Chegamos ao último filme da sectologia de Kara no Kyoukai, mas não a última adaptação para a mídia de animação de suas histórias. Para além desse núcleo série de filmes, temos ainda pelo menos dois outros OVAs de complementação do cenário, os quais irei resenhar também, é claro.

 

 

Fechando o quebra cabeça do segundo OVA, e alguns outros pontos soltos na história, Kara no Kyoukai 7: Satsujin Kousatsu (Go), acaba por abrir novos mistérios ou deixar de oferecer solução ou aprofundamento para outros. Isso implica em alguns problemas de roteiro que caso analisados isoladamente entre os sete filmes, podem enfraquecer a adaptação da franquia, mas ao mesmo tempo, a série de filmes nos entrega um material muito satisfatório, principalmente no que tange a competência técnica de excelência, seja magnífica trilha sonora ou a fluidez da animação, a paleta de cores, etc, e remeto destaque especial para a ambientação sombria e a habilidade da direção em conduzir os eventos no decorrer de intrincados enredos, com uma sublime aplicação de ângulos nas cenas e cortes regados de imersão e suspense, e se não bastasse isso, eles são por vezes polvilhados com reflexões e explicações sempre sugestivas e inconclusivas, como é o estilo próprio desse universo. Muitos podem se irritar com isso, como vemos em relação às críticas ao universo de Fate, franquia irmã que partilha tanto do mesmo pai quanto da mesma personalidade de Kara no Kyoukai.

 

 

Elogios e críticas à parte, o desenvolvimento de Shiki foi o ápice dessa jornada, o avatar da morte que é incapaz de matar, o avatar do sofrimento que é incapaz de amar. E o segundo ápice, que nada perde em relação ao primeiro, é Mikiya, o amor encarnado e a gentileza em pessoa, aquele que conduz a herdeira da agonia em direção a luz, sem nunca fraquejar. Mikiya abraça Shiki e não a larga de maneira alguma, arrisca a própria vida e pressiona até o limite as emoções de sua paixão.

O resultado e clímax, o qual oferece um desfecho para os eventos em suspenso do segundo filme, é o fato explicito e inegável de que Shiki dois mataria Mikiya, aquele que lhe aceitou, não fosse a intromissão de Araya, que lhe repreende por sucumbir a um assassinato de fuga, e não de desejo, o paradoxo de Shiki, de sua natureza, atingem em cheio o coração da moça, e do moço, já que Shiki dois é uma existência masculina e a manifestação da destruição; ela mataria Mikiya para fugir, para sobreviver sem se contaminar, para não deixar o amor do rapaz purificarem a sua essência, mas Araya lhe revela o óbvio, ela já estava completamente imersa nesse sentimento, e caso efetivasse o ato, destruiria a si mesma de modo irreparável.

 

 

Shiki não tem escolha, Shiki dois não tem escolha, o único modo de ela sobreviver, de parar de fugir, de aceitar a Mikiya e ao seu afeto, é matar a si mesma, literalmente. Ela o faz.

Fechasse o ciclo do quebra cabeça, descobrimos que Shiki dois se matou para poder viver, o paradoxo de sua morte é que o seu sacrifício permite a Shiki um descobrir o sentido e o significado da vida. Shiki um sofre imensamente, Touko comenta que ela está constantemente compensando, mimetizando o vazio deixado por Shiki dois, é um presente e um fardo, ele recebe de sua irmã de corpo, o destino.

 

 

O ponto falho do anime se apresenta exatamente no que tange a família de Shiki, os Ryougi, os propagadores dos olhos místicos da percepção da morte, os olhos que enxergam a falha e o ponto fraco de toda e qualquer forma, de toda e qualquer coisa que tenha existência. Durante um flashback, somos apresentados ao avô de Shiki, um assassino por natureza, assim como ela, o herdeiro anterior da habilidade que agora lhe foi passada pela sua linhagem de sangue. Ele lhe explica o significado da vida, o que significa ser humano, e revela a origem de sua ruína, o como morreu em vida. O valor moral absoluto que amaldiçoa e salva a alma de Shiki, bem até o momento onde ela irá colapsar, é o valor inestimável da vida. Um assassino só pode matar uma pessoa em toda a sua vida, essa pessoa que ele pode matar, é a sua primeira e última vítima, quando um assassino se torna um assassino, ele deixa de ser um assassino, ele se torna um monstro, uma besta, um ser corrompido e moribundo, um cadáver. Quando se mata uma pessoa, o humano que o faz deixa de ser humano, o humano que o faz, morre. O primeiro assassinato é um duplo assassinato, pois morrem, ao mesmo tempo, a vítima, e a pessoa que cometeu o ato. Matar alguém é matar a si mesmo.

 

 

Shiki, embora seja e carregue a maldição de seu poder, de sua sede de sangue desenfreada, carrega um código, uma barreira que a impede de concretizar o seu desejo mais íntimo.

O interessante desse último filme, para além desse dilema fulcral, onde descobrimos que Shiki nunca realmente matou alguém, tirando o Araya, porque o Araya nem é gente, bem pelo menos é o que é dito no anime, nos arremessa na questão, quem matou aquelas pessoas que o, se não me engano, tio do Mikiya, investiga.

