Na vida, quando percebemos que algo ruim está prestes a acontecer a alguém, avisamos e esse alguém dá de ombros. É comum que depois digamos “eu avisei!”. Não que isso seja exatamente certo. É errado, e tão mais errado quanto maior for a consequência negativa, jogar na cara de uma pessoa que acaba de sofrer um revés que nós, dotados de algum conhecimento superior, já a havíamos prevenido disso. É insensível, é indecoroso, e dependendo do caso é imoral. Por isso mesmo eu só costumo dizer que avisei quando é algo pouco importante ao fim e ao cabo ou de relativamente fácil resolução, mas em casos mais sérios eu me calo se não tiver nada melhor para dizer.

Em ficção não temos porquê ter essas reservas morais, não é? Não estamos lidando com pessoas reais. Assistimos um filme de terror e falamos para o adolescente idiota não subir as escadas, mas lá vai ele e sobe, e morre, e indignados gritamos para a TV: “eu te avisei!”. Lá no longínquo episódio cinco de Code Geass eu disse:

Euphemia que se cuide. Ela foi literalmente a princesa em apuros que o heroico Suzaku salvou (…). O anime está apenas no começo e ela está firmemente plantada do lado oposto ao de Lelouch. (…) Sendo esse um anime tão descaradamente formulaico, eu não apostaria que ela viva por muito tempo.

E Code Geass é apenas ficção. Mas apesar de previsível foi tão brutal, tão trágico, que não consigo dizer “eu avisei!”.

A hamartia de Code Geass

Se já não tivesse dedicado o artigo anterior à Euphemia e Cornelia, faria desse uma elegia. Um acidente relacionado ao geass, algo de que o Lelouch possa se arrepender para sempre, algo muito conveniente para o prosseguimento do enredo e para a escalada do conflito, algo que faça a Cornelia perder o chão ao ver todo o esforço de sua vida ser arruinado, e algo que faça o Suzaku sofrer. Eu também escrevi no mesmo artigo sobre o episódio 5:

Suzaku pode já ser um herói, mas ele ainda precisa ser humano. Um hipotético sacrifício da Princesa Euphemia serviria muito bem a esse propósito – e de quebra tornaria pessoal o conflito entre Zero/Lelouch e Suzaku, construindo um abismo intransponível entre eles.

Eu sei que é só ficção, mas ai! Às vezes dói estar certo. Não que, se for para sentir empatia por personagens fictícios, a minha dor tenha qualquer relevância perto das lágrimas infinitas que esse desastre fez correr. Sobre Euphemia recaem as lágrimas de todos os japoneses que se sentiram traídos, que morreram ou sofreram com a perda de parentes e amigos queridos ou apenas choraram pela tragédia que acometeu a tantos de seu povo. As lágrimas dos britannianos atônitos com esse desenvolvimento, que jamais esperariam isso de uma de suas mais doces princesas, que agora estão sofrendo e morrendo com a fúria assassina do levante rebelde contra o domínio estrangeiro. As lágrimas de Nina e dos demais membros do Conselho Estudantil (inclusive a Karen, que tem vários motivos para chorar). As lágrimas da Nunnaly (que talvez ainda nem tenha descoberto). As lágrimas de arrependimento e de desespero de Lelouch. As lágrimas de tristeza e de ódio de Suzaku – e de Cornelia também! As lágrimas de si própria enquanto resistia bravamente o tanto que pôde ao comando sobrenatural do geass. As lágrimas do espectador do outro lado da quarta parede, mesmo aqueles que, como eu, conseguiram antever a tragédia.

O Clóvis morreu como um príncipe tolo, arrogante e facínora. Ninguém sentiu compaixão por ele. Nós nem o conhecíamos! Oh sim, ele mandou exterminar japoneses inocentes que cometeram o crime de estar no lugar errado, na hora errada. Mas por tudo o que pude ver até agora, me parece que ele também, Clóvis, estava no lugar errado, na hora errada. Ele nunca deveria ter sido Governador-Geral da Área 11. Não era preparado para isso. Não estava bem assessorado para isso. Muitos choraram pela morte de Clóvis mesmo assim mas, cá entre nós, foi no mais das vezes um choro protocolar, burocrático. Poucas pessoas deviam realmente se importar com ele. Pela Princesa Euphemia todos choram, amigos e inimigos, cada qual pelo seu motivo particular.

