Bom dia!

Girlish Number é um anime sobre produção de animes. Mais especificamente, a produção de animes do ponto de vista da dublagem. Mais especificamente ainda, é a história de uma dubladora novata, Chitose Karasuma, que quer ser popular e acredita que já tem tudo o que é necessário: talento, beleza e simpatia.

Diferente de Shirobako, que conta a história da produção de um anime do ponto de vista da direção em um estúdio de animação no qual (quase) todos são esforçados e estão dedicados para o sucesso do projeto, preocupados com cada detalhe que lhes vêm à mente, Girlish Number conta a história de uma produção desastrosa, conduzida por irresponsáveis, e com uma protagonista mimada que vai precisar cair na real se quiser mesmo ser alguém nessa indústria.

 

Foi assim, em uma reunião no bar, que em menos de 10 minutos um projeto começou e Chitose se tornou a dubladora do papel feminino principal

 

Chitose é uma dubladora que desde que estreou nunca teve um papel decente. Recebe apenas trabalhos para dublar personagens sem nome ou que aparecem em poucos episódios e têm poucas falas. Não é tão incomum para um mercado competitivo como a dublagem então ela acha que não tem culpa de nada.

Mas tem. Tem muita culpa. Tem máxima culpa. Chitose é preguiçosa, desbocada, desagradável mesmo às vezes, e bully de vez em quando para coroar. É bonita e tem uma personalidade forte, e absolutamente não faz nada disso por mal, mas é o tipo de pessoa que ninguém iria querer ter por perto.

Some-se a isso o fato dela ser uma dubladora ruim. Ela não se dedica à profissão, não estuda a respeito, a última vez que ela estudou foi provavelmente no treinamento da própria agência em que ela trabalha, no começo. Seu irmão, Gojou Karasuma, é seu seu agente e um ex-dublador na mesma agência, e isso não ajuda Chitose em nada, à despeito do bom trabalho que ele faz.

Quando finalmente recebe um trabalho como protagonista em um novo anime, Chitose sequer se dá ao trabalho de ler o material original (uma light novel).

Mas tudo bem, pode-se dizer que ela, desse jeito mesmo, exatamente por ser assim, é a alma dessa produção.

 

Chitose vai na onda de otimismo sem fundamento dos produtores do anime, para desespero de seu irmão

 

Uma produção condenada ao fracasso desde o começo. O produtor, Kuzu (que muito apropriadamente significa “lixo” em japonês), só queria tentar arrancar um dinheiro fácil dos financiadores e tentar usar rostinhos bonitos para vender o anime.

Chitose não foi escolhida por sua competência ou experiência, até porque ela não tem nem uma coisa nem outra. Foi escolhida por ser uma novata bonitinha. Uma profissional barata e que estaria bastante disponível para eventos de promoção do anime.

De um elenco de cinco dubladoras, apenas duas eram famosas e experientes: Kazuha Shibasaki e Momoka Sonou. Claramente estavam lá para atrair atenção para o projeto, ainda que não pudessem estar disponíveis para todos os eventos promocionais.

Kuzu esperava que o anime fizesse sucesso por si só, ou que pelo menos não desse prejuízo, e negligenciou todas as demandas que ele, como produtor, deveria ter atendido. O resultado foi a frustração do autor do material original, vários profissionais importantes abandonando a obra durante a produção, a exaustão do diretor e animadores, e, claro, a péssima qualidade do produto final. E ainda tinha uma segunda temporada contratada.

 

 

A light novel que foi adaptada no anime não foi escolhida por razões, digamos, artísticas. Era uma light novel com harém, e, segundo Kuzu, essa era a moda, então ia dar certo.

Mas não tinha como dar certo se o autor original, Kokakura, era desrespeitado em coisas básicas como character design, o que levou a retrabalho, aumento de custos, perda de tempo e queda da qualidade do produto final.

É curioso que o Diomedea, estúdio que à época de Girlish Number (2016) era famoso por produzir adaptações ruins de light novels genéricas, tenha feito Girlish Number, um anime que conta a história da produção de uma adaptação ruim para anime de uma light novel genérica.

Terá sido um mea culpa do estúdio? É difícil dizer. O pico da produção de animes inspirados em light novels do Diomedea foi em 2015, um ano antes de Girlish Number, quando dos 5 animes do estúdio naquele ano, 3 foram adaptações de light novels, 2 delas na mesma temporada, ou seja, produzidas ao mesmo tempo e competindo por recursos escassos.

