Citrus – A laranja azedou
Citrus é um anime baseado no mangá yuri mais popular da atualidade no Japão, o que garantiu que fosse relativamente bem produzido pelo estúdio Passione, e foi ao ar na temporada de inverno de 2018. A estrutura da história lembra um pouco um mangá shoujo, pois a aluna nova se apaixona pela sua senpai, nesse caso a presidente do conselho estudantil da escola, mas existem muitas coisas que as impedem de ficarem juntas. Em Citrus, essas coisas foram tanto o melhor quanto o pior do anime.
A premissa de que a garota, com visual e jeito descolado, vai estudar em um colégio feminino conservador e lá se apaixonada por uma colega é clichê, porém, se essa colega fosse filha do marido da sua mãe, a coisa não mudaria drasticamente de figura? Quando isso acontece no Japão, os filhos tornam-se irmãos, independentemente da ausência do laço sanguíneo, o que dificultaria ainda mais um desenvolvimento amoroso e tornaria inevitavelmente essa a história de um drama interessante, não fosse a sua contestável execução, que tanto não explora bem o preconceito com uma relação homoafetiva, quanto não aproveita bem o fato de ela acontecer em um ambiente familiar. Além disso, a forma como se dá o interesse amoroso da protagonista, Yuzu, pela sua “irmã”, Mei, é questionável.
Roubar um beijo é uma coisa – e ainda assim é passível de questionamento –, agora agarrar a pessoa e “calar a boca” dela com um beijo chega a ser bizarro, ainda mais se é a Mei, a presidente do conselho estudantil, que até tinha um noivo que foi facilmente jogado para escanteio. Isso foi estranho, tanto por ser inesperado, quanto por não haver qualquer explicação para justificar tal ato inusitado.
A verdade é que é a partir de um ato de abuso que essa relação começa a se desenvolver e se encaminhar para o lado amoroso, o que não é saudável. Entretanto, o pior nem é isso – e isso já é ruim –, e sim a forma como a trama tenta justificar esse e vários outros atos incoerentes da personagem Mei. Incoerentes por seu drama pessoal não ser compatível com esses atos.
Citrus é uma história de drama e romance na qual primeiro o drama em foco tem que ser “resolvido” para que o romance chegue a algum lugar, o que faz sentido. Contudo, no momento em que o drama não é bem resolvido, isso prejudica o envolvimento com o romance das duas protagonistas. E o primeiro arco do anime trata justamente disso, de resolver um drama relacionado à personagem Mei para que só assim as duas possam ficar juntas. Esse arco compreendeu a primeira metade do anime e possui diversos problemas, principalmente porque o que justificaria a indiferença e rispidez da Mei não faz muito sentido.
Ela sente a ausência do pai, mas o pai dela é um cara legal que teve motivos plausíveis para se afastar da filha e, ainda assim, tentava uma aproximação. Ela sentir isso e mudar seu jeito de ser é algo até compreensível, agora é motivo suficiente para descontar isso nos outros? Para sair beijando a nova irmã do nada? Para se distanciar da única amiga? Para não se importar com os sentimentos alheios?
Se o pai dela fosse um crápula que a batia nela ou que a abandonou por nenhum motivo minimamente coerente, eu não reclamaria disso, mas pela forma como esse pai ausente aparece na história, ele pode ser tudo, menos o monstro que seria natural se esperar. Ainda assim, na medida do possível, o desfecho do arco inicial não é tão ruim e indica uma mudança para melhor na personagem Mei. O que seria muito bem-vindo e faria jus a todos os esforços da Yuzu de reaproximá-la do pai e apoiá-la no momento em que a irmã mais precisava, não fossem os péssimos arcos que vêm logo em seguida.
O arco da Matsuri, uma vilã caricata e insuportável, que compreende os episódios 7 ao 9; e o arco final das irmãs gêmeas, que compreende os episódios 10 e 12. Antes de comentá-los, não posso deixar de registrar aqui a minha insatisfação com a falta de contextualização do romance lésbico no meio social das personagens.
Até certo ponto da história, elas se restringem porque é um tabu duas garotas namorarem, até que no último arco aparecem as irmãs e uma delas brada aos quatro ventos que não teria problema algum em se relacionar com outra garota. Isso não é exatamente um problema, mas a trama tenta em vários momentos se valer de uma “pressão social” pela relação heteroafetiva, que não é bem construída – não há nada no entorno delas que as esteja pressionando para não serem lésbicas – para do nada aparecer uma personagem que põe tudo isso de lado com certa “facilidade”.
Tudo bem que a relação amorosa das duas sequer se concretizou até o final do anime e que nem a mãe nem o pai sabiam de nada daquilo, mas se era para usar esse argumento como algo que as desmotivasse a tentar namorar, então que tivessem construído isso de uma forma melhor. Não é porque a sociedade é machista que já está subentendido que quem for contra a heteroafetividade vai “se dar mal”. Afinal, a irmã que se apaixona pela Mei não demonstrou ter problemas quanto a isso.
