi no na wa (mais conhecido pelo seu nome em inglês, Your Name), de Makoto Shinkai, e Kono Sekai no Katasumi ni, de Sunao Katabuchi, que no Brasil tem o título de Neste Canto do Mundo.

Entre essas produções, o drama de guerra dirigido por Sunao Katabuchi foi distinguido como melhor animação no Awards of the Japanese Academy. Prêmios são considerações abertas às anuências e às discordâncias, mas Kono Sekai no Katasumi ni possui méritos superlativos que justificam a escolha e o seu reconhecimento mundo afora.

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Baseado no mangá de Fumiyo Kouno (3 volumes, de 2006 a 2009), adaptado por Katabuchi e Chie Uratani, o filme, em suas 2 horas e 9 minutos, acompanha a vida da menina Suzu de 1933 até 1945, ano em que se chegou ao fim a Segunda Grande Guerra Mundial, logo após as bombas atômicas lançadas em Hiroshima e Nagasaki (a maior parte do filme se passa nos anos de 1944 e 1945). Kono Sekai no Katasumi ni ao focar em Suzu, portanto nos sonhos desfeitos e na luta para manter a esperança de uma jovem mulher, constrói uma investigação dos efeitos da guerra sobre o coletivo e seu espírito de comunhão e resistência no abandono e na incerteza do futuro.

No começo, a calmaria. A pequena Suzu, a vida em família e o lúdico em Hiroshima.

O filme começa com um ritmo de slice of life, uma história de formação contemplativa, com pequenos grandes acontecimentos na vida de Suzu e sua família, em Hiroshima. Ela nos é apresentada com pouco menos de dez anos, em 1933, fazendo uma travessia de barco para outra cidade a fim de realizar uma entrega, em substituição ao irmão. Suzu é uma menina criativa para desenhar e inventar histórias (e tem poéticos diálogos interiores), o que confere à obra o imaginário e a ludicidade presentes na infância. Esse é um fato importante, pois a fantasia será mais tarde reintegrada à narrativa, como sinal tanto de apaziguamento quanto de maturidade.

Do tempo de infante na zona rural de Hiroshima, passando por um amor nunca declarado até o casamento arranjado e mudança para o porto de Kure, a existência de Suzu preenche-se pelas atividades domésticas e a tentativa de torná-la menos cinza por intermédio da pintura. Nesse sentido, a condição da mulher em uma sociedade tradicionalista é vislumbrada na ideia de substituição da sogra, já doente, por Suzu como responsável pelo cuidado da casa. Tarefas do lar que a jovem deve assumir, ainda que sua pouca experiência dificulte a execução de algumas delas com destreza. A adaptação de Suzu a sua nova vida ocorre no tempo em que a guerra se intensifica e deixa de ser o indício da superioridade nipônica diante de seus inimigos. A guerra é brutal e atinge Kure com pesados bombardeios com o objetivo de destruir navios e porta-aviões da marinha japonesa.

Suzu e as obrigações familiares: um casamento arranjado e as incertezas do futuro.

A partir daí, Kono Sekai no Katasumi ni se transforma em um drama voraz, sombrio e melancólico, que não poupa o espectador dos horrores e mazelas da guerra. Suzu sofre com mudanças, separações e o seu próprio corpo se torna um despojo do conflito armado.

Assim como Túmulo dos Vagalumes (1988), a obra-prima de Isao Takahata, a crueldade e o absurdo da guerra são pungentes na obra (ainda que não alcance as devastações do flagelo engendrado por Takahata). Sunao Katabuchi sabe chocar, sem ser apelativo. A ruína surge como uma das heranças inevitáveis da guerra, tocando os limites de nossa desumanização: o Outro é visto como um efeito colateral, vítima inegociável de um planejamento que objetiva a rendição como ponto culminante.

Do soldado vítima da bomba atômica em Hiroshima que morre em Kure, deixando uma mancha preta na parede do centro comunitário, à menina que fica ao lado do corpo da mãe morta até a sua putrefação, vestígios do poder de destruição que o ser humano carrega nos são apresentados, em momentos em que a crueza se sobrepõe terrivelmente a poesia de um cotidiano já despedaçado.

Ainda que haja destroços e escombros, o amor persiste em se manifestar.

Nesse sentido, Kono Sekai no Katasumi ni é um filme sobre sobrevivência, esperança e laços afetivos (de Suzu com sua família – principalmente com a irmã –, e com a família do marido), que tem na determinação e na resiliência suas virtudes essenciais para manter viva a perspectiva de um futuro que não se esqueça do passado, um fantasma que ensina quais os desacertos cometidos.