Ódio de Suzaku e o ódio de milhões de japoneses – ódios diferentes, mas ódio ainda assim. Lágrimas, ódio e morte foram tudo o que Lelouch conseguiu até agora

Todos exceto o Imperador. O episódio exibiu uma a uma as reações de diversos de seus personagens e enquanto todos estavam algo entre chocados, tristes, furiosos ou confusos, Charles zi Britannia gargalhava sozinho em seu salão flutuante (descobri agora que é flutuante, aparentemente) e dizia uma frase críptica: “ele conseguiu”. Ele? Lelouch? Lembro-me que após a morte de Clóvis o Imperador disse a um lacaio que havia “conversado” com o filho recém morto e que ele lhe havia “contado” tudo. Desde então supus ser aquilo um poder geass e que ele soubesse que o filho exilado e protagonista do anime ainda estava vivo. Então por que ele não contou para ninguém?

Imperador Charles zi Britannia mostrando como um vilão de verdade deve ser

Agora começa meu novo chute, e se o primeiro acabou se concretizando ao final da primeira temporada, esse aqui vale para a segunda: baseado em sua ideologia de governo do mais forte, Charles nunca rejeitou qualquer um dos postulantes ao trono e jamais faria isso. Por isso não denunciou Lelouch – assim como não denunciou ninguém a ele quando, ainda criança, veio cobrar-lhe pela morte da mãe. Mas não pretende entregá-lo de bandeja também (os diligentes, como Schneizel, talvez devam repensar suas atitudes). Do outro lado está Lelouch, que pensa estar lutando contra Britannia mas, como bem visto no episódio 23, no fundo segue o mesmo ideal. Tão mais agora que decidiu se isolar após perder o controle do geass e cometer o crime que cometeu contra Euphemia. Em seu desejo por poder, ele está apenas se tornando mais e mais parecido com o pai que despreza. Mal posso esperar pela hora em que Charles irá jogar isso na cara de Lelouch.

Lelouch tem o sorriso do pai…

  1. Esse é um dos meus episódios preferidos do anime. Foi realmente bem cruel o que a trama fez com a Euphie, mas necessário como ponto de virada. Aliás, depois do seu artigo de Attack on titan, cheguei a conclusão que você está além de um espectador acima do normal. Dizendo de outra forma:
    – não prevê que o Euphie irá morrer – espectador comum.
    – prevê que a Euphie vai morrer e que isso vai causar um conflito pessoal entre Lelouch e Susaku – espectador super saiyajin
    – prevê que a Euphie vai morrer depois de Lelouch usar o Geass nela para dar uma ordem que será essencialmente contra a vontade dela. – espectador SSJ2
    – prevê que Euphie vai morrer depois de Lelouch usar acidentalmente o Geass nela ordenando algo essencialmente contra a vontade dela (SSJ3) <- você está aqui, hehe.

    • Fábio "Mexicano" Godoy

      Que isso, sou nada disso não. Nem gosto de Dragon Ball =D

      Só assisti anime demais e tenho mania de ficar procurando padrões. Fico realmente satisfeito com histórias que são previsíveis mas bem construídas, ou seja, não são previsíveis apenas porque são uma coleção de clichês e estão apenas fazendo a mesma coisa que tantos antes deles. Admiro boas estruturas e boas pistas.

      Acho que essa primeira temporada e o subplot do geass tem muito de tragédia grega, pelo pouco que conheço (e bota pouco nisso). Por isso chamei a ordem acidental para Euphemia de hamartia.

      Já a segunda metade, que vai ser o confronto direto, tem mais a ver com vingança e talvez seja mais shakespeariana?

      Só sei que já estou especulando até sobre a TERCEIRA temporada, que nem existe ainda e eu nem vi a segunda pra saber de onde ela poderia começar =D

      Ataque dos Titãs foi uma coisa mais ardilosa, de pistas bem colocadas na iminência da grande revelação. O súbito destaque que o Reiner passou a ter na história, e nas circunstâncias que teve, foi muito suspeito.

      Obrigado pela visita e pelo comentário =)

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