Há séries cômicas que investem na criação de situações aleatórias e outras que optam por reservar mais espaço para o desenvolvimento de suas personagens, sempre apresentando alguma novidade sobre elas a cada segmento. Isto é, no segundo caso, há uma continuidade, mesmo que o propósito não seja encadear os esquetes e nem uma significativa progressão da história.  Chio-chan no Tsuugakuro é uma comédia que se sustenta confortavelmente nesses territórios que muitas vezes são engendrados ou tratados como opostos.

A proeza se deve a maneira como o humor do absurdo surge, contando sobremaneira com a criatividade, os delírios, a impulsividade e a imaginação de sua dupla principal: Chio e Manana. Elas são astutas e engraçadas, e também são parceiras, apesar de tentarem tirar vantagem uma da outra em não raros momentos. E a comédia nasce tanto de situações absurdas como do exagero colossal de uma situação normal.

Há muitos acertos em Chio-chan no Tsuugakuro, o que eleva o anime a merecida distinção de uma das melhores comédias de 2018, porém os seus equívocos são clamorosos, prejudicando a contemplação de alguns de seus segmentos. Não chega, de modo geral, a abalar o ritmo e a solidez de seu humor, mas faz refletir sobre a falta de crítica social e de sensibilidade para perceber que comédia tem, sim, um limite. O morador de rua/mestre kabaddi condenado por molestar uma adolescente no metrô (no Brasil, o crime é classificado como importunação ofensiva ao pudor) interagindo com estudantes do ensino médio e em êxtase com as estripulias das jovens, com momentos “sensuais” entre elas, é, no mínimo, incômodo.

Chio-chan como Bloody Butterfly: equívocos e simulações também compõem o humor da série.

Sobre a história, Chio Miyamo é uma estudante do ensino médio e uma gamer girl, e por passar às madrugadas jogando online, geralmente acorda tarde para ir à escola. Então Chio-chan planeja maneiras de chegar ao seu objetivo e não se atrasar, evitando assim chamar a atenção por receber alguma advertência ou punição. Às vezes, ela levanta cedo e somente deseja que o caminho para a escola seja agradável. A garota tem uma “filosofia de vida”, que postula o mínimo esforço e a renúncia a qualquer tipo de destaque. Chio-chan prefere a discrição, é adepta do anonimato em meio à multidão. Ela faz de tudo para se manter na linha da mediocridade.

Manana em apuros: Chio não se furta a usar táticas duvidosas. Kabaddi! Kabaddi! Kabaddi!

Tudo estaria bem, se o que ocorre no trajeto não fosse o oposto do esperado pela estudante. O absurdo, aventuras hilárias e situações ridículas atravessam o seu caminho, e junto com sua amiga de longa data, Manana Nonomura, ela tem que ser inteligente e ousada para se safar das enrascadas ou circunstâncias imprevistas em que se enredam. A premissa é simples, mas a imaginação de Chio e a química extraordinária que tem com Manana fazem de Chio-chan no Tsuugakuro uma peça de entretenimento consistente – apesar dos deslizes mencionados –, divertida e que recorre às referências do universo pop, de animes a videogames ocidentais (os preferidos de Chio-chan).

A dinâmica entre Chio e Manana ultrapassa a linha do excelente. Cada esquete, um tonel de gargalhadas.

Chio-chan no Tsuugakuro é uma comédia atrevida, que aposta no exagero, e consegue realizar a maioria de suas anedotas com inteligência, de maneira segura. Muito desse êxito se deve as seiyuus Naomi Oozora, a dubladora de Chio-chan, e Chiaki Omigawa, que dá voz a Manana. É excelente o trabalho de ambas, contribuindo para que a dinâmica entre a dupla cresça ao longo dos episódios. Ainda mais pela relação de Chio e Manana ser do tipo de amizade na qual a pessoa que melhor te conhece é aquela que mais te sacaneia. Elas estabelecem um divertido jogo de percepção sobre as ações, desejos e pensamentos de cada uma. Quando Manana faz algo querendo agradar alguém, Chio já está em alerta, sabendo exatamente o que a amiga pretende, e vice-versa. Embora ocorram mal-entendidos e traições cômicas, elas são inseparáveis, e, no fim da jornada, o que conta é chegarem juntas à escola.

Chio-chan é uma garota atlética e inteligente (com seus óculos de grau encantadores), mas uma estudante que prefere se manter abaixo da média. Além disso, é sagaz, apesar de ser ingênua em muitos aspectos, principalmente no que tange ao amor e quando perde a compostura por querer se sobressair, contrariando a sua própria máxima de vida. São esses momentos que deflagram o que a série tem a oferecer de melhor em humor: ela perde o controle quando se diverte, como ao escalar dois prédios vizinhos recorrendo ao escapate, ou tenta mostrar conhecimento para se afirmar diante de um desafio.

Isso se chama caçar precipício. As imprudências de Chio e Manana em sintonia com o amor e a rivalidade que as atraem.

Já Manana pode ser considerada mais malandra que Chio-chan. Ela deseja ser popular, ao mesmo tempo age com discrição. Muitas vezes sentindo vergonha das situações inusitadas e das atitudes desmedidas que Chio às vezes assume. Manana é ardilosa, não tem receio de elaborar revanches e faz de tudo para provocar a amiga. No entanto, tem um afeto enorme por Chio, com direito a sentimentos ambíguos.

Há outras personagens de destaque como Andou, um membro de uma gangue de motoqueiros, redimido quando cruza com Chio-chan, quando ela se passa por Bloody Butterfly, uma criminosa internacional, que o derrota sem querer em uma luta. Andou então promete ganhar a vida honestamente. Aos poucos, ele se apaixona por Chio e faz de tudo para impressioná-la. O ex-arruaceiro é uma personagem de 20 e poucos anos, mas aparenta ter mais, o que causa certo estranhamento no início do anime.