E assim chegamos ao plot desse OVA sétimo de Kara no Kyoukai.

 

 

O personagem antagonista da vez é o presente de despedida do Araya, um humano desperto, ou melhor, uma entidade bestial que visa consumir a vida para se sentir vivo.

Lio, aquele personagem deslocado do segundo filme, que provoca Shiki e guia Mikiya em encontro a ela, é um humano que encontrou e aceitou a sua origem. Touko explica a sua natureza. Lio fez um pacto com Araya, o conhecedor da natureza última da alma humana. Quando um humano percebe a sua ancestralidade instintiva primordial, ele tem duas escolhas, reviver essa ancestralidade, ou a negar, Lio a aceita e a revive. O problema real não é revivê-la em si, mas sim qual é essa ancestralidade. A alma, em teoria, transmigra de corpo a corpo, carregando consigo o seu DNA astral, a sua essência de nascimento. Lio, por um acaso do percurso, sempre reencarnou em predadores vorazes, suas vidas passadas são regadas de carnificina e caça, alimentação e sobrevivência.

 

 

Em um determinado dia ele ataca, ao se defender, um cara qualquer, e o mata. O êxtase que atinge lhe consome completamente. Araya lhe oferece a abertura para sua real natureza, ele a aceita, e quando assim o faz, desperta suas habilidades predadoras, para além de uma necessidade constante de caçar e se alimentar de suas presas.

Lio, mesmo antes de se consolidar como um homicida do massacre, já sentia por Shiki uma atração incontrolável, ele a via como uma igual, e literalmente a desejava absurdamente, seja como rival, seja como parceira, seja como carrasco. Shiki, entretanto, nunca cruzou a linha, a por mais que Lio a seguisse e a desejasse, não conseguia a sentir ao seu lado, pois ela não estava. Seja devido ao código a ela concedido por seu avô, seja pelo vínculo de amor consolidado com Mikiya, que não apenas fortalecia a barreira erguida por seu avô, como preenchia e dissolvia a natureza de Shiki, tornando-a a cada dia mais humana.

Shiki dois morreu, e com ela o fatídico instinto de destruição não apresentava mais tanta pressão, mas como efeito colateral da relação de Shiki com Mikiya e de seu código moral, aquilo que era vontade de destruição foi aos poucos se transformando em vontade de justiça, em vontade de corrigir o mal que uma vez foi tão intenso em si mesma. Shiki é uma pessoa em conflito com seu desejo de matar e seu desejo de amar.

 

 

O que antes era um sorriso sangrento, que acompanhava os cadáveres amontoados por Lio em seus assassinatos, os quais ela apreciava e até mesmo era atraia a presenciar, como na vez em que vemos um corpo decapitado sangrando em sua frente, e ela se empolga. Ou seja, ela e Lio tinham uma relação distorcida de cumplicidade, ele matava, ela se deleitava frente a destruição, mesmo sem a cometer.

Após acordar do coma, entretanto, Shiki muda a postura, e o que era deleite se torna ódio, asco. Ela passa a ter repulsa pela morte, mesmo que a deseje, como compensação pela ausência de Shiki dois.

Ela caça Lio nesse filme final, para o impedir de cometer mais brutalidades, para encerrar esse capítulo doentio de sua vida, mas ela não consegue matar, ela se vê acorrentada pela gentileza de Mikiya, pela sua humanidade em relação a qual está completamente apaixonada. Como ela pode se livrar de Lio sem macular a sua própria existência?

 

 

Lio tem um procedimento junto ao submundo, ele cultiva drogas deixadas por Araya, e vicia suas vítimas em busca de uma alma gêmea, de um homicida por natureza, ele ambiciona despertar um igual, mas fracassa, e sua solidão é percebida e compreendida por Mikiya, que em um ato sem igual de generosidade, chega até mesmo a aceitar o rapaz. Mikiya é um detetive nato, mas também é dono de uma ingenuidade crônica. Por mais que ele consiga descobrir o paradeiro de Lio e de Shiki, a única coisa que consegue fazer é ser brutalmente agredido e humilhado, quase morrendo no processo.

Por fim, o combate final entre Lio e Shiki se resolve apenas pelo fato de que Shiki pensa que Mikiya está morto, instante e não apenas um instante, onde ela se liberta de suas amarras e assassina Lio habilmente. Shiki mata não por desejo, não por ser uma assassina, mas sim por luto, por amor, ela liberta Lio de seu sofrimento e de sua solidão, não por ser uma igual a ele, mas por ser exatamente o oposto a ele, por estar viva.

 

 

Desamparada, ela desaba após o ato, e se arrastando em sua dignidade miserável, Mikiya a abraça, a aceita, mesmo que nunca a perdoe pelo que ela fez.
Kara no Kyoukai termina de modo sublime, onde as mãos de ambos, Mikiya e Shiki, nunca mais se soltaram.

Touko desaparece, a vida floresce e continua a germinar. Muitos dos mistérios ainda pairam no ar, mas não posso dizer outra coisa que não afirmar que foi um ótimo Filme, tanto esse quando os outros. Me despeço por enquanto de quem chegou até aqui, mas voltamos em breve para conversar sobre o próximo OVA da franquia. Até breve pessoas.

 

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