Neon Genesis Evangelion é um prato cheio para fãs que procuram por cenas marcantes. Desde os momentos mais simples, como o beijo entre dois adolescentes, até o cenário apocalíptico de alguns episódios, EVA pode facilmente alugar um espaço na mente de milhares de pessoas.

Dentre as várias razões para esse fenômeno, a principal delas é o cuidado que Evangelion tem de sempre ser tematicamente relevante, o que faz com que mesmo as cenas mais banais possam carregar uma enorme importância e serem citadas como pontos de virada muito tempo depois.

Dentre todos os grandes momentos do anime, aquele que mais marcou a minha experiência ocorreu no episódio 22, no confronto de Asuka Langley com o anjo Arael.

O maior motivo disso é porque além desse ser um dos momentos mais brutais de toda a franquia, também é um ponto de virada para o arco da Asuka, e um ótimo microcosmo para os temas da obra.

Nesse episódio vemos a infância de Asuka e como os últimos dias de sua mãe foram a razão para que a piloto buscasse não só o sucesso, mas a superioridade em relação a todos a sua volta. Porém, nesse ponto do anime Asuka já havia sido derrotada diversas vezes, e cada um desses fracassos destroçaram sua autoimagem.

E isso, junto de sua falha em seduzir Kaji e em atrair a atenção de Shinji, que dava mais atenção a Ayanami, e por sua salvadora ter sido Rei dentre todas as pessoas, faz com que a alemã desabe emocionalmente por crer que falhou não só como piloto, mas também como mulher após ser derrotada mais uma vez pelo anjo.

Arael usa um ataque mental que força a piloto a se confrontar com a faceta forte e inabalável com a qual ele se protegeu, junto das lembranças da mãe que a via como uma boneca. A piloto passa então a clamar por sua mãe ao mesmo tempo que reafirma sua individualidade.

E não é só isso, mas um toque muito sutil na direção desse episódio é o uso de cinco dubladoras diferentes para cada vez que Asuka se depara com cenas de si mesma. Essas dubladoras são todo o elenco feminino de Evangelion, o que representa o quão baixo Asuka se enxerga como mulher, pois imagina toda personagem feminina a ridicularizando.

Abaixo segue uma listinha das dubladoras e para quais personagens elas emprestam suas vozes:

  • Kotono Mitsuishi (Misato);
  • Megumi Hayashibara (Rei);
  • Junko Iwao (Hikari);
  • Yuriko Yamaguchi (Ritsuko);
  • Miki Nagasawa (Maya).

Contudo, o mais interessante nessa cena é o diálogo de Asuka fora de sua batalha mental interna. Falas como: “Ele violou minha mente” e “O que eu faço agora Kaji ? Eu fui contaminada”, dão um tom particularmente sexual para essa cena.

E por mais que existam pequenas diferenças nas diversas dublagens e legendas de Evangelion (eu não falo japonês para garantir o significado) essa caracterização sempre se mantém presente, seja com maior ou menor intensidade. E esse detalhe que faz essa cena tão importante em relação aos temas da obra.

Evangelion trata de diversos temas, mas o cerne da obra é uma discussão sobre individualismo e auto preservação, o que a obra resume em seu início através do dilema do ouriço.

Esse debate ocorre majoritariamente através do arco de Shinji Ikari, e como seus relacionamentos impactam sua vida e a daqueles ao seu redor. Com o decorrer do anime vemos Shinji tentar se conectar com diversos personagens de várias maneiras, e uma das mais impactantes é através de suas experiências amorosas e sexuais.

Dois dos momentos em que o protagonista mais se torna íntimo de alguém são quando ele beija Asuka e Misato. Isso também é representado nos demais personagens: Misato se abre emocionalmente quando está com o homem que ama, Gendo só revela seus sentimentos na presença de sua mulher.

Já Rei encontra sua individualidade através do que sentia por Shinji. Mas a cena que mais solidifica essa ideia se encontra em The End of Evangelion, quando a instrumentalização já removeu toda individualidade e transformou a raça humana na sopa primordial.

