Que episódio foi esse, hein? Se eu dissesse que foi inesperado seria tolice, no máximo posso garantir que meu gosto pela March nublou meu julgamento e não me fez prever esse desfecho. Contudo, é inegável que ele faz sentido por mais cruel que possa ser, até porque bons dramas são assim mesmo, cruéis em suas tragédias e nas transformações que elas provocam em seus personagens. É hora da partida…

Por que a revolta da March não foi uma bobagem? Porque se eu dissesse que ela estava errada em pensar como pensava sobre o urso eu estaria indo contra a natureza inocente e pura de uma criança, que ao ver uma violência sendo cometida na sua frente é capaz de se erguer contra uma adulta. Sim porque foi tudo que a Parona foi ao tentar convencer a March com amenidades, uma adulta insensível.

Felizmente, ela mesma percebeu a besteira que estava fazendo, com a qual eu discordava não só por duvidar da utilidade do ato, mas também pelo que simbolicamente ele transgredia. Como a March mesmo dá a entender, perturbar mais o urso já caído não seria decente, seria macular a morte dele, sua história e meio de vida. Urso o qual, aliás, segundo a própria March, não é o Oniguma porcaria nenhuma.

E por que ela disse isso? Porque ela sabe que aquilo não era um deus, apenas um animal como qualquer outro. Não que os adultos não tenham percebido isso, mas talvez os de Ninanna, que estavam sendo enganados com toda a história odiosa do ritual, caíssem na lorota que a Parona contaria. Aliás, a March também se ergueu em contrário por isso porque a Parona estaria mentindo como qualquer outro adulto.

 

 

E essa é uma das diversas facetas da violência que os adultos infligem as crianças, tantas delas sem nem perceber, ou você acha que a brincadeira monotemática da March é o que além disso? Entendo que os Ninanna não sejam lá muito desenvolvidos, mas por que as mulheres têm que brincar emulando cuidados com o lar e as crianças? Por que quem não faz isso pode ser associado a figura de um pai?

Porque as pessoas são forçadas nesse molde e nem digo que isso em si seja o fim do mundo, afinal, em nenhum momento a March pareceu incomodada em sua brincadeira de ser uma mãe, mas isso não muda o fato de que foi algo imposto a ela, não como se em algum nível qualquer construção social não fosse. A diferença é, há uma escolha além do previsto? A March não teve em nenhum sentido, infelizmente…

O que foi sim bastante cruel, mas, convenhamos, não foi mais realista desse jeito? Digo, dada a personalidade da March não achei forçado ela se jogar na frente de uma flecha para salvar a Parona, ainda mais vendo a dificuldade na qual a amiga se encontrava. Racionalmente a Parona teria mais chances de recuperação se levasse a flechada, mas como pedir a uma criança como a March para ter esse raciocínio?

Uma criança tão sensível e gentil que acabou retribuindo todo o carinho que a Parona havia oferecido a ela desde que se aproximaram e formaram a sua família. Aliás, não é estranho o ciclo, em que a Parona é salva por alguém que a ama, se repetir, e eu não sei se ela vai ficar feliz quando se der conta disso, acho que não, mas ao mesmo tempo não pode significar que ela é muito amada por outras pessoas?

E se ela é (ou melhor, foi) muito amada, a sua vida tem sentido, não? Voltando a March, ela toma o golpe e seu fim não a permite mais fazer nada, tendo ali, em uma cena tão intensa quanto meticulosa, o pouco de alento que a Parona foi capaz de lhe oferecer. Foi uma morte trágica e que deixou um gosto ruim na boca de quem quer que assistiu o anime. Se não incomodou você é porque já deve estar morto por dentro há muito tempo.

 

 

A March era radiante, uma personagem apaixonante como poucas que acompanhei, muito por causa da brilhante atuação de sua seiyuu (a Rie Hikisaka, minha amada Nono Hana de Hugtto! Precure), mas também pela escrita da também brilhante Yoshitoki Oima. Nos mínimos detalhes ela criou uma personagem marcante, que nos faz lembrar de como é bela a inocência e a sinceridade de uma criança.

