Bom dia!

E bem-vindo ao Café com Anime! O projeto no qual eu, Gato de Ulthar do Dissidência Pop,o Diego do É Só Um Desenho, e o Vinícius Marino do Finisgeekis conversamos sobre os episódios de alguns animes e publicamos artigos transcrevendo nossos bate-papos.

Nessa temporada, o Dissidência Pop está publicando nossos bate-papos sobre Mahou Shoujo Site, o Finisgeekis continua publicando os bate-papos de Sakura Cardcaptor: Clear Card, o É Só Um Desenho publica os bate-papos de Sword Art Online Alternative: Gun Gale Online e Legend of The Galactic Heroes: Die Neue These, e o Anime21 publica os bate-papos de Hisone to Masotan!

Nessa edição conversamos sobre dois episódios: o 9 e o 10.

Fábio "Mexicano":
Para o episódio 9 precisamos de: um dicionário. Pelo menos Hisone to Masotan usa palavras reais, ao invés de inventar suas próprias palavras sem sentido nenhum exceto o que eles dão. Isso nos permite ficar pelo menos uma hora pesquisando e tentando escutar para tentar especular sobre seus significados. Oh, bem 😛

A primeira palavra é “Anastomose”. Para nós significa quaisquer tipos de caminhos ou estruturas que se ramificam de formas complexas e tornam a se unir. Pense nos veios de uma folha, ou em um rio no período de seca em que o leito se divide em vários menores, ou nos capilares sanguíneos. Em japonês, porém, a palavra usada é Fungō (吻合), e embora sua tradução seja mesmo anastomose, ela é usada apenas em contexto cirúrgico, quando o médico cirurgião liga veias, artérias, seções do intestino, nervos, enfim, seções tubulares do corpo, que naturalmente não se ligariam. No anime, foi usado com o sentido de “digerir forçosamente”, o que tem relação com o significado literal dos kanjis japoneses, especialmente o segundo, 合, que significa síntese, integração, unificação.

A segunda palavra é mais complicada, não sei dizer qual seria a tradução para português porque nem sei se isso é inglês (eu assisti em inglês): “Binden”. Segundo o Google, isso é alemão e significa ligação também. O termo usado em japonês é Kusabi (くさび), que significa cunha. Li por aí sugestões de que pode ter a ver com sacrifício, mas não encontrei nada a respeito (exceto em ficção: tem um mangá chamado Ai no Kusabi que parece ter um “sacrifício” de algum tipo, e em um ou mais jogos a palavra é usada mais ou menos nesse contexto também). O significado metafórico em japonês é interessante, porém: a cunha é uma ferramenta usada para separar coisas, então kusabi pode se referir a uma pessoa que vem para separar outras pessoas. Por outro lado, a cunha, como objeto construtivo, é usada para reforçar ligações (para quem já viu, pense na cunha que vai no cabo de uma enxada para fixar a lâmina), também pode ser usado no sentido metafórico com o sentido de alguém que vem para reforçar uma ligação entre outras pessoas.

Ou seja, significa uma coisa e seu contrário, e parece exatamente o papel da Natsume no anime (e das mikos no geral, se pensarmos no que aconteceu com Zaito e Hoshino).

Vinícius Marino:
Eu geralmente ignoro esse palavrório em animes, pois costuma mais confundir que ajudar (alguém se lembra da “sinestesia” em Cannan?) Mas acho legal que Hisomaso tenha se esmerado tanto com a mecânica de seu ritual.

E concordo com o Fábio: está mais do que evidente que as mikos estão lá de “cunha” para se interporem entre as garotas e os rapazes. E que conflito hein? Esse episódio me vidrou do começo ao fim! Hisomaso tem as melhores personagens e as trabalha de uma forma tão humana que sinto como se elas fossem pessoas reais! Ah se não bateu o desespero de ver o “gatilho” do amor derreter os trajes das garotas!

Gato de Ulthar:
Que episódio bom! Todos até agora foram episódios bons, cada um a sua maneira, mas este foi especial, ao melhor estilo Mari Okada!

