Retomando às atividades resenhistas em uma passagem rápida, convido-os a mais uma breve jornada. Dentre os labirintos da vida e suas cobranças constantes, acompanhem em Aura, o filme a qual lhes convido a fluir, o quanto a sociedade é ardilosa.

 

 

Nessa história de devaneio, acompanhamos Ichirou, um jovem em busca da aceitação social. Seu passado, segundo ele mesmo revela, custou um preço ao qual não pode pagar. A violência e a repressão, o abandono e o repúdio, a infância que foi obliterada por sua inadequação com o padrão vigente e estabelecido.

O pecado de Ichirou foi realizar a sua fantasia em plena e completa materialização. A sua redenção foi abandonar quase que por completo toda a sua paixão, se submetendo e desejando jamais passar por tamanho sofrimento novamente.

Ichirou, agora em busca de se reconciliar com a normalidade, é perturbado, ou mesmo tragado, por Ryouko, uma jovem que representa exatamente tudo o que ele ama, mas que não pode mais internalizar. Esse conflito é o convite para dialogar e ser a ponte entre o “normal” e o “aberrante”. A fase de transição que mutila e adestra o comportamento, o pensamento e a cognição dos indivíduos.

 

 

O central em Aura: Maryuuin Kouga Saigo no Tatakai, é o conflito entre os mundos. O mundo fantástico e da imaginação é inserido no relógio mecânico do cotidiano, onde Ryouko, efetivando a sua rica imersão, interpreta quase que esquecendo completamente as regras do mundo cinzento que a circunda, o papel de uma heroína, computando e investigando o mundo, se comportando e expressando por vestimenta e linguagem, a realidade paralela que como um câncer, adentra entre a mesmice dos padrões de existência das demais pessoas.

Ichirou não apenas entende isso, como ele mesmo exerce a função de mediação entre os dois mundos. No entanto, o mundo cinzento é hostil as cores que por ele pulsam, os demais alunos, ou mesmo os adultos em geral, tal qual a irmã de Ichirou, não apenas negam veementemente essa extravagância, como buscam a suprimir e extirpar.

Apesar do paradoxo geral do anime, onde Ryouko e os demais otakus pertencentes a sua sala, poderem, segundo a escola, exercer a sua fantasia, os colegas não a aceitam completamente. Para além de Kawaii, uma doce jovem de inocência e gentileza plena, a violência e pressão dos demais é mais do que destrutiva.

 

 

O anime não avança muito junto ao debate ou desdobramento dos conflitos possíveis entre o atrito desses dois mundos, ao contrário, ele valoriza uma linguagem mais simples e acessível, sem grandes questões ou momentos de destaque no roteiro. É uma obra morna, que encanta pela excentricidade, mas não ousa sair ou extrapolar os conflitos para além do banal.

Temos a figura dos jovens aventureiros pelo mundo mágico, que o manifestam e materializam no cotidiano. Seja como uma roupa, um agradecimento ou uma proteção, eles interpretam papéis por eles construídos, tornando a fantasia em realidade. Ichirou, o mediador, ao mesmo tempo que é visto por eles como um salvador, uma pessoa que pertence ao grupo, mas que consegue existir adequadamente do outro lado, e por vezes pode até mesmo defendê-los ou representá-los. Mas Ichirou, por sua vez, não deseja voltar para o lado alucinante de sua paixão, para ele a lição aprendida a duras penas é de que sua liberdade de fantasiar é um incomodo.

Esses personagens secundários não são realmente desenvolvidos, pois o central eu Aura, é o arco de Ryouko, alguém que, ao contrário dos demais otakus, não apenas incorpora o seu mundo de ficção, como o força em relação ao real, sobrepondo o seu comportamento ao reescrever todas as suas relações com a normalidade segundo as suas regras particulares.

 

 

A consequência imediata é o quanto ela se destaca ainda mais em relação aos demais otakus, e facilmente virá alvo de agressão por parte dos demais alunos. Ichirou, novamente, se vê como o único capaz de fazer frente a essa brutal violência, mas no meio do caminho fraqueja, tanto pela sua indecisão e trauma, quanto pela chantagem sofrida por parte do grupo de agressores.

Particularmente, não culpo Ichirou, é uma situação e uma ferida que lhe causam muitos conflitos, no entanto também não podemos em completo perdoá-lo, pois a negligência em relação a agressão sofrida por Ryouko, quase que culmina em desfecho fatalista.

Ryouko não arreda o pé de sua incorporação, ela eleva o tom ao ponto de tornar a situação irremediável. Os agressores, é claro, são culpados em completo pela intolerância e covardia, e também deveriam ser fortemente orientados em relação a situação. Essa situação que vaga em deriva é responsabilidades dos adultos, que como sempre, são representados como impotentes e pouco capazes de mediar qualquer resolução de conflito.

 

 

O desfecho de Aura não me agrada muito, apesar de respeitar e muito a temática da obra, ainda assim vejo o exagero e a falta de intensidade, ou mesmo maturidade e elaboração, com o que essa mesma rica temática é abordada, como um problema. Compreendo que o foco da obra é muito mais a apresentação e ambientação dos personagens centrais e suas características e dilemas, mas gostaria de ver e elevação do tom.