Mas é claro, nenhum criança é igual a outra, assim como nenhuma história deve ser e eu acho que a da March foi cruel com o público sim, mas não foi nada absurdo o fim que ela teve. Como escrevi ainda nos primeiros artigos, as violências que essa criança sofreu foram inúmeras, no início desse episódio ela quase sofreu uma da própria amiga. Dá para entender ela ter sido pega no fogo cruzado com seu corpo frágil.

A cena do flashback de como a March e a Parona se conheceram foi um soco no estômago em toda sua gentileza e fofura. A Parona não tinha ninguém com quem se importar, a March brincava sozinha, solitária, sem amigos. Aproximar as duas parecia inevitável, além de que, a Parona teve uma irmã que deu a vida por ela, então é óbvio que projetaria na March um pouco a relação que lhe foi roubada.

O destino foi cruel com as duas e ela teve que fazer como a irmã, mas dessa vez de uma posição diferente. Foi cruel com a Parona reviver esse sentimento aterrador de fracasso misturado a solidão que se abateu pela perda da única pessoa com a qual se importava, mas imagina para a March que teve sua vida subtraída sem ter podido viver seus sonhos? No fim, quem mais saiu “ganhando” foi o Fushi, apesar de ter perdido a mãe.

Diferente do narrador, não sou audacioso para dizer que esse arco fez o personagem adquirir humanidade meio que instantaneamente, mas entendo se a ideia for dizer que ao andar lado a lado com essas pessoas, observá-las e aprender o que era a dor, assim como a agradecer, ele começou seu longo caminho ao encontro de uma personalidade que só se constrói nas experiências vividas.

 

 

Então sim, ainda acho cedo para dizer que ele virou “humano” por causa do que se passou com ele, até porque tem discussão aí no que seria essa humanidade, mas é fato que ele está evoluindo e que, se eu não estiver viajando, o anime deu a entender que quando ele “copia” o corpo de outra pessoa, não é só isso que ele pega dela, um resquício de seu espírito se junta a ele, ou algo nesse sentido.

Afinal, depois de vermos a March adulta e ficarmos com um misto entre a tristeza e a felicidade (imagino que você tenha ficado assim também), a cena em que ela se dirige ao Fu e ele encarna a vontade dela em parar a Parona dá a entender isso, que algo dos seres que ele copia reside nele. Um alento para a violência que tomou o futuro de uma garotinha tão radiante?Acho que sim, mesmo que ainda seja bem pouco.

Tem uma cena na abertura em que ele parece ter a forma da March e usa seus poderes, o que após o final desse episódio se justifica. Se nós não vamos ver a March crescer, pelo menos continuaremos vendo seu rosto com o Fushi, o filho adotivo da garotinha que sonhava em ganhar o mundo de uma forma tão simples, mas não conseguiu, experiência que deixou o Fushi triste, mesmo que ele ainda não entenda muita coisa.

Acaba que To Your Eternity nos leva a pensar que viver e morrer são ambas violências, afinal, você não escolhe nascer, como também não escolhe o sofrimento ao qual pode ser acometido ao estar vivo. O que pega é aceitar o primeiro ou não como inevitável, e se aceitar, tentar lutar contra o segundo. Sim, eu não sou a favor do suicídio, mas também não sou intransigente para não pensar que essa não possa ser uma saída.

Mas é claro, isso se a pessoa não achar outra saída, coisa que não acontece com a Parona porque se ela achasse mesmo que não podia conviver com a dor de perder a March ela não teria aceitado o ato do Fu e nem o mandado embora, pensando justamente em protegê-lo como fez com a criança. Ela fez, não pense que a March ter morrido significa que ela fracassou, a Parona fez tudo o que estava ao seu alcance.

 

 

Perder para o mundo é triste, é arrebatador, mas durante nossas vidas quantas vezes não perdemos para ele, não é mesmo? Quando um parente morre, quando temos o coração partido, quando somos demitidos ou simplesmente as coisas não correm da forma que queremos. Somos violentados dia a dia, mas é óbvio que também violentamos aos outros e a nós mesmos, nos chocando contra a Terra talvez sem sentido algum.