Agora fez todo o sentido o trabalho do ministro em tentar evitar que as meninas se apaixonassem né? Fiquei realmente preocupado em pensar em alguma maneira para resolver isso, mas estou totalmente intrigado. E a Hitomi e a Liliko ainda estão imunes ao amor! E gostei de ver que o piloto maromba defendeu a Hitomi perante as Mikos. Além disso, tivemos um vislumbre de que a Sada, em seus tempos áureos, também teve uns contratempos com uma miko.

Fábio "Mexicano":
Fiquei sob a impressão que o caso da Sada foi outro, relativo a um hipotético “sacrifício” da miko. Talvez para botar o super dragãozão pra dormir precise que uma miko se funda a ele de alguma forma, assim como o arco tori precisa de kusabis (cunhas) para prender as traves no lugar. E os 74 anos talvez estejam relacionados a duração da vida humana…
Diego:
Assim como o Vinicius, preferi apenas ignorar o jargão. Eventualmente descobriremos o que estas palavras significam, de toda forma.

Sobre o episódio, foi de fato ótimo. As interações da Hisone com a miko lá, Natsume, renderam ótimos momentos – sobretudo quando a segunda faz a Hisone perceber estar apaixonada, o que a faz sair correndo ao som de uma locomotiva 😃. Mas certamente o momento mais impactante vem ao final, quando descobrimos o que de fato ocorre quando uma garota apaixonada entra num dragão: não é nada agradável.

Me pergunto como o anime andará a partir de uma revelação dessas. Não imagino os casais não se formando, mas ao mesmo tempo não sei se gosto da ideia da Hisone abandonando o Masotan. Talvez descubram uma forma de continuarem a voar mesmo apaixonadas? Bom, só o tempo dirá.

Agora, sobre as miko… O problema de um sacrifício é que algo pesado assim não me parece “bater” com a atmosfera do anime. É o exato problema que eu tinha com a ideia de alguma grande catástrofe ameaçando o Japão, aliás. E, justiça seja feita, o anime soube resolver muito bem essa primeira angústia: torcer para que faça o mesmo agora.

Vinícius Marino:
Quero só frisar que a cena entre a Hisone e a Natsume que o Diego mencionou foi um dos melhores diálogos que já vi em anime em muito, muito tempo.

Desconsidere o texto em si, que já é brilhante. Vejam os maneirismos da Hisone. Sua linguagem corporal. É o tipo de expressão que eu esperaria de uma peça de teatro. E o momento em que ela tem a epifania e descobre que de fato ama o Okonogi? Nós já vimos esta cena trocentas vezes em outros animes, mas veja como é verossímil, humana, sem medo de ser ridícula. Pois o amor é exagerado e ridículo e over the top mesmo. Simplesmente extraordinário. Eu juro: voltei atrás para revê-la uma segunda vez de tão genial que foi. Não me lembro da última vez que fiz isto com qualquer anime.

Diego:
Uma coisa é preciso elogiar nesse anime: faz muito tempo desde que eu vi uma obra tão expressiva no movimentar de seus personagens. O último anime que eu lembro da linguagem corporal dizer muito foi Tsuki ga Kirei, mas ele é um caso interessante justamente por ir no sentido oposto: os personagens são contidos, introvertidos, e seus movimentos são, portanto, leves e sutis. Hisone to Masotan apresenta personagens altamente expressivos, com uma fluidez de movimento que não vemos com frequência.
Vinícius Marino:
Com tantos animes cortando despesas e a animação tradicional se tornando cada vez mais impraticável, eu tinha medo que nunca mais veria esse tipo de esmero. Mas eis que temos uma série que ostenta o melhor que a tradição tem a oferecer. Não apenas a série é primorosamente animada, como seu traço estilizado se aproxima do que o anime foi nas suas origens. Vocês repararam que a Hisone é a cara da Betty Boop?

Foi uma das referências ocidentais para o que viria a ser o estilo “animesco”.

