Chegamos ao quinto OVA de Kara no Kyoukai, e devo confessar, esse deve ser ápice da jornada. Durante os filmes anteriores, fomos lentamente apresentados a situação, aos personagens e ao cenário, mas agora, nesse quinto fragmento, se consolidam não todas, mas uma boa gama de pontas que estavam soltas.

A história de Shiki é o seu amadurecimento frente a sua ausência de humanidade, é um personagem que aos poucos se preenche de vida, de morte e de significado. O mais interessante em relação a ela, ou ao menos um dos elementos centrais, é o florescimento do amor, o afeto que conduz todo o seu ser rumo a luz. Shiki sempre será uma habitante da fronteira, mas ao mesmo tempo, começa a cultivar o vazio que, tanto lhe compõem, como acaba por se tornar a matéria e a forma de sua existência.

 

 

Mas o episódio em questão, um filme de fato, não um OVA, digo isso pela duração do mesmo, que triplica a duração de um OVA “normal” da saga, oferece não apenas o desfecho de Shiki, mas o desfecho de Mikiya, e até certo ponto, o de Touko.

Guiando essa jornada, entretanto, temos não os protagonistas, mas sim o antagonista da história. Araya, o monge excomungado da ordem dos magos, é uma pessoa com uma ambição, encontrar a origem da espiral do paradoxo paradigmático, e a partir disso acertas as contas com a existência. Sua busca é intensa, sua busca é humana. Adentro por ela mais à frente do artigo.

O personagem secundário, mas central durante essa jornada pelo filme, é Tomoe, um jovem adolescente de passado e presente trágico, que sofre violência, de forma generalizada, por diversos segmentos da sociedade ao qual está vinculado. Seja na escola, ou mesmo no bairro onde mora, seja entre “amigos”, seja entre desconhecidos, ele endurece a sua personalidade e se torna um rebelde, um rapaz que tem que lutar pelo seu próprio sustento e pela dignidade de um família em desespero, à beira do completo colapso.

 

 

Seu pai cometeu um erro no trabalho, matou uma pessoa por acidente, isso em uma situação onde ele não possui as credenciais para efetivar a tarefa, e isso o levou a ser excluído e humilhado pela sociedade. Seguindo o mesmo destino de violência, Tomoe, seu pai e sua mãe, são uma família que convive com o fracasso, a sofrimento constante e o ódio que brota dos atritos cotidianos. Como se não bastasse tudo isso, eles moram dentro do laboratório de Araya, um local projetado pela enlouquecer aqueles que ali habitam, levando-os a assassinarem uns aos outros.

Tomoe foge, ele acredita ter matado a sua própria mãe. Mas ao mesmo tempo, a sua mãe matou o seu pai, e por mais bizarro que pareça, ela o matou, matou ao seu filho, e cometeu suicídio em seguida. É um labirinto de caos, qual é a verdade por detrás dessa tragédia? Assistam e tirem as suas próprias conclusões.

Shiki encontra e acaba abrigando Tomoe, eles vivem juntos por semanas, talvez meses. Compartilham a intimidade de um casal, ou de irmãos. Ajudam um ao outro em sua solidão, convivem entre sorvetes, fechaduras e roupas sujas, a direção de filme, os cortes, o ritmo e a construção do enredo, é um primor.

 

 

O filme se divide em três atos, a relação de Shiki em Tomoe, onde se revelam dois assassinos, um sedento de sangue, o outro em profundo remorso por ter “assassinado” a própria mãe. O segundo ato é a organização das peças do tabuleiro, onde Mikiya demonstra a sua habilidade absurda como detetive, seu talento nato em compreender e desvendar mistérios, também conhecemos um pouco mais sobre o seu amor por Shiki, sua devoção ao trabalho, que o afasta por um mês inteiro, pois Touko lhe empurra tarefas adversas, e culmina em se revelar a verdade sobre os habitantes do prédio laboratório de Araya, sobre as cobaias que ele cultiva, sobre a ambição do mesmo de abrir uma fenda na realidade, e o como ele investiga, através de seus experimentos, a anomalia da realidade, sem, no entanto, obter sucesso em subverter a ordem natural do mundo. O terceiro ato do filme apresenta a jornada de Touko, a maga prodígio que abdicou da busca por poder e verdade, para se resignar em uma feliz vida cotidiana, amparada por curiosidade e amigos, vivendo o presente e usufruindo da felicidade dos momentos efêmeros, mesmo que ainda carregue o poder absurdo adquirido no decorrer de décadas de aprimoramento mágico.