Quando a gente lamenta a morte de alguém tão jovem passamos a ideia de que o que há de se lamentar é o tempo que essa pessoa não teve a oportunidade de viver, mas em algum nível espero que eu e você lamentemos pela pessoa em si, pelo que ela era, ainda que saíbamos que a morte é inevitável. Talvez não para um personagem tido como imortal como o Fushi, mas com certeza para os que o cercam.

No fim, os seis meses passaram voando, a Parona voltou para sua terra natal com o corpo da March e um Fushi partindo em retirada, tendo ela não conseguido matar a Hayase em uma cena que muito me tocou pela natureza de seu ato. Não que ela tenha errado conscientemente, mas será que inconscientemente ela não queria matá-la? Depois de perder vidas preciosas, que valor havia em ceifar outras?

Outras vidas, essas não preciosas a ela, obviamente. A questão é, a trama não trabalhou tão explicitamente com essa ideia, de quebrar ciclos de violência, mas acredito que depois de tudo que aconteceu a Parona não vai mais deixar que nenhum Yanome queira cantar de galo na sua terra natal e nem queira seguir com uma farsa egoísta que sacrifica inocentes por interesses escusos.

O ciclo de violência será quebrado fora da tela e espero que depois possamos ver isso. É triste que a March tenha partido, não necessariamente para viabilizar uma realidade sem essa tradição vil, mas compreensível dada a natureza da trama, assim como a crueldade da própria vida, capaz de passar por cima dos sonhos mais encantadores. Espero que o anime não se perca dessas ideias por mais cruel que elas possam ser.

 

 

Por fim, o Fushi tomou a forma da March para si e seguirá também com ela, não deixando ninguém para trás, como não deixou o lobo e o garoto apresentados a ele no primeiro episódio. É a forma que ele tem de deixar claro as pessoas que ele gosta, ainda que para começo de conversa seja seu mecanismo de evolução, afinal, ele sequer teve a oportunidade de se afeiçoar ao lobo, né, apenas assumiu sua forma.

O próximo episódio denota o aparecimento do primeiro “vilão” da série, não a primeira figura antagônica. Não que a Hayase não seja uma vilã, mas ela representa um país, né, e se não me engano a sinopse do Crunchyroll entrega que haverá um vilão de fato e de direito na história. Enfim, o que entendi com a Hayase é que ela pode sim ser vista como vilã, assim como seu país, mas não deve ser uma figura recorrente na trama.

Para finalizar, eu não sei se você percebeu, mas a sacada da direção ao esconder até o último instante que estava havendo uma perseguição foi incrível, pois é o tipo de sensibilidade que deu mais peso ainda as palavras da March, já que por alguns breves momentos pareceu realmente que estava tudo bem e que eles estava a salvo, mas a verdade é que a perseguição era esperada (a prévia entregou também), não tinha jeito.

A vida é cruel e os animes não são obrigados a representar isso, mas um anime como To Your Eternity precisa sim, pois é algo que cabe dentro de sua proposta e abordagem. Repito, a vida é feia e cheia de violências inimagináveis, mas como dizer que não vale a pena vivê-la após conhecer uma personagem como a March, que em algum nível nos reconecta com qualquer coisa boa que possa existir dentro (e fora) de nós.

Até a próxima!

 

Extras

  1. Desculpe, mas ela levou o corpo da March de volta?… Pra mim, por conta da confusão que se seguiu após Fushi impedir que Parona se suicidasse, ele restou para trás, apenas sobrando à amiga um dos bonecos de pano para entregar aos pais, não?

    • Pior que não ficou claro, né? A impressão que tive era de que ela segurava o corpo da March coberto pelos panos, mas o volume me pareceu pequeno demais para ser ela. Ao mesmo tempo, foi tudo bem corrido e não teve uma cena deles enterrando ela, o que eu imagino que a Parona faria questão de fazer.

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