Gato de Ulthar:
De fato, Hisone é um primor na animação, o “character design” criativo e um esmero único nos detalhes. Sem dúvida está entre os melhores animes de 2018. Não tem o que reclamar neste aspecto, e muito pouco nos outros.
Fábio "Mexicano":
Tirando os diálogos e monólogos misteriosos e outros que estão aqui só para fazer o enredo andar para frente, eu gosto de todos os diálogos de Hisone to Masotan. E como o Vinicius disse, estou falando não só da redação em si, que é boa, mas das cenas de diálogo. Esse episódio mesmo teve várias assim. Não são apenas bonitos, gostosos de ver, mas fazem mais pela caracterização dos personagens (e pelo desenvolvimento deles, quando é o caso) do que mil descrições (narradas ou de outra forma) fariam.

A gente às vezes fica com raiva deles, ou frustrado. Quem é que não achou a Hoshino uma grande idiota nesse episódio? Quero dizer, o que foi aquele chilique de ciúme? O Zaito nem estava fazendo nada! Ele só estava lá porque bem, todos os pilotos estavam lá. O beijo acidental foi mais clichê, mas mesmo assim acho que funcionou muito bem.

A cena no supermercado, quando a Hisone chegou a conclusão de que ela e a Natsume são “iguais” não poderia ter sido melhor para mostrar o quanto elas são diferentes. E no fundo elas devem ter bastante em comum também, acredito que os próximos episódios devam revelar isso mais claramente.

Gato de Ulthar:
Gostei justamente da comparação de que as duas falam sem pensar, isso as faria iguais certo? Mas não! A Natsume é totalmente diferente da Hisone, mesmo falando tudo o que vem na sua cabeça, a diferença primordial reside no fato de que a Hisone fala sem pensar, mas acaba escondendo elementos importantíssimos de seus sentimentos, não por malícia, mas por não enxergá-los mesmo.
Fábio "Mexicano":
Tem a outra diferença que a Natsume explicitou nesse diálogo: ela não se arrepende do que fala. Ela pode machucar e afastar as pessoas que não está nem aí, acredita que está certa e pronto. A Hisone, por outro lado, acabou se isolando e se tornando solitária por causa disso, então ela não acredita que essa sua característica seja exatamente positiva. Talvez o que tenha feito diferença tenha sido mesmo a solidão: me parece que a Natsume sempre teve o Okonogi, não importa o que dissesse. Ele sendo mais velho é de se esperar que fosse compreensivo com a boca aberta da menina, e talvez isso tenha tido sido crucial para que ela se apaixonasse por ele e se tornasse ainda mais convicta de que está sempre correta, não importa o que diga.
Vinícius Marino:
Há uma diferença entre não ter filtro e não querer ler os outros. A Natsume parece o Diógenes de Sinope, filósofo grego que vivia num barril e falava o que desse na telha. Segundo uma anedota famosa, ele foi um dia procurado por Alexandre, o Grande, que se ofereceu para fazer tudo o que ele quisesse. Sua resposta? “Quero que saia da frente, pois está bloqueando meu sol”.

Já a Hisone se preocupa com os outros até demais. Ela é confusa, insegura, não sabe articular suas ideias e morre de medo de ofender os outros – com razão, como vimos até aqui. De fato, embora se pareçam em teoria, na prática são pessoas quase incomparáveis.

Fábio "Mexicano":
Eu já estava esperando você comparar a Hisone a Platão, imaginando como poderia conseguir isso 😃 Então a Natsume chegaria até ela despindo o Okonogi de todas as suas características que a Hisone acha fofas e gritaria “VEJAM! O AMOR!”
Vinícius Marino:
Acho ela confusa demais para compará-la a qualquer filósofo 😂 Falta a ela um propósito que geralmente é necessário para dar certo na carreira. Se nada mais, ela bem que poderia passar umas férias no Oráculo de Delfos. “Conhece a ti mesma” é uma lição que ela precisa urgentemente aprender 😛
Fábio "Mexicano":
Tem razão. Faltou um Sócrates para a Hisone, em primeiro lugar. Será que a Sada serve para esse papel?
Vinícius Marino:
Não tenho dúvida de que ela será uma figura-mentora para as meninas. Sobretudo para a Hoshino e a Hisone, que já caíram na armadilha do amor.
Fábio "Mexicano":
Ao invés de cicuta, leite fermentado com lactobacilos vivos!

