Cross Ange – ep 6 – Amor servil
[sc:review nota=3]
Quando eu assisti a prévia desse episódio ao fim do episódio da semana passada, achei que a volta da empregada Momoka serviria para revelar informações sobre o estado atual do reino de Misurugi, ou do que um dia foi o reino de Misurugi. Infelizmente, esse anime não se cansa de me frustrar. A empregada apareceu sim, mas ela não diz uma palavra sobre o reino. O episódio inteiro foca na mágoa compreensível que Ange guarda dela por tê-la enganado por todos esses anos, o que também é um tema interessante, mas como todos os outros temas interessantes de Cross Ange, é mal desenvolvido.
Indo direto para o final: Ange não tem uma conversa séria com Momoka sobre os anos de mentira. E ela até tentou, mas a empregada não respondeu nada, negou que tudo tivesse sido uma mentira da mesma forma que Ange negou por tanto tempo que fosse uma norma. E faz sentido que a Ange não queira aceitar sua condição, mas é muito mais difícil entender porque Momoka age assim. De todo modo, Momoka invadiu a base e teve acesso à informações que ela jamais deveria, como o destino das normas capturadas e a existência dos dragões, então acaba sendo decidido que ela deve ser executada. Ela não sabe disso, mas de alguma forma Hilda e suas amigas do núcleo malvado da novela sabem e ficam conversando sobre isso perto de Ange para provocá-la e até mesmo tocam abertamente no assunto mais tarde. Pena que, como sempre, seus planos saem pela culatra (o mal nunca vence, afinal), e porque Ange sabia ela pôde salvar Momoka. Mas por que Ange salvou Momoka se estava tão magoada com ela? O comportamento de Emma, a responsável pela base capaz de usar magia, também é pouco compreensível. Desde que Momoka apareceu ela estava inconformada com o destino que seria dado à garota e instantes antes do que seria o fim ela não teve coragem de encarar a garota, que não sabia que estava partindo em sua última viagem nesse mundo, mas mesmo assim se mostrou indignada e quase se opôs a que Ange a comprasse, e, consequentemente, salvasse sua vida. Por que ela estava indignada? Talvez embora insatisfeita com a regra que tinha que fazer cumprir, ache que cumprir regras seja importante acima de tudo.
Mas e como Ange passou de um poço de rancor contra Momoka para uma pessoa capaz de gastar todas as suas economias e se arriscar sobremaneira numa missão, matando de forma inédita todos os dragões sozinha só para garantir que ganharia ainda mais dinheiro, tudo isso para salvar a vida de sua ex-empregada? Não sei, só sei que foi assim. Quero dizer, talvez a mágoa dela não fosse tão grande assim, ou embora ainda magoada ela não seja uma pessoa tão sem coração assim, e por isso decidiu salvá-la. Conhecendo Cross Ange, contudo, me parece que é um pouco da segunda opção sim (ela não tem sangue de barata, senão faria parte do núcleo malvado da novela), mas acabou perdoando a pobre empregada quando viu que ela guardava com afeto uma cicatriz de quando a princesa fez-lhe um curativo quando eram ainda crianças pequenas ou quando ela disse que a amava e sempre a amaria. É sobre esse amor de Momoka que o título se refere, e sobre o qual quero falar. Mas antes, outro assunto.
Quando elas eram crianças, Momoka quebrou uma boneca de Ange e feriu o braço. A princesa rasgou o próprio vestido para fazer um curativo no ferimento profundo no braço de sua empregada, e quando perguntada porque fazia isso, respondeu que bonecas e vestidos são substituíveis, mas pessoas não são, a Momoka não era. É uma frase poderosa e que eu adicionaria em qualquer código moral ideal se eu fosse louco de fazer coisas assim, mas vindo de Cross Ange e da forma como veio pareceu só apelação, meio vazia até. Quer dizer que a mesma princesa capaz de dizer barbaridades sobre normas e maltratá-los cultiva valores assim tão elevados? Não que seja impossível, mas é muito improvável. E em ficção isso significa que não soa verossímil. Claro que é possível educar uma criança para que tenha os mais altos valores para algumas pessoas e valores totalmente abjetos para outras, simultaneamente, mas por que fariam isso se a própria princesa era uma norma? É no mínimo arriscado. E outra, se a princesa tinha mesmo tanta humanidade em seu coração, o tratamento que ela dispensa às normas não faz sentido. Ela chegou a flertar abertamente com o genocídio das normas! O que quero dizer é: pessoas com valores morais tão elevados podem sim não tratarem a todos igualmente, mas é muito pouco provável que tratassem alguém de forma tão repulsiva assim. Pessoas com valores morais pelo menos razoáveis não são capazes de fazer metade do que a princesa fazia sequer com animais! Isso na média, claro, sempre há as excessões. E a princesa pode ser uma exceção, mas exceções, se não forem explicadas, são apenas falhas no enredo.
