No mundo fantástico da ética alimentar, coisa que não existe caso não se esteja dentro de um sistema cultural, a nossa protagonista Midori, resoluta e obstinada, constrói a sua vida inteira em torno de sua determinação. Entretanto…

 

 

Midori-ko é um filme experimental, ou mesmo nem isso, é arte pura em expressão individual. Desenvolvido no decorrer de mais de dez anos por Keita Kurosawa, somos apresentados a um cenário surreal e grotesco, que beira o sublime, e por vezes, o repulsivo.

Sendo sincero, a habilidade artística do autor, a ambientação, as escolhas soturnas que caracterizam o percurso da obra, são no mínimo elogiáveis, no entanto, por outro lado, essas escolhas podem não agradar o espectador mais industrial, no sentido de que, essa obra não tem nada a ver com o que entendemos por animação comercial, e ao contrário, de comercial não tem nada.

O objetivo central da animação é acompanhar a engenheira agrícola, pesquisadora e vendedora de hortaliças, Midori. Uma jovem de poucos recursos e que devota sua vida em torno de seu sonho, desenvolver alimentos e produtividade para nutrir as pessoas adequadamente, libertando-as das amarras do consumo de alimentos baseados em carnes.

 

 

Midori, representa a normalidade, pois como bem se nota de primeira, ela é a única humana em completude que a obra nos apresenta. Temos figuras disformes em um cenário sombrio, sejam os vizinhos de comportamento aberrante, sejam as demais figuras que iluminam a tela, todos os componentes dessa obra remetem ao terror das formas.

O interessante desse contraste constante, da normalidade frente ao completo surreal, não se demonstra apenas na estética, mas sobretudo no comportamento dos indivíduos. Temos personagens menores, como o locatário e o agricultor que auxilia Midori em seu cultivo de vegetais, que assomam como estruturas normais, mas de resto, tudo se desdobra em quimeras e mosaicos de humanidades representadas por partes orgânicas destacadas.

O segundo e mais importante protagonista dessa obra, é um curioso vegetal bebê, que não apenas possui um rosto humano, como tende a se comportar como uma criança em fase de crescimento. Midori, por sua vez, assim que o encontra, ou por ele é quase nocauteada, fascinada e confusa, abraça a entidade como algo a compreender.

 

 

O anime não possui um sistema narrativo de fácil leitura, mas podemos entender o conjunto da obra como a mensagem derradeira da vida. Não adianta esconder a bestialidade humana, um ser que consome, regular o pecado maculado pelo sacrifício de todos os seres que adentram no ciclo da vida.

Midori vive uma vida simples, soterrada na impotência de sua utopia, e quando em face do novo, da humanidade em forma vegetal, a carne que tanto nega, acaba infectando aquilo com o qual não podia realmente se comunicar, ou seja, com os alimentos que a nutriam.

Quando plantas ganham identidade, linguagem e alma, toda a dignidade do que se entende por sentimentos, florescem, quer se queira quer não, no rosto que expressa a consciência, ou melhor, a autoconsciência do que entendemos por apenas coisa.

 

 

Os sentidos estão em destaque, a cognição que nem sempre é clara, e que por vezes é simplesmente alienada, Midori cultiva a sua ética, literalmente, e se vê frente a sua ética em forma de rosto humano. Ao se olhar no espelho, ela sente fome.

O ideal, aquilo que ela defende, em um desfecho surpreendente de competição e gula, de antropofagia da vida pela vida, apresenta não apenas a realidade que sustenta a vida, mas até mesmo o canibalismo de um mundo brutal, onde até mesmo o inerte e inocente vegetal, se percebe como parte integrante no banquete e na carnificina da existência.

Como sempre, obras para além da linguagem industrial, que tem por intento a mensagem para além da superfície, ou mesmo o vazio de mensagem, que se manifesta como potência que transborda, tendem a desinteressar os não habituados ao caos.

 

 

Midori-ko, obra sem lastros de interesse, pode ser entendida como uma pasta composta por cores acres, uma visão que das sombras se eleva para desaparecer sob a luz. Não é uma animação que será lembrada, não é um cenário que ambiciona ser lembrado, mas bem, que interessante é presenciar algo assim, acompanhar um fluxo de lindos desenhos que representam o consumo e o brutal da vida.

Destaque sobretudo em seu clímax e desfecho, Midori remove o véu de seu caráter frente a insanidade do mundo, quem é a moça que se ergue poderosa e plena ao reivindicar a posse não apenas pelo afeto em relação a vida, mas em paradoxo, aceitando e abraçando a sua natureza de consumir a vida. Mesmo que quase seja tragada e consumida, a guerra a ilumina em sua necessidade de sobreviver, de abdicar do humano e das fronteiras de sua identidade para apenas consumir.

Como percebem, a palavra consumo é central, é uma obra que, por mais surreal que seja, nos ensina que estamos consumindo, que estamos sendo consumidos, que somos os sentidos e a força, o poder e o desejo, a sincera fome que infecta a nossa natureza orgânica final.

Obra de infinitas leituras, recomendo como ponto de partida para aqueles que desejam refletir sobre os seus hábitos alimentares de uma maneira no mínimo diferenciada. Até breve pessoas.

 

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