Ela sem dúvida tem o que falar, é sábia porque velha e porque já passou exatamente pelo que elas estão passando (talvez com relação ao amor também, ou talvez o tenha testemunhado). O futuro e o passado parecem esconder segredos terríveis. Mas quem disser que se tornar adulto é tudo de bom está mentindo, então o quão horríveis serão as experiências das garotas precisa ser enxergado através desse ponto de vista muito peculiar de uma pessoa que acabou de “deixar” de ser adolescente e está dando os primeiros passos na maioridade e na independência. Se a Sada vai ser uma mentora para elas, já podem se considerar sortudas, porque a maioria de nós não tem mentor nenhum.

Vinícius Marino:
Eu diria mais ainda: elas são privilegiadas de ter uma mentora como ela, que viveu a Segunda Guerra e não foi criada no leite com pêra. Não há palavras para resumir o que essa geração é capaz de ensinar.
Diego:
Eu tenho lá minhas dúvidas do quão bem a Sada vai cumprir esse papel de mentora. O anime certamente quer passar essa como a posição dela, mas vamos lembrar que sua participação no anime até aqui se resumiu a distribuir Yakult e a um conselho bem ruinzinho (ela não podia só falar “podem dormir, os dragões podem voar sozinhos por um tempo”?). Ainda estou esperando pra ver ela como uma real mentora.
Fábio "Mexicano":
Ela é uma japonesa, ela não poderia falar de forma direta. Se fosse uma filósofa grega talvez pudesse, não que o conjunto da obra não pudesse ficar eventualmente tão ou mais confuso, mas…

Ou talvez seja só uma coisa que é tão óbvia para ela que ela não imaginou que daria problema. Diferenças geracionais mesmo. Faz sentido nesse tipo de anime.

Gato de Ulthar:
Falar que as garotas poderiam simplesmente dormir também não daria muito certo ao meu ver, pois elas continuariam a duvidar, já que o instinto de sobrevivência falaria mais alto.

Só eu acho a Sada mais sábia enquanto velha queridinha vendedora de Yakult?

Fábio "Mexicano":
Ela é uma militar também, então suponho que ela precise ser rígida e gritar, senão tá errado.
Gato de Ulthar:
Falando ainda da Sada, me pergunto se ela ficou o tempo todo perto da base depois que se aposentou, guiando e instruindo as jovens pilotos, ou se apenas agora, perto do evento “catastrófico”, ela assumiu o disfarce de velhinha simpática vendedora de Yakult.
Fábio "Mexicano":
Eu também adoraria saber a história dela, mas acho que para além de o que aconteceu imediatamente após sua missão, o anime não deve se dar ao trabalho de contar. A gente pode especular, quem sabe?

Minha “fanfic”: A Sada era muito amiga daquela miko do seu tempo. Que só depois ela descobriu, para seu horror, que precisaria se fundir ao dragão-ilha para que ele adormecesse. Ela foi cuidar da sua vida, ponto. Décadas depois ela voltou para a base, sabendo que está chegando a hora de refazer o ritual. Ela espera reencontrar sua amiga. Fim.

Diego:
O anime sugere que ela não esteve sempre por lá, do contrário o ministro lá saberia dela há muito mais tempo. Imagino mesmo que ela voltou agora com a aproximação do despertar do dragão, mas se isso se deve a querer re-encontrar com a amiga sacrificada ou não é algo que só esperando pra ver.
Fábio "Mexicano":
Inclusive se for isso mesmo, tudo faz sentido? Quero dizer, as pilotas não podem se apaixonar porque se fizerem isso seus dragões as absorvem. A miko, por outro lado, nessa hipótese, precisa ser absorvida, então ela precisa amar. A Natsume está aí, toda apaixonada, e as demais são um bando de atiradas. Mas eu concordo com a avaliação do Diego que um sacrifício soa terrível em um anime como Hisone to Masotan. Querem apostar que, caso seja isso, a Hisone vai dar um jeito de mudar a tradição? ☺
Diego:
É o que eu espero, Fábio 😃
Gato de Ulthar:
Eu tenho minhas dúvidas de que seja um sacrifício desta maneira, talvez seja outro o motivo de lamentação da Sada.
Fábio "Mexicano":
Vou fazer o mesmo que já fiz antes, ok? Juntar as discussões de dois episódios para dar mais volume. E dessa vez os dois episódios são uma continuação direta, parte de um mesmo arco, então isso é até mais natural.

