Bom dia e boa tarde pessoas! (ou boa noite, vai saber). Como estão? Deixe-me contar uma coisa para vocês. É a primeira vez que percebo, e vejo, um anime que possui mais de um final dentro da própria narrativa, ou seja, uma história que tem diferentes desfechos dentro da própria cronologia e eventos da trama. Explico. Kara no Kyoukai, diferente de animes ou jogos com ramificações e finais alternativos, possui três finais, isso mesmo, três finais, ou quatro se assim quiser ler, complemento isso mais a frente, e todos eles estão em, e são parte de, uma mesma história, e melhor ainda, são três finais que envolvem os diferentes ângulos e aprofundam de diferentes maneiras a relação dos protagonistas.

Antes de seguir com a resenha particular desse OVA extra que aqui desenvolvo, explano melhor o que disse acima.

 

 

Kara no Kyoukai tem um final neutro, aquele do filme Kara no Kyoukai 8: Shuushou, onde se explica a origem da Shiki zero, o corpo, a espiral que tudo pode criar e que ao nada tudo relega. A manifestação plena do vazio que oferece o absoluto da realidade em sua potência máxima. Por contraponto esse filme também aprofunda e ata todos os nós e todas as pontas essenciais da franquia, dando liga e densidade tal que até me faltam palavras para descrever o quão sublime e magnifico ele é, e o quanto engrandece absurdamente a obra como um todo. Entretanto, uma coisa que percebi ao completar a série, é que esse é o final neutro, o final da Shiki zero, a personagem mais poderosa a incrível de toda a saga de Kara no Kyoukai. Em contraste a isso, no mesmo filme, temos o final agridoce de Mikiya, apresentado como o solitário mais benevolente e generoso de todos, o amor em sua completa entrega altruísta que nada quer ou deseja, a solidão por natureza.

 

 

O final negativo, ou Bad Ending de Kara no Kyoukai, é apresentado no filme Kara no Kyoukai: Mirai Fukuin. Aqui temos o final de Shiki dois, a Shiki com trejeitos masculinos que é o avatar do assassinato. Seu desfecho é inevitável, seu destino está selado. Shiki dois sabe que morrerá e que não pode fazer nada em relação a isso, sua morte é iminente e necessária, é um passo fundamental para que o seu sonho se realize. Com grande tristeza nos despedimos de Shiki dois, a entidade criada por Shiki zero para contrabalancear uma mente que teimou em não morrer e um corpo que inadvertidamente não se dissolveu imediatamente, mas perdurou. Mikiya e Shiki um sofrem o abalo e o luto pela perda do companheiro, o trauma que está presente de modo subcutâneo durante toda a saga que acompanhamos. Cantando a canção derradeira, observando o nascer do sol de seu crepúsculo, Shiki dois, a tragédia que incorpora em si mesma a tragédia, adentra o vazio e desaparece.

 

 

E por fim temos o final positivo, o desfecho “oficial” da Sectologia de filmes, a conclusão de Shiki um. Esse final pode ser entendido como multifacetado, pois ele não apenas encera a história medular de Kara no Kyoukai, como assoma mais uma vez, de um modo “fofo” e gracioso, nesse último OVA, que completa e fecha as portas da franquia, com chave de ouro, se me permitem dizer. Shiki um acaba casando com Mikiya, e com ele constitui família, e nisso podemos perceber que um dos segmentos desse God Ending, está também em Mirai Fukuin, pois ali somos apresentados a filha de ambos Mana, e descobrimos o que acontecerá ao casal dez anos no futuro. Entretanto, para ser justo, esse final positivo se efetiva com muito mais clareza e densidade ao final do sétimo filme, onde Shiki um e Mikiya caminham de mãos dadas em direção ao destino, selando o compromisso de amor e de afeto, e carregando o fardo do assassinato que Shiki um cometeu, em relação ao Lio, e as sequelas físicas de Mikiya, o qual foi gravemente ferido por Lio. Esse final se estende por esse OVA Extra Chorus que aqui resenho, pois temos a promessa de Shiki um e Mikiya, de passarem o ano novo juntos, sendo cumprida, e já peço desculpas pelo meu apego a obra, mas foi de sutileza e simplicidade, com um tom e desenvolvimento fantásticos. Shiki um e Mikiya selam a promessa e dão as mãos, efetivando o vínculo e o desejo sincero de ambos de que o outro seja feliz. É um final doce e encantador, uma despedida mais do que satisfatória, mas impecável, dessa saga de filmes e OVAs.

 

 

Kara no Kyoukai não é uma franquia perfeita, comentei principalmente nos vídeos reviews os pontos que não me agradaram, mas tem um percurso e uma execução ímpar, no mínimo instigante, que oferece consistência ao estilo a proposta que desenvolve, mesclando ausência de respostas e pontos nebulosos, com reflexões e convite à imersão no cenário. É uma obra que nos abraça e nos coloca no caos e no fluxo constante. Vez ou outra clichês despontam para temperar e irritar, mas mesmo assim não comprometem a amplitude das mensagens e da articulação dos momentos. É uma obra que se engrandece não apenas pelo seu conteúdo, mas principalmente pelo modo como dispõem esse conteúdo, o qual, no fim, se for friamente analisado, não é tão ambicioso assim, mas muito pelo contrário, ele é por vezes apenas um traço ou contorno opaco de referência.