Enfim, voltando ao arco da Matsuri, ela é uma vilã caricata que por nenhum motivo claro ou plausível tenta afastar a Yuzu da Mei para ter a primeira só para isso. Não dá certo, é claro que não daria, mas a forma como a Yuzu “passa a mão” na cabeça da Matsuri é preocupante, pois a garota chantageia a Mei e ela sequer é repreendida por isso. Assim foram estragando a boa personagem que era a Yuzu…
Aliás, faz sentido beijar quem quer “tomar” de você alguém de que você gosta? Na cena em que ocorre o beijo da Mei na Matsuri, eu esperava um tapa, mas um beijo? É sério isso? Até o fim do anime eu juro que não entendi porque a Mei tinha essa mania de beijar as pessoas para “calar a boca” delas. Isso não faz sentido algum!
No final, a Yuzu diz belas palavras para a Matsuri, mas não a repreende e “tudo acaba em pizza“. A aparente evolução que a Mei estava desenvolvendo acaba quase que sendo completamente jogada fora, não fosse a cena em que ela meio que se declara para a Yuzu e deixa claro que quer ficar com ela. Mas aí o que a Yuzu faz? Recusa. O que acaba só estendendo um drama sob a justificativa de que elas teriam que encarar diversas adversidades para ficarem juntas, o que até está implícito, mas o anime se importou em trabalhar um pouco esses problemas? Elas não poderiam começar a namorar escondido e depois pensar em uma forma de comunicar isso a família?
No final, ficou parecendo mais que o problema era dela, que ela não tinha certeza do que sentia nem se estava disposta a se arriscar assim, do que uma decisão tomada por fatores externos. O que, dado a tudo o que a Yuzu fez e a todas as vezes em que reafirmou seus sentimentos, me pareceu meio inconsistente.
Eu compreendo a insegurança da Yuzu, mas é justo ela, a que se apaixonou primeiro e “fez das tripas coração” pela Mei, quem se sente assim? Mesmo continuando incoerente em quase todos os sentidos, declarar-se fez parecer que a Mei amadureceu; e a Yuzu não aceitar depois de tudo, fez parecer que agora era ela quem estava regredindo.
As duas se distanciam uma da outra, o que era esperado devido à imaturidade de ambas, e é aí que entram as novas irmãs para conturbar a relação das protagonistas e fazer com que elas percebam que queriam realmente ficar juntas. Isso aconteceu em um arco que explorou os piores defeitos da obra, infelizmente se valendo pouco de suas qualidades.
Ao menos no final, as duas finalmente decidem ficar juntas, mas a Yuzu, que era a personagem mais agradável da história, com o tempo passou a ser um pouco insuportável por sempre se deixar levar pelo que acontecia a sua volta. A Mei é uma colcha de retalhos, ora sendo coerente e demonstrando alguma evolução, ora agindo exatamente como agia nos episódios anteriores, parecendo que não mudou tanto assim ainda que tenha com o tempo se tornado capaz de sorrir.
O drama pessoal da Mei foi resolvido de forma muito simples e rápida, o que aprofundou ainda mais a sensação de que nada do que aquele pai fez foi motivo para a filha mudar tanto, e para pior. A Yuzu começa como uma personagem muito divertida e interessante, mas que, tirando os momentos em que recusa a Mei ou se esforça para ajudá-la, vai tendo seu brilho apagado ao longo da narrativa.
A Momokino foi usada por conveniência, e a Harumin é apenas um alívio cômico de luxo, mas até aí tudo bem, isso não foi tanto um problema, já que pelo menos a primeira acaba a história melhor do que começou e a segunda sempre foi constante – mesmo que nada muito útil.
A Matsuri foi um erro do começo ao fim e no final acaba é dando conselhos à Yuzu – poderiam ter deixado ela de lado ao final do seu arco, né? As irmãs da reta final realmente não são personagens tão agradáveis ou que fogem de um clichê aqui e acolá, mas elas não incomodariam tanto se não tivessem sido usadas em um arco que existiu somente para alongar um drama que poderia ser resolvido de forma bem melhor.
O saldo final de Citrus é positivo? Não, pois a história cai muito em clichês e não desenvolve bem o drama das suas personagens, algo extremamente crucial quando se trata de um romance cujo drama é imprescindível para o seu desenvolvimento. A ideia era muito boa e a produção do anime foi boa, “só” falhou demais em execução. O anime romantiza uma relação abusiva – com o tempo isso vai mudando de figura, mas no começo é bastante isso sim – e tem como seu maior ponto fraco aquele que deveria ter sido seu grande ponto forte: a personagem Mei e todos os dramas que a envolvem.
Lembrando que essa resenha se refere somente ao anime, se houve alguma drástica alteração na adaptação não me cabe julgá-la ou ver o anime com outros olhos por conta disso. Me despeço com a certeza de que o anime de Citrus é bem ruim. Mas isso não quer dizer que não seja do seu agrado, então se ainda não assistiu, veja por sua conta e risco. Inclusive, o mangá deve ser lançado no Brasil ainda no ano de 2018 pela editora New Pop. Caso queiram ler para comprar ambas as mídias a hora é agora! Caso não queiram, podem ficar só com o anime mesmo – ou nem com isso.
Yuriko
O mangá tem mais história mas não muda muita coisa