Assim sendo, já assistiram o episódio 10? O que acharam?

Vinícius Marino:
Depois de tudo o que o 9 nos jogou? Por mais que me doa dizer, fiquei desapontado. O paralelismo da Hoshino com a Hisone dá a entender que o anime está trabalhando com a dicotomia “carreira vs relações pessoais”. E eu realmente espero que isso seja só fumaça, pois é uma mensagem vagabunda demais para a qualidade da série.

Essa ideia de que “não podemos ter tudo” e que precisamos “escolher” entre ser bem sucedido e viver um grande amor é de uma babaquice sem tamanho. Ela até pode fazer sentido na adolescência, mas isto é porque relações na adolescência dificilmente se sustentam ao longo da vida. Agora na idade adulta? Isto só gera workaholics depressivos e cônjuges rancorosos.

Gato de Ulthar:
Eu gostei do episódio, ou melhor, de várias coisas dele. Gostei de sobremaneira da Sada retomando seu papel de vendedora de Yakult! Além disso, a Hoshino teve seu coração quebrado de maneira bem eficiente. Mas sem sombra de dúvidas, esse episódio rendeu um belo desenvolvimento da Nao, que como piloto sem dragão, ficou relegada a possuir apenas um papel de coadjuvante. Gostei do esforço dela em trabalhar em prol da equipe, entendendo um pouco mais sobre o Masotan e a Hisone, e se esforçando grandemente para conseguir pilotar o Masotan aos trancos e barrancos, mesmo que de maneira emergencial. Mas fiquei com raiva da Hisone no final do episódio. Não raiva do anime, mas da personagem mesmo!
Fábio "Mexicano":
Acha mesmo que o anime está mesmo apenas reproduzindo a ideia de que ou a mulher tem uma carreira ou tem uma família (no caso, romance/vida pessoal), Vinicius? Embora certamente esse dilema tenha sido apresentado para a Hisone e a Hoshino, Hisone to Masotan não representou suas escolhas de forma positiva. Acredito que isso seja indício de que se está a preparar a subversão da falsa dicotomia.
Vinícius Marino:
Eu não quero que seja isso, mas estou com um mau pressentimento. E Mari Okada pode ser muitas coisas, mas não é lá muito profunda. Tenho medo de que decida ir por esse caminho como uma receita fácil para os “feels”. Ressalto meu problema com a ideia do romance, que é ainda pior que a da família. Família é uma contingência inescapável. Filhos são caros, e o ônus de gestá-los e criá-los é imenso. É sim possível conciliá-los com carreira, mas exige sacrifícios, sobretudo se você não vive num país super progressista que ofereça jornadas flexíveis ou licença paternidade.

Agora a ideia de que a relação amorosa, por si só, é incompatível com o crescimento profissional é uma daquelas mentiras dignas de regime totalitário. É uma mensagem inerentemente misantrópica, que prega que devemos pensar em nós mesmos acima de tudo e nossos entes queridos são apenas “assets” para nosso uso pessoal. É a mensagem brilhantemente exposta (e ainda mais brilhantemente refutada) no belo filme “Amor Sem Escalas”. Recomendo a todos o seguinte clipe, quando o protagonista (ainda iludido pelo sonho de não ter “correntes”) expõe sua filosofia:

Repito: eu não acho que o anime irá por esse caminho, pelo menos não propositalmente. Mas às vezes acontece de animes baterem nas teclas erradas por engano. O Diego tem esse problema com Charlotte, que parece pregar que ser diferente é uma doença. Eu tenho o mesmo problema com Orange, que acho imoral por uma série de motivos.