Agora sim, a Momoka. Ela ama Ange, não tenho dúvida disso. Ela arrisca a própria vida para se reencontrar com a princesa, e quer reencontrá-la para serví-la. Seu amor é pleno quando ela serve a princesa. Ela passou três dias sem comer, sabe-se lá como estavam as condições do país quando ela saiu dele, como ela descobriu onde a princesa estava, como ela conseguiu chegar em Arzenal, e mais importante, o quanto ela se arriscou fazendo tudo isso. Mas ela fez, e não queria nada de sua princesa em troca. Ao invés, ela queria se dar ainda mais para Ange, e se enchia de tristeza quando a ex-princesa a negava, e estava ainda mais triste quando estava indo embora da base (ela não sabia que ia morrer, estava triste apenas por se separar de Ange). É possível que um empregado, um funcionário, se entregue de corpo e alma assim ao seu patrão? Porque essa era a relação entre elas, patroa e empregada. E sim, isso é possível. Infelizmente é possível. Hoje em dia disfarçam isso com termos como “vestir a camisa”, antigamente os egípcios matavam os empregados para enterrá-los junto de seus senhores, mas o conceito é o mesmo. Veja bem, eu sei que nem sempre “vestir a camisa” é usado nesse sentido, ok? Apenas o vi sendo usado vezes o suficiente e em situações ruins o suficiente para que eu ficasse atento a ele. Mas não se atente a esse termo em particular também, é só uma das formas que empresas mal intencionadas têm para fazer seus funcionários se esfolarem para o bem delas.
O caso de Momoka é ainda pior, pois ela não trabalha para a princesa. Quero dizer, é lógico que trabalha, mas para ela isso não é um trabalho. Ela foi criada desde pequena para que isso fosse apenas sua vida normal. Adicionalmente, vivendo tão próxima à Ange, acabou apaixonando-se por ela. Ou talvez isso também tenha sido induzido de fora? Tanto faz, o resultado é o mesmo. E hoje, nesse momento, muitas mulheres em todo o mundo estão trabalhando em suas casas sem considerar isso um trabalho. Boa parte delas internalizou essa servidão como algo natural, desejável até. E claro que não vai ser Cross Ange a criticar isso. Mas poderíamos esperar que pelo menos animes para o público feminino fizessem essa crítica, não é? Infelizmente, prestem atenção, isso também não é verdade. Mesmo nos romances shoujo mais inofensivos, na maioria esmagadora dos casos, a garota tem a obrigação de fazer coisas pelo namorado: o chocolate de dia dos namorados está sempre presente, e com frequência vemos também trabalhos manuais em tricô. Já o garoto nunca tem que fazer nada. As vezes tem que comprar presentes, mas convenhamos, isso pode até exigir dinheiro, mas o esforço é zero. E nos piores casos vemos a garota se matar de se esforçar, se humilhar, sofrer mesmo, por um garoto que francamente não merece. E isso tudo é considerado normal. Não é à toa que esses bonitões sejam quase sempre chamados em algum ponto da história de “príncipes”. Percebeu como a situação entre a Momoka e a Ange não é assim tão diferente desse tipo de romance shoujo?
E por que estou falando tudo isso, que não diz respeito necessariamente à Cross Ange? Porque Cross Ange é ruim, não tenho muito a dizer sobre ele além disso, mas vi uma oportunidade para tratar de um tema interessante e importante a partir de uma mensagem dele, e estou fazendo isso. Encerro com uma comparação: Cross Ange vs. Ookami Shoujo to Kuro Ouji, o romace shoujo escolar tradicional da temporada. Kyouya (o bonitão) maltrata Erika (a garota), e Ange também maltrata Momoka. Tenho certeza que Kyouya tem seus problemas e seus motivos para agir assim, mas sabemos muito bem que Ange também tem. Erika faz todo tipo de trabalho para Kyouya, se humilha por ele, e Momoka também faz o mesmo por Ange. Erika diz amar Kyouya e isso o impressionou, mas ele não pôde responder da mesma forma, e Momoka fez o mesmo, para a mesma reação de Ange. Kyouya é chamado de príncipe em sua escola, e Ange literalmente era uma princesa. Kyouya salva Erika quando ela precisa, e Ange também salva Momoka quando ela precisa. Claro que são situações e sentimentos diferentes, mas a mensagem que passam é semelhante. Em Cross Ange, um anime para garotos, a protagonista é Ange, o lado forte, que maltrata, que é servido. Em Ookami Shoujo, um anime para garotas, a protagonista é Erika, o lado fraco, maltratado, servil. De verdade, isso é lixo e está ensinando lixo para quem assiste.
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