Assim como em Koe no Katachi e outras obras que abordam a violência, a exclusão, o bullying e suas consequências na juventude, Aura poderia estruturar melhor a exposição dos conflitos, mas escolheu direcionar a perspectiva da história para a tenacidade de Ryouko, o que é bastante interessante, mas me deixou com um gosto de que faltou alguma coisa no meio do caminho.

 

 

E por fim e mais importante, gostaria de deixar aqui a contribuição mais do que pertinente e adequada, uma leitura diversa que em muito engrandece as facetas da obra.

Muragami, nosso colega de blog aposentado e dono do canal do youtube: https://www.youtube.com/channel/UCVo8EiNvTDqf2YA2QJH_UyA e de seu blog pessoal: https://matsueki.wordpress.com/

Comentou o seguinte sobre a obra em uma de nossas conversas.

“Eu acho a forma pragmática da obra, no sentido de que tudo é feito para tirar a pessoa da fantasia e trazer para a realidade, algo muito real, idêntico ao que acontece na nossa vida. Esse processo de “adequação normativa” é o que acontece com toda criança, que vai perdendo seu lado lúdico a medida que cresce e vai se inserindo na sociedade.

A respeito do final, quando acontece aquela torre de cadeiras, eu interpretei como uma forma de mostrar para as pessoas normais a potência e concretude da fantasia da Ryouko, para dizer “olha, você acha que isso é só uma loucura, um ‘fingir ser’, quando, na verdade, isso ‘é’, ela de fato ‘vive’ a fantasia”.  Acredito que podemos usar Don Quixote como comparação, porque ele não fingia ser um cavaleiro, ele era um cavaleiro de verdade. É um nível superior ao “fantasiar/interpretar”, é algo que está no plano do “ser”.

O que me encantou na obra é a reflexão sobre algo tão relevante, mas que é moído no massacrante cotidiano: as renúncias que fazemos para nos adequarmos a uma sociedade cruel, onde, em 99% do tempo estamos fazendo algo que não queremos/não gostamos/nos causa dor. A questão do tédio/marasmo/repetição da vida também é muito importante aqui. E isso vai acabar por desaguar no: temos pouco tempo de vida (75 anos não é nada perante a infinitude do universo), e o que estou fazendo com esse pouco tempo? Estou jogando fora realizando atividades que eu nem quero fazer?

Enfim, acho que é um animê que borbulha muitas reflexões relevantes para a vida. E daí eu achar muito interessante a resolução que a obra dá de: no fim, não tem muito o que fazer, você vai ser engolido e normatizado pela sociedade.  Porque essa é a realidade, é exatamente o que acontece com todos nós.”

Esse é apenas um trecho de nossa prosa, a qual pode ser encontrada integralmente nos comentários do vídeo anexado no começo deste artigo!

Grato demais Mura, tanto pela recomendação de anime para a seção aqui desenvolvida, como pelas constantes conversas e debates!!!

 

  1. Yo!
    Eu que agradeço pelo carinho e atenção em ter atendido ao meu pedido. O texto está sensacional. Parabéns! A forma que você escreve deixa tudo mais bonito, utilizando termos relevantes e, ao mesmo tempo, deixando a leitura fluida.
    Sobre o animê não vou me estender porque já falei bastante nos comentários do vídeo, você até inseriu uma parte no texto (fiquei muito feliz com isso), e eu também concordo com os pontos que você levantou (como já tinha falado também): é uma premissa fantástica, mas que não foi desenvolvida ao máximo. Uma pena que tenha sido um movie, porque é uma premissa que dá caldo para muitas temporadas.
    E eu que agradeço por todas as conversas, sempre aprendo muito com você! Gosto muito de conversar com pessoas que sabem mais do que eu, é importante para abrir a mente e enxergar coisas que não eram vistas.

    • ^^ Bom dia Mura!!!
      Novamente, foi nada não mano, agradeço mesmo pelo pedido!!! Grato pelos elogios, apesar de que fiz o texto de modo meio disperso rsrs vlw mesmo!!!
      Que bom que dessa vez a leitura estava tranquila, tem textos em que me perco e fica tudo truncado rsrsrs
      Sobre o anime, de fato, estamos conversando nos comentários lá né, em breve te respondo por lá adequadamente!!!
      E é claro que inseri, foi uma leitura fundamental, e a qual eu não consegui nem imaginar, e esse é o incrível de debater e expandir a nossa percepção sobre as obras! Um complementa a visão do outro!!!
      A ideia e premissa do anime é mesmo necessária, e seria ótimo se a abordagem fosse pro meio de uma série e não um filme apenas, mas bem, indústria né, sempre é complicado materializar os projetos…
      Agradeço demais tbm por todas as conversas Mura!!! Se sabe que aprendizado é sempre uma via de mão dupla, grato mesmo mano!!! Não sei se sei algo a mais, e isso não importa, tbm sempre estou desenvolvendo novas coisas devido a nossa conversa, e assim tbm estou abrindo a mente para coisas não antes refletidas ou elaboradas!!!

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