Fábio "Mexicano":
O problema de Charlotte não é pregar que ser diferente é uma doença, assim como o problema de Hisone to Masotan não será explorar o falso conflito feminino entre trabalho e vida pessoal, simplesmente porque essas duas questões são bastante reais na sociedade japonesa. Nem lá nem aqui se está a inventar um espantalho só para criar melodrama. Lembram-se como no começo, e especialmente depois da introdução da Hoshino, comentamos como pilotas de caça são uma coisa recente, de 2015?
Diego:
Mas o problema é justamente não ser um espantalho, mas sim um reforço (ainda que involuntário) de ideias bastante problemáticas. Hisone to Masotan pode abordar esse conflito, mas se a mensagem final dele for “pois é, é assim mesmo, se você é mulher ou você namora ou você trabalha, os dois não rola” então é uma conclusão bastante complicada, como o Vinicius já apontou.

MAS eu não acho que essa será a conclusão. Para todos os efeitos, o anime até aqui vem retratando esse papo de “quebrar os corações das garotas” num tom bem negativo. Mesmo enquanto a Sada falava para a Hisone e a Hoshino sobre como todos irão trai-las menos os OTFs, a “aura” dela era quase que a de uma vilã. O anime não parece ver a sua conclusão com bons olhos, e espero que os dois episódios finais a provem errada.

Fábio "Mexicano":
Foi o que eu disse: não acho que Hisone está caminhando para essa conclusão. Charlotte, contudo, de fato reforçou uma característica cultural ruim, mas o problema do anime não foi lidar com o tema, foi ter lidado mal com ele. Em Hisone to Masotan nem vimos o que o anime vai fazer ainda, mas acredito que fará melhor que isso (e francamente, os vários problemas de Charlotte começaram bem antes de seu final polêmico, mas esse é um outro assunto).
Vinícius Marino:
Ao contrário do Fábio, o Diego me entendeu. De fato, estou falando de um reforço a uma mentalidade existente.
Fábio "Mexicano":
Talvez eu esteja pensando em uma coisa diferente? Quero dizer, no Japão, espera-se que mulheres abandonem o emprego quando se casam. É isso que estou enxergando em Hisone to Masotan, é esse dilema que eu vejo sendo jogado contra a Hoshino e a Hisone. A Hoshino já fez a sua escolha, uma escolha falsa porque ela foi manipulada, “forçada pelo sistema”, se quiser usar essa linguagem. A Hisone escolheu não escolher e fugiu. O anime trata os dois casos como as tragédias que são. No final, poderá reforçar isso ou subverter – eu acho que irá subverter.
Diego:
Será que a Hisone não escolheu? Ela decidiu deixar de ser uma piloto, talvez justamente para ficar com o Okonogi.
Fábio "Mexicano":
O Okonogi trabalha na base, está envolvido até as vísceras com a grande operação, não me parece possível. Ele vive na base. Pelo menos não foi como eu interpretei, mas pode ter sido isso e não muda uma vírgula do resto que eu falei.
Gato de Ulthar:
A Hisone é uma covarde em vários aspectos, procurou a solução mais fácil, que é justamente fugir. Ela tem medo de encarar os outros e mais medo ainda de prejudicar alguém, mas duvido que ela se mantenha firme em sua convicção, tanto pelo carinho que ela nutre pelos companheiros de base, como sua afeição pelo Masotan e o destino de todos.
Fábio "Mexicano":
Bom, acho que as situações da Hisone e da Hoshino estão claras. Não podemos falar o mesmo da Natsume: me parece provável que ela tenha sido escalada para uma missão só de ida, um sacrifício em prol do Japão, mas ainda falta o anime confirmar. As pistas estão todas aí, com destaque no décimo episódio para o Okonogi apreensivo na cerimônia que a escolheu para a tarefa (e sobressaltado ao ver que ela havia mesmo sido a escolhida), e mais ainda pela cena posterior que ele divide com ela, com a Natsume pedindo um beijo e ele fazendo graça antes de se debulhar em lágrimas.

