[sc:review nota=1]

Tive dificuldade em manter a suspensão de descrença assistindo esse episódio. Estou assistindo fantasias as mais variadas, futuros distópicos, mãos falantes e colegiais que de repente despertam super-poderes mas o que me incomoda é uma série sem nenhum elemento fantástico. A culpa é quase toda da Kaori, a protagonista. Em um mundo aparentemente normal, igualzinho ao meu, uma japonesa com aparência nórdica, que se comporta como a fada das pombas e que muda de personalidade mais rápido do que eu pisco me soou extremamente falso e forçado. Eu sei, e já vou chegar lá, que tudo isso tem explicação. É só que não importa quão convincentes sejam as explicações, algumas coisas acabam chamando atenção de qualquer jeito.

“Miau”. Que garota de 14 anos corre atrás de um gato e diz “miau”?

“Miau”. Que garota de 14 anos corre atrás de um gato e diz “miau”?

Começando pela aparência dela. Eu sei, todo mundo sabe e ninguém precisa ser lembrado disso, que animes são estilizados. Que se fossem realistas e todos seus japoneses parecessem japoneses, até os japoneses teriam dificuldade para identificar cada personagem. Eu sei disso. Mas dentro da estética que o próprio anime adotou ela destoa. Ninguém lá é excessivamente estilizado. Não vemos cabelos verdes, azuis, não existem personagens SD. Mas há ela, de pele clara como a neve e cabelos louros e compridos. Ela se destaca demais, não dá para não achá-la deslocada. É lógico que eu sei que ela é uma japonesa normal, a diferença é que é bonita bem acima da média (e para o padrão de beleza japonesa ser bonita significa ter a pele clara como porcelana) e seu cabelo deve mesmo ser levemente ondulado e CASTANHO (talvez até um raro castanho claro, será que existem orientais com cabelos castanho claro naturais?). Na verdade o episódio até já havia se antecipado e dito que não devemos acreditar em nada que vemos, quando Kousei, o protagonista que claramente possui seus olhos pintados de azul, diz que ele tem olhos castanho escuro. E ele diz isso com a câmara focada no rosto dele. Foi quase um momento de dissonância cognitiva.

O casal destinado a não dar certo

O casal destinado a não dar certo

A personalidade e o comportamento da Kaori também chamam atenção como uma ferida aberta. Não que os personagens sejam todos normais, mas eles são todos, até aqui, críveis na maior parte do tempo. Mas não teve uma cena da Kaori que ela tenha parecido uma pessoa real, uma garota (para ser mais preciso, uma criança) que eu poderia encontrar na rua um dia. A parte mais normal foi quando ela correu atrás de um gato. Eu já corri atrás de gatos, mas isso quando eu tinha sete, oito anos. Ela tem quatorze! E saiu correndo atrás de uma droga de um gato por ruas e através de obstáculos. Depois, quando o protagonista a encontra pela primeira vez, ela está tocando uma escaleta em cima cima de um brinquedo de um parquinho para atrair pombas. É tudo absurdo! Sério, quem faz isso? Quem faria isso? Que menina de quatorze anos faz isso? Depois ela chama três crianças para se unirem a ela, e as crianças devem ser gênios musicais porque elas todas tocando juntas à Kaori soaram muito bem, tocaram uma música de verdade, com harmonia e ritmo e tudo o mais. Posso dizer que acho aquela música uma droga, mas permaneço perplexo com o fato deles terem conseguido improvisar ali uma banda com sucesso. E falando em sucesso: as pombas vieram! Não é possível, a Kaori deve ser uma fada da música, não pode ser.

Coloque esquilos e coelhos nessa cena e temos a Branca de Neve

Coloque esquilos e coelhos nessa cena e temos a Branca de Neve

E para fechar com chave de ouro, apesar dela amar gatos, crianças, música e pombas, ela aparenta ter uma personalidade ruim. Quando por coincidências que só acontecem em animes ela achou que talvez Kousei tivesse tirado uma foto da calcinha dela, ela reagiu como toda garota normal e saltou enfurecida em cima dele, não quis ouvir o que ele tinha para dizer e o espancou com a escaleta. Lógico que a cena é tão verdadeira quanto os olhos azuis de Kousei, e o que é exibido não pode ser entendido pelo que é, mas reinterpretado para algo verossímil. Então na verdade ela só ficou com raiva e gritou com o garoto, e deve ter batido uma ou duas vezes nele com o instrumento mas não com força de verdade senão escaleta e Kousei estariam bem machucados. Mas é chato ficar reencenando tudo mentalmente desse jeito.