De Girlish Number até hoje, porém, o Diomedea só produziu mais um anime adaptado de light novel: Beatless. Ou é tudo coincidência ou alguma coisa aconteceu mesmo, antes do anime ou depois, talvez por causa do anime.

 

Chitose frustrada ao perceber que sua atuação é ruim e está prejudicando todo mundo

 

Mas não escrevi essa resenha para especular sobre o mundo real. De volta à Girlish Number.

O final da primeira temporada do anime foi melancólico. Chitose compareceu a uma festa de encerramento de produção de anime de outra obra no mesmo dia em que seria a de seu anime e pôde notar a diferença gritante. A outra estava cheia, com pessoas felizes e muita comemoração. A dela mais parecia um enterro.

E só não era enterro porque ainda tinha a segunda temporada a caminho. Disseram a ela que aquilo ainda era muito, que em casos como aquele não seria estranho se sequer houvesse uma festa de encerramento.

Não havia sido a primeira aula de “mundo real” da Chitose, porém. Ela foi dura e cruelmente criticada por expectadores em uma transmissão online de material extra com as dubladoras do anime. Gojou chegou em casa e encontrou a irmã em prantos, com o coração partido, sem saber como lidar com o fracasso.

 

Chitose chora ao receber críticas negativas duras

 

Mas no mundo real você pode chorar o quanto quiser, para quem quiser, que isso não irá resolver nada. Chitose ainda tinha um longo caminho pela frente. Após o término da primeira temporada, enquanto Chitose bombava em todas as audições que participava, ao mesmo tempo em que sempre dava um jeito de se convencer que a culpa não era dela, suas colegas novatas Yae Kugayama e Koto Katakura continuaram recebendo propostas de novos papéis e trabalhando,

Para Koto, inclusive, isso foi muito importante, porque ela só era “novata” por nunca ter tido um papel importante, não por idade. Ela é mais velha, se tornou dubladora ao mesmo tempo que Gojou, e estava cogitando desistir a essa altura.

Algo que fica claro ao longo de Girlish Number é como mesmo em uma produção ruim há aqueles que se dedicaram, que se esforçaram até o fim para que aquilo ficasse pronto. Sim, ficou pronto e é péssimo, mas ficou pronto, foi o melhor que conseguiram fazer.

Não é como se eu culpasse cada profissional envolvido na produção de animes ruins, as culpas costumam ser sempre de poucas pessoas, e pessoas chave, mas eu nunca tinha racionalizado isso. Há esforço e dedicação mesmo por trás de um anime horrível.

 

Chitosa corre para chegar a tempo da gravação do último episódio e cai no chão

 

Na metade final de Girlish Number alguns dramas pessoais de personagens secundários são tratados. O destaque fica para as dubladoras Kazuha e Momoka, ambas com problemas com a família. O problema de uma é totalmente o inverso do problema da outra, porém, e isso ajudou ambas e enxergarem sua própria circunstância em uma perspectiva diferente.

O foco eventualmente retornaria para Chitose, como tinha de ser. A produção da segunda temporada estava apenas ligeiramente melhor que a da primeira, e em grande parte porque Kuzu entrou em uma crise depressiva e não estava mais comparecendo a obrigação nenhuma, deixando tudo nos ombros de seu assistente, o muito mais competente Towada. Chitose, porém, não tinha mudado nada, não tinha aprendido nada.

É verdade que um ou outro papel ela pode não ter conseguido porque a audição era um jogo de cartas marcadas. Também é dolorosamente verdadeiro, como o anime não cansa de nos mostrar, que a própria indústria se auto-sabota e muita coisa termina com um padrão de qualidade baixo por causa disso. Mas ela também é parte desse problema, e só no final do anime, encurralada, é que ela entende isso e consegue superar seus defeitos.

Ela continua tendo uma personalidade complicada, isso é quem ela é, mas pelo menos aprendeu que sem esforço ela pode perder tudo tão fácil quanto ganhou. Ela ter sido escolhida para um papel de destaque foi pura sorte e acaso, e não mérito, e nesse pedestal, longe de se tornar instantaneamente admirada, suas deficiências ficaram expostas e sua própria carreira ficou em risco.

A sorte é uma faca de dois gumes. Chitose precisou de sorte para chegar onde chegou, mas uma vez lá, precisou aprender a se esforçar e se dedicar de verdade, para que sua primeira chance não fosse também a última.

 

Chitose no final se desculpa com o resto do elenco

 

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