Pelo pós-crédito, parece que o episódio seguinte irá contar a história do passado da Sana, e acredito que aí saberemos a verdade. O que pensam? Acham que é isso mesmo, será que a Natsume sabe, como acham que a Hisone irá reagir quando descobrir (porque ela é a protagonista, ela VAI descobrir), será que conseguirão evitar isso e como…?

Diego:
Considerando que ela foi treinada para isso, eu vou chutar que a Natsume sabe sim no que está se metendo. Sobre o que a Hisone fará, acho que depende de no que de fato será o papel da Natsume. Se ela for de fato um sacrifício, eu não espero que o anime siga com ele de fato, então imagino que a Hisone encontrará um meio de evitar o pior.
Vinícius Marino:
Só eu vejo a ironia de pilotos japonesas debatendo sobre sacrifício? Não precisamos adivinhar que tipo de sacrifício a geração da Sada aceitou. Ele aconteceu de verdade, e é até hoje o exemplo máximo de dar a vida pelo país.

Se Hisomaso não terminar como um comentário sobre os kamikaze eu ficaria muito surpreso.

Fábio "Mexicano":
Isso com certeza explica porque para a Sada isso possa ter sido “natural”, ainda que triste. Bom, não sabemos ainda como aconteceu e o que aconteceu, mas ela obviamente não estava em posição de questionar. Imagina alguém das Forças Armadas virando para uma sacerdotisa e falando “Como assim sacrifício???”. Faz sentido nenhum!
Gato de Ulthar:
Estou lendo um livro chamado Neve de Primavera, de Yukio Mishima (aquele famoso escritor que cometeu o suicídio ritual em 1970). No respectivo livro é contado como a morte heroica é ressaltada e louvada pelos japoneses, principalmente depois do vitória na guerra russo-japonesa. O livro dá o exemplo de um general que se matou após a morte por doença do respectivo Imperador da época, o narrador narra com desdém como os alunos e professores ficaram eufóricos ao saber que o dito general não esperou ter uma morte desonrosa por doença ou velhice.
Vinícius Marino:
Isso de fato é algo muito forte em culturas militaristas, e no Japão em particular foi elevado a zeitgeist
Gato de Ulthar:
Morrer jovem e bonito era o ápice de uma vida realizada.
Vinícius Marino:
O Shigeru Mizuki, criador de Gegege no Kitaro, conta uma anedota pertinente no seu mangá “Showa: Uma História do Japão”. Antes da Segunda Guerra, durante a invasão da China, três soldados japoneses improvisaram um explosivo com um bambu recheado de pólvora. O problema é que, como era improvisado, eles calcularam mal o tamanho do pavio. No tempo de tacar no inimigo e recuar à trincheira, foram pegos no raio da explosão. O exército divulgou a versão de que eles se sacrificaram de propósito. Foram chamados de “As Três Balas Humanas” e serviram de propaganda para incentivar sacrifícios similares no curso da Segunda Guerra (kamikaze, kaiten, etc).

Eu tive oportunidade de visitar o museu Yushukan de Tóquio, super polêmico, pois expõe uma visão deliberadamente pró-fascista da história japonesa. Há claro uma homenagem aos três soldados lá. Porém, o que mais me chocou, foi o quão central para a pesquisa militar japonesa foi o imperativo do sacrifício. Não vou dizer todas, mas uma boa parte das invenções de guerra expostas no museu consistiam em matar seu próprio usuário. É algo totalmente diferente do que você vê em outros países, que investiram em tecnologias que visavam a diminuir as baixas.

Enfim, não quero mudar muito de assunto. Mas só trago isto para frisar que entendo a confusão da Hisone e suas colegas em relação à arbitrariedade do tal ritual. “Por que raios eu preciso entrar dentro do dragão?” “Por que raios eu não posso dormir?” “Por que raios vocês não me dizem o que estão escondendo?” Imagino que mais de um combatente japonês fez questões bem parecidas na guerra.

Fábio "Mexicano":
E nós da audiência nos fazemos todas essas perguntas também! É impressionante a diferença que o contexto pode fazer. No mínimo, acho que a ideia de sacrifício se torna muito menos estranha nesse anime do que o Diego (e, confesso, eu) achava até então.

É isso, até o próximo episódio o/

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