A forma como a obra retrata esse evento é com Rei por cima de Shinji, em um interlúdio de seus corpos, com um breve foco na virilha de ambos para mostrar que suas genitais também estão conectados.

Com isso, Evangelion deixa claro que o amor (tanto o platônico, quanto o sexual) são algumas conexões das mais íntimas que alguém pode ter. E se a intimidade via amor é algo positivo, então é claro que conexões via violência, como estupro, são terríveis.

A conclusão temática de Evangelion acontece quando seu protagonista passa a aceitar a dor que as outras pessoas podem causar como um efeito colateral de formar laços, e também a crer que é digno de amor. E assim aceita sua individualidade e rejeita o coletivismo máximo que a instrumentalização representa.

E apesar dessas mensagens serem boa parte do texto do anime, uma outro grande tema igualmente importante para a obra é a discussão sobre os perigos do uso da própria individualidade para suprimir a do outro.

Um dos momentos mais importantes para o arco do Shinji é quando ele desesperadamente clama pelo suporte de Asuka, e ao ser rejeitado, o rapaz responde com um estrangulamento.

Essa cena demonstra qual é o maior problema do protagonista: Ele não quer formar reais conexões com pessoas, mas sim usá-las como objetos de autoafirmação; E sem se importar com os problemas que cada um de seus entes queridos possa estar enfrentando.

Essa indiferença quanto ao bem estar do outro em prol das próprias vontades é algo que a obra aborda com frequência. Como, por exemplo, ocorre com os anjos Arael e Armisael, que tentam respectivamente entender o coração de Asuka e se fundir com Rei.

Mas o maior exemplo disso é a relação entre Gendo e Rei, em que a garota literalmente é criada para não possuir individualidade, para ser uma ferramenta nos planos do general e uma substituta para sua esposa. É justamente essa visão do outro como objeto que impediu Gendo de seguir em frente após a morte de sua amada.

E apesar de Evangelion guardar muita catarse para o final, a resposta para essa questão nos é dada no meio do anime, através do relacionamento de Misato e Kaji.

O que torna essa relação especial é que os membros não só se conectam em um nível amoroso e sexual, mas diferente de Gendo, os dois adultos não só tentam se entender, como compreendem seus limites. Apesar de se amarem, Misato e Kaji possuem as próprias histórias, os próprios objetivos e personalidades que colidem constantemente.

Eles se tratam como indivíduos, por isso, apesar de saberem a importância de um bom suporte emocional, também compreendem que seus objetivos divergem, e quando chega a hora de se separarem eles conseguem seguir em frente apesar da dor. Coisa que Gendo e nem Shinji puderam fazer devido as suas visões objetificadoras das pessoas.

Ainda que as relações dos homens Ikari sejam ricas em peso temático, elas carecem de uma mudança de ponto de vista para mostrarem a extensão dos impactos que elas causam.

Apesar da relação de Gendo com a Rei focar mais na garota, o arco dela é deixar de ser uma folha em branco, e apesar dessa condição ser culpa dele, ela é o estado padrão da personagem e não algo a qual ela teve que se sujeitar. Já a cena do estrangulamento, apesar de vital para a obra, tem como foco o Shinji, ao invés da real vítima em cena.

É aí que o confronto com Arael brilha, pois essa cena não só retrata o terror que é ser forçada a se submeter ao desejo de outro ser, como também gera consequências nas habilidades de comunicação de Asuka, o que a leva a uma vida de escapismo da qual ela própria tenta fugir através da morte.

O maior valor dos efeitos da luta com Arael é demonstrar de maneira o mais impactante possível que Evangelion não é só uma obra sobre aprender o valor da individualidade e a sempre perseverar, mas também uma história sobre empatia.

E por muitos dos conflitos da obra se basearem na falta de comunicação e na falta de maiores tentativas de entendimento mútuo, é importante existir uma cena que demonstre não só as consequências futuras, como as imediatas desses problemas.

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