Aya to Majo (Earwig and the Witch) – O colapso de um legado (Ghibli), liberte-se das correntes e encontre o seu coração (Gorou)
Já resenhei alguns curtas do Ghibli, ou mesmo coproduções, mas essa vai ser a minha primeira resenha com um filme propriamente dito do estúdio. E por que não começar com o mais recente, e provavelmente um dos maiores desastres da marca.
Não vejo o filme Aya to Majo como um fracasso, vejo como um grito de rebeldia, como um habitante do gueto, da periferia e do subúrbio, um excluído. O dilema de Gorou, o filho de Miyazaki, é o seu fardo, sua asfixia.
Aya to Majo é um filme baseado em um livro de uma famosa escritora, e não é a primeira vez que o estúdio adentra por sua literatura. Diana Wynne Jones também escreveu Castelo Animado (Howl’s Moving Castle), que inspirou o filme do Miyazaki pai, Hauru no Ugoku Shiro, e convenhamos, Hayao é um mestre, o que ele consegue fazer no âmbito da animação é irreplicável.
O livro que inspirou o filme Aya to Majo, ao que tudo indica, é um trabalho inconcluso, digo, infelizmente a autora morreu praticamente na mesma época em que terminou o livro, ou seja, é um livro sem retoques, e não sei se estava completo e em seu ápice no momento da morte de Diana.
De todo modo, essa senhora, assim como Miyazaki, é uma lenda, suas obras são dignas de esplendor. No caso dessa obra em questão, e me refiro à releitura cinematográfica de Gorou, percebemos um potencial latente, uma contextualização instigante, um mundo repleto de bruxas e seres místicos, demônios e entidades fantásticas. Entretanto, não somos apresentados para nem sequer a ponta do iceberg que remete a essa amplitude.
Novamente, não sei qual o conteúdo da obra original, mas o que o filho de Miyazaki e equipe nos entregam, é um pedaço de narrativa à deriva, completamente desprendida do continente e vagando sem rumo em direção a lugar nenhum.
Sendo sincero, eu respeito o esforço em se apresentar uma cadência de eventos cotidianos que ilustram os conflitos e as circunstâncias dos personagens, mas nada, e digo absolutamente nada mesmo no filme, dá em algum lugar.
Aya, a protagonista, apesar de razoavelmente bem referenciada na história, com lascas mínimas de delimitações e personalidade, algumas características aqui e ali que definem a sua fronteira de ego, parece deslocada, sem nenhum grande conflito ou propósito, os demais personagens possuem ainda menos densidade, são todos extremamente mecânicos em efetivar os seus papéis.
A bruxa em seu profundo clichê possui motivações mundanas das mais simples, viver o dia a dia e ter um par de mãos a mais para envelhecer enquanto cultiva a sua profissão. Mandrake, o proprietário da residência, demonstra um poder abissal, e só podemos ler nessa figura a representação do fracasso melancólico regado a surtos de raiva, é uma pessoa frustrada, profissionalmente, afetivamente, tudo em sua figura remete a uma decadência ímpar.
O gato preto, Thomas, infelizmente não tem quase nenhum impacto em nenhum momento, apenas entretém por ser simpático e sofredor.
Aya se depara com o conflito de dominar o local, de se tornar a rainha da casa, como seu nome, Ayatsuru (manipular), implica. Ela tem por dom de nascença ser aquela a quem todos servem, que a todos controla.
Devido a completa má estruturação do enredo, o filme se apresenta como momentos soltos, significativos e bem animados, que não concatenam com a narrativa, a qual, aliás, não possui fio condutor forte o suficiente para guiar nada na obra.
Pessoalmente não tenho nada contra as escolhas no fluxo técnico da animação, mas ao que tudo indica, a concepção da ideia colapsou em si mesma, uma apatia emocional bloqueou a restruturação da obra, e o resultado final é um amontoado de retalhos funcionais e ordinários que mais parecem uma prévia do que um percurso completo.
Suponho que Gorou colapsou sobre o peso do nome que carrega, e por tabela e soma, multiplicou isso ao peso do estúdio no qual trabalha. É de conhecimento comum que o diretor se afastou dos veteranos do estúdio e abraçou o projeto com uma equipe inexperiente.
Também é um relato apresentado pelo próprio Gorou, que ele é o único que tem conhecimento no estúdio para levar em frente um projeto nos moldes de animação 3D e CGI, o que o isola ainda mais de qualquer interferência de seus pares mais antigos.
O resultado, infelizmente, é desastroso, ele arrasta um filme que nunca decola, mas que só não o faz devido ao, suponho, colapso estrutural da equipe que nele trabalhou. Como disse já no início do artigo, tanto a obra original, quanto o filme, apresentam elementos que detém muito potencial, que podem expressar uma boa e adequada intensidade.
Podemos perceber claramente que o filme desiste de si mesmo pouco antes de acabar. Todos os conflitos que poderiam se materializar, ou ser repaginados e rearranjados, uma mão de tinta ou duas a mais, tudo isso afunda em uma não conclusão de absolutamente tudo no filme.
Sim, desde o começo o filme peca em adensar a atmosfera do cenário, abandonando cedo demais a introdução de Aya no orfanato, quebrando a narrativa ao se focar apenas na naturalização do cotidiano da residência, esquecendo de iluminar o mágico e o fantástico do cenário, negligenciando os sentimentos e a pressão que poderia se elevar, a energia e o rancor, sofrimento, desafio, tudo isso é conduzido por um caminho apático.
Não desgostei do filme de modo algum, só me sinto frustrado pelo fato de que poderia ter sido muito interessante, de que tudo estava ali, só faltava organizar a casa, polir e acertar os detalhes. E sim, ampliar o tempo total, o filme precisava de mais 40 minutos no mínimo.
Não sei como é o material base, mas se ele não garante esse tipo de adaptação, que se infle, crie por cima, adultere, que se solte as rédeas. E também não sei qual é o contexto de produção, o que tem por trás das cortinas desse filme, se abandonaram o Gorou ou se ele abandonou mesmo aqueles que poderiam ajudá-lo, qual foi o cronograma, os prazos, o orçamento.
O que sabemos, é que o resultado final lembra um segmento promocional, uma amostra, e não a conclusão de uma jornada. O desfecho de Aya é um sonho de verão, o qual, para o espectador, mais parece um pesadelo de inverno. Sua mãe e a banda, a explicitação do passado de todos, ou mesmo o seu melhor amigo de orfanato, tudo apresenta um gosto amargo, representam o sabor de algo que não podia acabar como acabou, eles deveriam estar presentes na história, ter novos arcos e conflitos, expansão e enfrentamento, mas nada acontece.
Realmente, esse filme é só um chamariz de um possível projeto de anime seriado, que se não for concretizado, torna a sua existência praticamente desnecessária.
Fico triste por Gorou, entendo a sua situação e seus sentimentos, entendo o inferno em terra que é estar soterrado por algo muito maior e muito mais luminoso do que a você, compreendo que ele se esforçou e que até conseguiu algum resultado, mesmo que parcial e pífio, que apresentou pequenos momentos de esperança que minguaram pelo resultado final do projeto.
Espero que ele supere essa experiência e encontre a sua própria voz, que se desvincule das suas correntes, e nem que seja para migrar para uma linguagem ocidental, como bem aparenta tender, que encontre um local para chamar de seu, onde sua expressão floresça.