Millenium Actress é um anime que eu amo, uma obra-prima que tem por natureza ser uma montanha-russa de emoções. Escolhi esse anime como objeto de análise e fonte inspiradora para uma apresentação em uma das mesas de um evento que participarei. Deixo os detalhes desse evento, linkados aqui. No momento em que esse artigo tiver sido publicado, o evento já terá transcorrido, mas se tudo der certo, haverá gravações dessa mesa, à qual, se houver, disponibilizarei também junto a outro hyperlink pertinente no corpo do artigo.

 

 

O mote que me inspirou em debater esse anime junto a um evento de filosofia intercultural, pode ser descrito da seguinte forma. Toda e qualquer filosofia que não possa ser transcrita e adaptada na forma de uma narrativa ou história, não pode ser considerada uma filosofia, e reciprocamente, toda e qualquer narrativa ou história que não possa ser transcrita e adaptada na forma de uma filosofia ou investigação filosófica, não é uma narrativa e nem uma história.

 

 

O pensamento e a cultura humana, independente da forma ou do recipiente que acabem pôr a naturalizar, são expressões culturais de nosso intelecto e de nossa razão no mundo, e assim sendo, possuem a essência filosófica nas possibilidades de seus desdobramentos e apropriações, culminando, também, na presença desta mesma essência em sua forma mais pura, àquela que abre portas para diálogos que só podem ser repelidos pela finitude e obliteração da morte. A pergunta que podemos nos fazer nessa situação, a qual também preenche a obra de referência deste artigo, é: escolhemos morrer ainda em vida?

 

 

Millennium Actress, de Satoshi Kon, é uma animação que pode e deve ser um objeto de análise filosófica. O filme possuí uma generosidade narrativa capaz de fornecer aparato mais do que amplo para uma teoria filosófica aplicada.

Para além da intensidade estético emotiva da película, a fluidez da identidade sob a égide do sentimento do amor como manifestação de(o) ser, que se direciona ao encontro da humanidade. Esse processo de busca que se entremeia pelo enredo do filme, onde a protagonista se dissolve em seu apego a um destino inalcançável, e ao mesmo tempo, se materializa exatamente nesse processo de busca, se afirmando como humana e como ser que ama, mesmo sem ter uma identidade própria, real e humana, para além de suas máscaras.

 

 

O percurso do amor em direção a humanidade, apresentado na animação Millennium Actress, pode ser entendido não apenas como um sentimento, mas sim como fluxo impessoal que vaga entre os laços e as relações humanas, sempre almejando se concretizar, ser pleno. O percurso que a personagem desenvolve durante a trama, sendo ela, tal como o seu sentimento, transpessoal e atemporal, é a chave que ela carrega, literalmente, sendo está o seu estigma que demarca o fato de ela sempre estar em busca do inalcançável.

 

 

A identidade da personagem se materializa pela alegoria de seu sentimento, sua história e motivação, mas não pela sua “humanidade”. Desse modo, a partir da jornada de descoberta e do sentimento de apego, se garante a busca pela afirmação do sujeito rumo à plenitude da identidade pessoal, tal que, duplamente, está tanto é atingida pelo constante rastreio da mesma, rastreio que jamais se concretiza em clímax, quanto pelo próprio ato de percurso, o qual acaba, por sua vez, por dignificar todo o esforço de sua ambição.

 

 

Chiyoko, nossa atriz milenar, está envolta pela ficção como seu modo de vida, sendo mesmo essa ficção a sua própria realidade. É inseparável e indistinguível àquilo que ela vivencia como privado, e aquilo que ela apresenta e interpreta como e para o público. As máscaras que veste, os papéis sobre os quais atua e materializa junto ao palco, representam a sua própria identidade, e não importa quem seja que ela interprete, ela interpreta a si mesma. Ela é o ser multifacetado que não possui um rosto próprio e pessoal, mas sim a coletividade de seus personagens, todos os quais são partes de um todo, e ainda mais, são ela em sua completude e percurso de vida.

 

 

O único fragmento de realidade que o filme nos apresenta é quando Chiyoko, já muito idosa, concede ao seu fã número 1, o documentarista Genya, que conviveu com ela, mesmo sem ser percebido, durante quase toda a sua carreira, uma entrevista em sua casa. Mas mesmo essa entrevista se transforma em uma nova atuação para Chiyoko, uma nova máscara que reveste a sua busca incessante pelo amor de sua vida.

 

 

Quando imagino o percurso de nossa atriz em paralelo com o objetivo que a guiou por toda essa jornada, não posso deixar de me maravilhar no como é incrível o quanto o amor preenche a sua vida, esse sentimento arrastou a sua carreira por todas as intensidades e sabores que alguém poderia desejar. Ela amou a sua carreira, e ela amou até mesmo o ódio que sentia de si mesma, de sua incapacidade em abraçar o amor último, ou mesmo de sua decadência frente ao inevitável do envelhecimento e mudança. Sua gana em perseguir o objeto humano que não passava de uma miragem impossível de se efetivar. Esse amor revestiu toda a amargura e a arremessou na mais intensa e plena vida que poderia almejar. Jamais chegando ao fim, mas ao mesmo tempo tornando-se humana e efemeramente humana. As estrelas, o puro e estéril destino de uma morte, de uma nova etapa no além e no imaterial.

 

 

Chiyoko é a filosofia de uma vida sem qualquer identidade, atada pelos laços que se dissolvem e que nos revelam que cada uma das partes, das atuações e dos papéis, são vazios, são fúteis e impermanentes, mas revestidos dessa transformação e dessa potência, junto a completude e ao ímpeto indescritível do ato de amar, ela humaniza a si, a tudo e a todos. No palco da vida sua atuação é perfeita.

Nesse vídeo em hyperlink aprofundo uma outra leitura, com maior enfase na especulação filosófica a partir da obra!

 

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