Reação proporcional e justa

Reação proporcional e justa

Porém, apesar do espaço ocupado e da quantidade de texto gasta, esse problema de verossimilhança da Kaori é o menor do episódio. Não porque não seja um problema importante, mas porque ela aparece relativamente pouco mesmo, ou seja, isso pode incomodar mais nos episódios seguintes. Nesse episódio de estreia o que incomodou foi o tom geral do anime. Talvez eu seja muito inocente, mas eu li a sinopse e achei que iria assistir um drama com tema musical. E há drama, há música, mas os dois parecem estar em segundo plano. O drama até agora é a história de vida do Kousei: foi criado e maltratado pela mãe doente quando criança para que se tornasse um pianista de nível internacional que ela nunca poderia ser. E não há sutileza nenhuma, ela maltrata ele de forma literal e declara com todas as palavras que ele tem que alcançar sucesso no lugar dela. Só que quando ele finalmente teve chance de participar de um concurso que poderia levá-lo à Europa, sua mãe morreu. E isso o abala até hoje. É tão absurdo que alguém de fora, como eu, que estou apenas assistindo, tem até dificuldade para entender porque ele considera isso um problema tão grande, mas é só pensar e considerar que ele passou por tudo aquilo enquanto era criança, que ela era a sua mãe, e que de alguma forma aquela cabecinha infantil associou o sucesso no piano à cura da mãe. Que criança iria querer perder a mãe, por mais abusiva que ela seja? E tenho certeza que hoje ele entende que não importa quão bem ele tocasse, isso nada tem a ver com a morte de sua mãe. Mas um trauma é um trauma é um trauma.

A banda improvisada que tocou incrivelmente bem

A banda improvisada que tocou incrivelmente bem

O drama é esse, ele existe, mas ele ocupa tão pouco tempo de tela, ele parece influenciar tão pouco o que vemos acontecendo, e quando ele é entregue é através de uma interrupção tão brusca de continuidade que ele parece isolado e pequeno. Quanto à música, eu não esperava algo excepcional como BECK ou Nodame Cantabile, mas não esperava também algo abaixo de K-ON. A música é só um pretexto, tanto que a música que mais toca durante o episódio é a música de abertura, que por alguma razão era a música que Kousei estava transcrevendo para uma partitura de ouvido, ou coisa assim, porque isso parece ser um emprego free-lance que ele tem. Por que usaram a mesma música (irritante) da abertura? Para me fazer enjoar dela o mais rápido possível? Para mim soou preguiça de usar uma música diferente. E tem a cena absolutamente inacreditável (no sentido literal mesmo, de eu não acreditar que aquilo seja possível) da Kaori formando uma banda improvisada com quatro crianças em um parquinho e eles tocando bem juntos. Estão maltratando a música. Para que serve a música, então, em Shigatsu? Serve exatamente para o que disse a amiga de infância de Kousei, e que gosta dele mas não vai confessar antes de ser tarde demais, naturalmente: é um tema comum entre Kousei e Kaori. Os dois entendem de música, então eles têm algo em comum. É só uma ponte. Mas para isso qualquer coisa serviria, não precisava ser música. Poderia ser teatro, ou culinária, ou futebol de botão. Escolha aí um tema.

Excesso de cenas estilizadas desse jeito é irritante também

Excesso de cenas estilizadas desse jeito é irritante também

Não é drama e não é musical. É, obviamente, um romance. Kousei vai se apaixonar por Kaori, que deve se apaixonar por Kousei também mas por enquanto gosta é do capitão do time de futebol, que gosta de todas as garotas bonitas do mundo. Há ainda a amiga de infância, que como eu disse, gosta do Kousei. Talvez adicionem mais vértices e esse polígono amoroso, quem sabe. Mas pelo menos nesse primeiro episódio o romance foi muito fraco. Não sei se porque é dolorosamente óbvio que a amiga de infância gosta do Kousei mas não faz nada, ou se é porque dá raiva ver a fada da música arrastando asa pro maior pegador da escola, ou se é porque a amiga de infância sabia como o capitão do time de futebol era e mesmo assim apresentou-o a uma amiga sua sem alertá-la de nada, mas todo o romance desse episódio me irritou. E me irritou também o excesso de comédia desnecessária ou mal executada ou mal posicionada. Meu drama musical, que eu não esperava que fosse brilhante, no fim das contas é uma comédia romântica menos do que medíocre.

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