Manana sofre com a menina do kancho. Pequena tsundere cria problemas para a dupla dinâmica.

Um dos principais destaques entre as personagens coadjuvantes é Yuki Hosakawa, uma atleta, extremamente popular, cativante, mas que também possui qualidades controversas, como a sinceridade em excesso – na verdade, ela não sabe mentir – e o modo intimidador como defende aquilo em que acredita. Apesar de integrar o elenco em alguns dos mais hilários esquetes, Yuki parece subaproveitada. Contudo, Chio e Manana são tão reluzentes juntas, que formar um trio poderia atenuar o poder emanado pela dupla em suas presepadas.

A atlética e popular Yuki, uma personagem com um incrível senso de liberdade.

Madoka Kushitori-senpai é a capitão do clube de kabaddi. Ela surge desafiando Chio-chan e Manana para uma partida e a derrota a faz se exilar (em um parque, em pleno centro urbano) em busca de autocontrole e sabedoria. Madoka, na verdade, joga kabaddi por um motivo pouco nobre, o de apalpar as garotas, e Chio percebe, usando isso a seu favor em uma certa ocasião, o que abala Madoka. A personagem tem seios voluptuosos, que sempre são evidenciados em suas aparições. No entanto, é a representação lésbica que a série traz é que gera certo desconforto em relação à personagem. Madoka é agressiva e assedia com toques inoportunos, sem consentimento, as garotas que enfrenta no kabaddi. Excetuando a tensão yuri entre Chio-Manana (ou os sentimentos de Manana), Madoka não esconde a sua predileção por garotas. Entretanto, o que poderia ser algo vinculado à aceitação, bem-humorado, torna-se compulsão e fanservice.

Contudo, Madoka tem o seu charme, e o deslize principal de Chio-chan está na figura do morador de rua/mestre kabaddi que treina Madoka e a guia no caminho da liberação do seu desejo. O problema é que esse compromisso com os próprios impulsos é a lição transmitida por um homem condenado por molestar uma estudante do ensino médio no metrô. Esse tipo de assédio sexual no Japão é visto como um fetiche por muitos homens. É uma situação grave cujo sujeito que pratica é um chikan, molestador, em português. Infelizmente, como a personagem é apresentada, não há arrependimento, e as aventuras de Chio e suas amigas apenas alimentam o fetiche do homem que um dia foi um executivo de sucesso e perdeu tudo pelo seu ato impróprio (e isso não desculpa e nem redime a personagem).

Se a animação de Chio-chan no Tsuugakuro não chega a ser primorosa, tem suas qualidades. O design das personagens é agradável e se mantém consistente, o que contribui para elevar a simpatia por Chio e Manana. O anime faz um bom trabalho no que concerne aos cenários, que, se não se sobressaem pelos detalhes, são criativos e diversos, proporcionando um diálogo com a cidade, com os locais que Chio-chan passa a caminho da escola. O estúdio Diomedia, responsável pela adaptação do mangá recém-finalizado de Tadataka Kawasaki, tem resultados distintos em relação às séries que produz (Akuma no Riddle [2014], Gi(a)rlish Number [2016] etc.), mas possui um ótimo histórico quando o assunto é comédia (Shinryaku! Ika Musume [2010/2011]) e Aho Girl [2017]. E o saldo de Chio-chan no Tsuugakuro é positivo, para lá de satisfatório visualmente, ainda que sua arte não seja fascinante.

Manana em momento girl power. Mas não é uma briga pelo coração de Chio-chan.

Impressiona como o ponto de partida modesto (estudante do ensino médio a caminho da instituição de ensino em que está matriculada) gera incidentes notáveis ao longo do percurso. Porém, nem todos os esquetes são equilibrados, alguns soam forçados e a graça se sustenta mais pela força de seu par de protagonistas. Em decorrência de flertar com algumas piadas mais grosseiras (e um fanservice que pouco acrescenta às peripécias de Chio-chan), o potencial do absurdo e da crítica de comportamento perdem o foco e se diluem consideravelmente.

Chio-chan usa diversas vezes o seu conhecimento em jogos online para escapar das presepadas. Muito acima da média, né, Chio-chan!

Chio-chan no Tsuugakuro é uma comédia de personagens, com monólogos internos e situações hilárias, que conta com o carisma arrasador de duas estudantes no estilo amigas e rivais, mas que nutrem um afeto gigantesco uma pela outra, para participarem e executarem o exagero que o cotidiano pode proporcionar. O caminho para a escola é fora do comum em Chio-chan no Tsuugakuro, levando a encrenca com gangue de motoqueiros, dança para comprovar a amizade, passeio por telhados, parkour, escapete, kancho (é uma brincadeira ou disputa em que se junta as mãos na forma de uma arma imaginária e tenta-se acertar o ânus de um adversário ou passante), vergonha da roupa alheia e confissão de amizade. E ainda que tenhamos alguns sorrisos amarelos, as gargalhadas são genuínas com uma das duplas mais entrosadas, insanas e irresistíveis de 2018.

  1. Assistir anime de comédia usando consciência de justiçagem social é tão deslocado quanto julgar o passado baseado na moral do presente. Primeiro, porque ignora que existe sim, uma crítica, colocada na forma de humor absurdo, ao que o japonês comum considera deplorável. Nós também fazemos isso, muitos filmes nacionais retratam nossa vergonha social com a criminalidade, expondo o ridículo e ao mesmo tempo fazendo crítica.

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