O breve OVA (assistam aqui antes de ler), que na verdade é um clipe musical, feito sob encomenda para a música de mesmo nome da dupla japonesa de rock pop, Chage and Aska, dirigido e animado por ninguém menos do que o lendário Miyazaki, é o que eu chamo de obra de arte de transposição. Explico melhor no decorrer deste singelo artigo/resenha do clipe em questão.

 

 

Miyazaki, ao aceitar um projeto de desanuviar, sim, ele sempre está trabalhando, e mesmo agora, quando diz que se aposentará, fracassa miseravelmente. Mas enfim, por que não efetivar trabalhos paralelos dentre os projetos principais? Miyazaki é um mestre, não é o único, é claro. Lembre-se de passagem o falecido Isao Takahata, seu grande rival, ou mesmo o inigualável Satoshi Kon, que também já se despediu deste mundo efêmero.

O panteão de lendas da animação japonesa é muito bem guarnecido, e apesar dos novos tempos, novos nomes hão de surgir, mas de todo modo, esperamos em nossas marcas. Trocadilho infeliz.

 

 

O clipe musical segue exatamente o que chamo de transposição áudio visual, como comentei acima. O que é isso? Bem, é o seguinte: não sei se vocês, os quais leem isso, estão familiarizados com o termo bricolagem. O termo se refere à literal gambiarra inspirada, onde uma pessoa dotada de criatividade e motivação, junta elementos e alguma habilidade para dar vazão a uma obra nova e completamente outra, que em sua estrutura final combine os elementos que as constituem com a fineza de sua nova função. Em resumo, é um mosaico de elementos, um vitral estético.

 

 

AMVs, sim, uma sigla inglesa que pode ser traduzida como “vídeos musicais de animação”, nada mais são do que a elevação desse termo descompromissado a potência de profissionalismo e arte. AMVs podem ter duas fontes essenciais: ou eles aglutinam segmentos de obras ou materiais diversos para transpor uma nova obra, ou eles combinam materiais com identidades definidas para que juntas dissolvam e reconstruam a identidade de cada parte. Na prática o resultado final é uma soma dessas duas abordagens.

Não sei se já pararam para pensar, mas quando juntamos letras, palavras, ou mesmo números, estamos efetivando exatamente isso, uma combinação de elementos particulares que se somam em uma estrutura final. A arte imita a vida; animes, em sua essência, são isso. AMVs são a extrapolação dessa técnica em combinações regradas pela aplicação e harmonização de uma música que é tanto regida quanto ilustrada, ou vice versa, pela composição ante a segmentos de animação. Quando um AMV nasce, ele pode tanto homenagear os materiais que o compõe, ou mesmo criar vida própria, cabe apenas a intenção de quem os efetiva.

 

 

Agora me debruçando na obra, ao clipe. Ele é exatamente isso, um AMV, literalmente. Ou seja, uma arte em transposição. Miyazaki tomou como missão ilustrar, animar, dar vida, sangue, luz, enredo e história à letra da música a ele designada como molde para a obra, e o resultado é uma obra prima. Eu sei que a bricolagem ganha contornos conceituais definitivos após a sua institucionalização, como, por exemplo, animes, mangás, alfabeto, linguagem, coisas que nada mais são do que a soma das partes individuais que a tudo compõe. Mas o interessante e o intenso dessa obra está em sua raiz, em seu processo mais singelo e nuclear, a expressão pela conexão e relação de um conjunto simples e central de elementos.

A história transcrita pela letra que inspira o animador do Ghibli, faz germinar a história da vida de três personagens, dois policiais e uma garota alada. Os servidores públicos adentram um culto misterioso para destruir, aniquilar e apagar da face da terra os seus praticantes. Entram atirando, matando, jogando granadas e genocidam todos os seus membros. Mesmo que sofram resistência por parte do culto, não deixa de ser interessante a brutalidade com que Miyazaki retrata essa situação.

 

 

Os policiais descobrem uma refém cativa ali dentro, escondida entre a sujeira e a decadência. Uma jovem dotada de asas angelicais, em um estado fragilizado, é salva e amparada pelos homens da força policial. Eles a ajudam, criam um vínculo imediato, uma empatia e um amor indescritível. Oferecem-lhe água e calor humano. Mas logo em seguida são obrigados a ceder a sua guarda para membros de uma equipe científica que tomam a sua tutela.

Como trabalham na força policial, bem sabem todas as informações sobre essa equipe que tomou poder sobre a jovem, a colocou em cativeiro e a estudou como um animal. Dotados de um ímpeto apaixonado, de um senso de justiça indomável e de um sentimento de carinho para com a jovem que resgataram, ambos decidem, após passar por uma angústia torturante, efetivar um plano de resgate.
Eles invadem as instalações científicas, se camuflam e travestem, nocauteiam os que ali trabalham, anulam a fechadura da prisão que a mantém em cativeiro; o segundo cativeiro seguido em sua infeliz jornada. Carregam ela em uma fuga alucinante, roubam um carro da força policial e fogem de seus próprios companheiros de corporação sem um pingo de remorso ou dúvida em relação a suas ações.

 

 

Esse clipe tem dois fins distintos, um de fracasso e um de sucesso. Acompanhamos a fuga desenfreada dos rapazes e da jovem resgatada por uma estreita estrada suspensa entre os céus de uma cidade subterrânea. Em um momento chave, a estrada cede aos ataques dos perseguidores, arremessando o veículo da fuga e seus passageiros em um abismo de morte. O desespero singelo do fracasso é uma queda para o fim eterno.

Por outro lado, em outro momento, quando o mesmo evento se repete, como o refrão de uma música que acompanha a jornada, e acompanha mesmo, os policiais em fuga acionam um dispositivo que arremessa o veículo em linha reta e desgovernada pelos céus entrecortados por prédios. Colidem com segurança e rumam em fuga uma segunda vez.

A cidade onde habitam é subterrânea, a fuga só pode se deflagrar para a superfície, para o real céu contaminado pela radioatividade do colapso humano. Eles sorriem em êxito estupefatos pelo resultado positivo, alçam voo em liberdade para o horizonte da vida, para o infinito da atmosfera, enquanto a jovem alada aprende a voar com as suas próprias asas. A lindíssima cena é de uma beleza surreal, de um extrapolar de emoções que vibram por todos os instantes entre o clímax e a fatídica despedida. A jovem está livre, a missão está cumprida.

 

 

Miyazaki é um mestre, e esse clipe é uma obra prima. Perdi a conta de quantas vezes já o assisti, de como uma música completamente adversa e com sentido completamente outro, oferece forma e melodia, inspiração para a aventura heroica de personagens dos quais nada sabemos; que colorem, pulsam e vivem através de momentos indeléveis dentre os nossos corações. O resultado é a completa metamorfose da letra em um hino de libertação destemida. Em suas marcas.

Obs: esse clipe foi dedicado à Kenichi Yoshida. Não, ele não morreu, mas é um nome de peso dentre a estrutura de animação do Japão e ex-membro do Ghibli. Só pontuando esse fato, já que o próprio clipe o destaca.

 

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