 

 

Com o tabuleiro adequadamente posicionado, Ayara usa Tomoe de isca para atrair Shiki, pois o rapaz não sabe de sua real natureza, ele é uma marionete, um corpo artificial construído para cumprir a ambição de Araya. O mago, por sua vez, revela, quando consegue atrair Shiki para sua armadilha, que pretende usar o poder da moça para arrombar o sistema de defesa do mundo, e assim adentrar para além da fronteira da criação, onde a origem e o fim se conectam, onde a costura da forma dá nó na realidade. Esse lugar é o único que pode lhe prover a resposta que mais anseia, ele deseja conceder significado as mortes inúteis que presenciou, e o único meio de concretizar a sua ambição é reconfigurar a própria origem de tudo, mesmo que isso implique em destruir toda a existência como se apresenta. Não sabemos se Araya seria bem sucedido, mas podemos imaginar que seu plano, se pudesse ser efetivado, poderia gerar um efeito cascata, que segundo ele mesmo suspeita, aniquilaria a existência humana da existência. O pior é que esse efeito lhe parece desejável, e sendo ou não um efeito colateral de sua ambição, ele o vê com bons olhos.

 

 

Todos os eventos anteriores protagonizados por Shiki, segundo relata Araya, foram por ele arquitetados, pois ele precisava que ela despertasse a amadurecesse o seu poder ocular. Dentro do prédio mágico, que nada mais é do que uma extensão do próprio corpo de Araya, ele e Shiki lutam duas vezes, ele e Touko lutam duas vezes. Na primeira luta contra Shiki, ele a aprisiona e a coloca em estado de dormência dentro de uma barreira, para fazer os preparativos para substituir o cérebro de Shiki pelo seu próprio, e assim obter controle de seu corpo e poder. Na primeira luta com Touko, descobrimos a habilidade de ambos como magos, ambos dominam a técnica de criar marionetes, e Touko chega até mesmo a criar marionetes vivas, cópias de si mesma, completas e perfeitas, tanto é que o desfecho da luta é a morte de Touko, que não consegue fazer frente a Araya por estar dentro da armadilha e território do inimigo. Araya, entretanto, comete dois erros, um é subestimar a habilidade de Shiki, que tem por fundamento destruir formas, ainda mais barreiras mágicas, o outro é subestimar, ou ter a visão nublada, frente a sua própria criação, ele criou, assim como Touko, uma marionete perfeita demais. Ele criou Tomoe, uma marionete que através do amor, recobrou a liberdade.

 

 

O poderoso mago não consegue fazer frente ao avatar da destruição Shiki, que em um ímpeto de desprezo, aniquila os planos, ambições e a própria vida de Araya. Touko, por sua vez, mata um personagem pouco importante chamado Alba, e salva Mikiya de uma situação drástica.

O quinto filme de Kara no Kyoukai é repleto de conceitos filosóficos e psicológicos, é uma trama muito bem tecida de magia e racionalidade, tanto é que nem irei tocar nessas referências nesse artigo, pois exige um aprofundamento surreal que não conseguiria desenvolver em um artigo curto. E como podem ver, efetivei uma mimese do estilo recortado do filme, com uma direção sublime que nos absorve em segmentos confusos que fazem todo sentido em seu ato final, que amarra todas as pontas das relações dos personagens e nos apresenta o panorama das relações e motivações de todos eles, é uma obra incrível do começo ao fim.

Destaco, por fim, o fato de Azaka, irmã de Mikiya, ser a discípula e aprendiz de maga oficial de Touko, e de que o relacionamento entre Shiki e Mikiya é a coisa mais fofa do mundo. E meus sentimentos por Tomoe e por todos aqueles que foram usados como cobaias de Araya, um antagonista de respeito muito bem apresentado, e que fará falta a partir de agora no decorrer da história. Até a próxima pessoal.

 

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