Ghost in the Shell 2: Innocence – A dimensão do abismo que ilumina a alma
O filme de hoje é um anime feito sob medida para o próprio diretor, sim, ele não foi feito, de modo algum, para mim ou para você, ele foi feito, pelo menos é o como eu o entendo, para o próprio Mamoru Oshii. A introspecção da obra é sua maior marca, e é exatamente essa introspecção questionadora, que se reveste em cores, sons, enredo, personagens, é essa filosofia primordial, as perguntas perturbadoras de uma mente que reflete, que dão o tom, a alma e o próprio Ghost em Innocence.
O plot de Ghost In the Shell Innocence é simples e belo. Ele apresenta exatamente a inocência roubada, uma trama policial que investiga robôs que se rebelaram e assassinaram os seus donos, robôs esses que são embalagens mecânicas com funções sexuais, ou seja, bonecas para sexo. E já adianto o final, esses robôs, que são IAs, ou seja, frios e programados, têm inserido em seu sistema um tempero a mais, o que os torna mais reais e humanos, mais calorosos. Dentro deles são colocados emoções, reações, reflexos opacos, mas essenciais, para que se pareçam mais com humanos ao replicar as suas funções de fábrica. E a grande sacada é que esse tempero a mais, nada mais é do que o sequestro e upload de Ghosts alheios, que através de um intrincado sistema desenvolvido pela empresa Locus Solus, são alocados, como escravos de alma, aos robôs vendidos pela empresa.
A complexidade dessa situação não é o foco do filme, e infelizmente não podemos saber os detalhes de como isso tudo se desdobra. Apenas destaco que a inocência do filme se refere às máquinas (bonecas), as quais são corrompidas pelo Ghost humano, o qual, aliás, foi nelas inserido para humanizá-las.
Batou está em luto pela ausência de sua melhor amiga, e possivelmente alvo de seu afeto romântico. Kusanagi, como bem apresenta o primeiro filme, agora se encontra entre nós, sim, ela se encontra entre a rede, ela agora não precisa mais estar presente fisicamente no mundo, mas por capricho e segurança, já que é uma cabeça a prêmio, uma “foragida”, ex-membro de elite e caixa de segredos corporativos governamentais, ela escolhe flutuar como uma entidade etérea junto ao sistema vivo de informações.
Batou, acompanhado de sua frustração, adentra em uma investigação sobre o porquê e o como esses robôs conseguiram se rebelar, assassinar os donos e, posteriormente, se suicidar.
Aramaki, chefe da seção 9, mexe os pauzinhos para roubar o caso para a sua jurisdição, e deixa Batou e Togusa responsáveis pela coleta, análise e tomada de decisões frente ao caso, Ishikawa oferece suporte tático, mas pouco interfere na investigação.
O filme, como disse a pouco, tem um enredo simples, e segundo o próprio Mamoru, o enredo é parte secundária na obra. Innocence nos abraça e nos carrega por uma história intimista, nos guiando por uma animação estonteante, sim, é de tirar o folêgo. Apresentando uma competência técnica sem igual, todos os elementos objetivos do filme são incríveis, ambientando um mundo soturno e cotidiano de luzes neon ante a uma umidade urbana gélida. Os veículos, ou mesmo as estruturas apresentadas, são simbólicas e carregam em si um peso absurdo no que tange a leitura pela imagem, onde podemos imergir entre as inúmeras alegorias visuais, ora explícitas, ora sutis, que compõem a melancolia própria que preenche não apenas o cenário, mas também o nosso protagonista da vez, Batou.
A interação interpessoal perante os personagens, sempre regado de citações, não apenas pertinentes, mas que são em si a própria centralidade da obra, que conduzem o espectador, os personagens ali presentes, e acima de tudo, o diretor e idealizador da animação, Mamoru, por um labirinto infinito do que há de mais profundo e complexo na cultura humana, o questionamento, também chamado de filosofia, ou para os íntimos, de poesia. O filme nos convida, embora caso não aceitemos, não possamos realmente o apreciar, a refletir, pensar, nos questionar, e a fracassar em meio ao infinito de seu conflito.
Regido por problemas, tais como, o quando a humanidade se tornou Deus, e começou a refletir em sua criação a sua própria corrupção. O como somos programados para ser e agir como agimos. A escravidão da mente, da alma, para além do corpo. O conflito constante de buscar uma identidade e um significado na existência, isso frente aos dilemas morais e de valores aplicados no trato de nossas ações no mundo. Entre outras diversas elaborações, que só mesmo apreciando a obra, se pode acessar.
A jornada de Batou é a jornada de Mamoru Oshii, pois Mamoru é representado e presente em todos os momentos do filme, seja em sua sempre constante remissão em um Basset hound, o cão adotivo de Batou, seja em toda a carga e potência de pensamentos ali estabelecidos e em convulsão. Toda a trama segue pelos detalhes dos comportamentos, pelos momentos chave que se desdobram, seja em conversas densas, seja em silêncio caseiro, ou mesmo em panoramas magníficos da animação, nutridos pela linda trilha sonora da obra.
Desfrutar os nós e as cordas que amarram não apenas a história, mas todos aqueles que com ela se envolvem ou envolveram, que nos atam a um universo amargo dentre o qual Cavalos e Burros, empresas e traidores da mesma, Yakuzas e bonecas preenchidas pelo humano mais que humano, que gritam por socorro e agonizam banhadas no sangue alheio, e por fim, pela Major, que durante toda a animação, assim como o antagonista do filme anterior, que na verdade agora é ela mesma, só que em sua variação como um filho pródigo, coordena e manipula as cordas para efetivar a sua própria ambição e vontade. Motoko usa a todos, guia a todos, pois a situação estava lhe incomodando, simples assim.
Não estou à altura desse filme, e sei bem disso. Não posso de modo algum apresentá-lo adequadamente, seja por uma breve resenha, seja por outro meio qualquer, por isso escolho apenas conceder essas palavras acima, para quem por ventura vier a ler, se instigar ou rememorar, quem sabe rever, essa obra prima feita exclusivamente para e pelo próprio Mamoru Oshii.