Os aspectos visuais da obra de Katabuchi merecem menção já que seu trabalho artístico é muito rico ao acompanhar o olhar artístico que Suzu lança ao seu redor e entregando cores e luzes arrebatadoras. A beleza da animação encontra seu auge em um dos ataques aéreos ao porto de Kuru, em que as explosões no céu transmutem-se em imagens pictóricas como se fossem pinceladas (há até uma referência a Uma Noite Estrelada de Van Gogh).

Não há como passar incólume pelos horrores da guerra. O sofrimento do físico e do espírito de Suzu.

O cotidiano realista da vida diária mostrado em um ritmo parcimonioso, que é interrompido por um fato histórico de marcas indeléveis , é algo a se superar em sua primeira hora de metragem, mas a vida de Suzu e os pormenores que nos revelam como se davam a organização interna das famílias são preparativos para o impacto das tragédias vindouras (para quem quer saber mais a respeito do período, vale conferir o longa-metragem de Shohei Imamura, Black Rain – A Coragem de um Povo, de 1989, é um das mais angustiantes produções sobre os efeitos da radiação das bombas atômicas lançadas em Hiroshima e Nagasaki).

O filme expõe a brutalidade da guerra e consegue ser terno com as suas personagens, o que dá um tom esperançoso à animação – com a reconstrução da vida em família, que, mesmo sob os escombros de perdas dolorosas, recebe de braços abertos uma menina sem lar. Kono Sekai no Katasumi ni nos lembra o que os descompassos políticos e os afãs de domínio e expansão territorial quando tornados guerra fazem a alma humana. E na figura de Suzu recorda-nos que sonhar é um direito irrevogável e que temos o nosso lugar no mundo, mesmo que esse canto seja alcançado pelo amor fati, ao tornarmos o destino algo precioso.

  1. Assim como “Grave of the Fireflies” esse deve ter uma preparação psicologica antes de assistir pq é pesado….Mas em certos momentos sublime como uma obra de impacto tem de ser….
    E jamais esqueçam a caixa de lenços a mão…Até vikings choram para esse aí…

    • Caro James, para ver Hotaru no Aka e Gen Pés Descalços, é necessário antes de assisti-los uma preparação psicológica e reforçada, além de um coração de aco, reforçado com ligas de titânio.
      Kono Sekai, perto desses dois filmes que citei, é bem leve, mas não deixa de ter os seus momentos pesados e reflexivos.

  2. Este filme foi excelente. Desde do dia em que ele foi divulgado, que eu tinha um hype enorme nele. E esse hype foi mais do que correspondido. Tive a honra de poder ver Kono Sekai no Katasumi ni no cinema e no final do filme, acabei por pensar que tinha visto um filme do mesmo nível de qualidade que Hotaru no Aka.
    Eu já vi muitos filmes de animação, sobre a Segunda Guerra Mundial, mas Hotaru no Haka e os dois filmes de Gen Pés Descalços, destroem qualquer coração, tal é a veracidade dos mesmos. Kono Sekai no Katsumi Ni fica no meio termo, sendo que a forma como ele demonstra, o quotidiano do povo japonês desde dos anos 30 do século XX (ainda antes da segunda guerra Sino-Japonesa) até ao final da Segunda Guerra Mundial, foi excelente.
    A parte dos racionamentos de alimentos, metais e vestuário, foi muito bem demonstrado neste filme, tal como a caracterização da cidade de Hiroshima (o icónico edifício de betão da cidade, o famoso Memorial de Paz de Hiroshima, esteve muito bem feito neste filme).
    As personagens dispensam muitas palavras, foram muito boa e bem desenvolvidas. A parte da animação foi o ponto alto do filme, desde dos detalhes no vestuário, da arquitectura e até mesmo nas paisagens. A parte dos bombardeiros, para mim foi a parte mais icónica do filme.
    A parte do lançamento da bomba atómica, foi bem perturbadora, principalmente por causa da menina que ficou junto do cadáver da mãe (essa cena, de certa forma era desnecessária, mas se o intuito era chocar, quem via o filme, deu resultado).
    Este filme é super recomendado para quem goste de história, mas também, mesmo quem não goste de história, deveria ver este filme.
    Obrigado por este artigo, de Kono Sekai WM Souza.

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