 

 

E agora e somente agora, começo a resenha do OVA em questão. Kara no Kyoukai: Mirai Fukuin – Extra Chorus, apesar do nome, não tem real conexão com o filme Mirai Fukuin, é um segmento de despedida, um encerramento da franquia, que na verdade se passa pouco tempo após Shiki um receber o braço protético de Touko, e depois continua a narrativa ilustrando a passagem do fim de ano dos protagonistas. Seu percurso se divide entre o afeto de Mikiya e Shiki, ilustrado pela metáfora literalmente presente, de um gato de rua, o qual representa a Shiki um, gato o qual se apega ao amor e a gentileza que emanam de Mikiya, assim como a Shiki, e a ele se submete, mesmo que ele, Mikiya, não deseje qualquer submissão. Shiki um fica incumbida de cuidar do gato enquanto Mikiya saí a uma viagem de trabalho. Ela percebe e se sente próxima ao pequeno bichinho, não por ter empatia por ele, mas por o compreender e ver a si mesma através dele. Alguém que anseia amor, carinho, atenção e presença, que está comprometida com a sua fonte de luz, de dignidade e sentido, com o amor que desperta dentro de um turbilhão de sentimentos e questionamentos, dentro de uma mente dilacerada pela ausência de sua outra metade. E pior, preenchida e dependente de uma fonte de afeto externa que lhe deixa inquieta e insegura, imóvel.

 

 

Shiki um percebe no gato o seu reflexo. E no fim, como já relatei antes, ela cumpre a promessa feita ao Mikiya a muito tempo, de eles aproveitarem o final de ano em companhia um do outro. Esse desfecho envergonhado de alguém que se entrega ao amor do outro sem saber como expressar o seu próprio sentimento de modo adequado, Shiki um caminha lado a lado de Mikiya, aquele que a protege, aquele que passa a perna em sua irmã, Azaka, para estar junto a ela. Descobrimos o destino do gato, que ele não conseguiu esquecer Mikiya, que fugiu e teve que ser resgatado pelo rapaz, o qual acabou adotando definitivamente o pequeno, mesmo que, por não ter tempo e sempre estar viajando a trabalho, acaba o deixando na casa de seus pais. A cada reencontro entre eles, o sentimento é o mesmo. Assim como em relação a Shiki um, ao como ela se sente e anseia a sua presença.

 

 

O segundo momento temático dessa OVA de desfecho, se dá em relação a Fujino, nossa antagonista do terceiro filme, a garota que foi brutalmente estuprada e que cometeu meia dúzia de assassinatos após recobrar a sensibilidade do corpo. Uma Assagami herdeira de um poder avassalador e seu dilema em relação a pontes. Também somos apresentados a uma nova personagem, que por capricho do destino, estuda na mesma escola que todas as garotas desse anime acabam por frequentar, a academia Rein, um internato feminino. Lá descobrimos que essa moça, chamada de Ririsu, era amiga de Yuuko, uma das garotas que cometeram suicídio no primeiro filme de Kara no Kyoukai. Ririsu está em luto, em dor, sofrendo pela perda de sua melhor amiga, de sua confidente que acabou a traindo.
Yuuko era uma adolescente com sérios problemas familiares, caindo em desgraça e sem perspectivas ou esperanças de futuro, ela aceita o convite de Kirie, a moça em estágio terminal que consegue manifestar um corpo espectral e fugir de sua condição trágica de impotência.

 

 

Ririsu é, por sua vez, uma adolescente melancólica e deprimida, que visa a morte como libertação de sua situação de incomodo em relação a vida. Ela não sabe o que sua melhor amiga sente, ou mesmo o que se passa em sua vida particular, pois está centrada demais em si mesma, em sua própria dor. Quando descobre a realidade e o motivo do suicídio de Yuuko, sua tristeza e arrependimento se elevam intensamente. Por um lado, se sente traída e abandonada, por outro se odeia por não ter acompanhado sua melhor amiga em seu destino, está confusa, cansada e assustada com a realidade.

 

 

Fujino percebe as intenções e os sentimentos de Ririsu, a confronta e a acua, a intimida e revela o fardo que carrega por ter matado seis pessoas, até mesmo ameaça matar Ririsu, uma pessoa assassinada a mais não faria diferença, não é mesmo? Ela conhece a dor e entende a garota, empatiza com sua agonia, e como uma irmã mais velha e experiente, que por muito tempo nem soube o que era estar viva, que não consegue dar valor a vida, que simula a convenção e encena ser uma boa pessoa, pois assim é o como deve se comportar, pois o senso comum assim estabelece, pronuncia as palavras de Yuuko, as quais só agora conseguiu compreender. A vida pode ser um inferno, um sofrimento encarnado, mas mesmo assim, é bela, a vida é bela. Yuuko desejava a felicidade, o bem, a prosperidade do mundo, desejava que Ririsu vivesse e sobrevivesse, ela nunca poderia desejar a morte da amiga, o sofrimento, que mesmo sendo inerente a vida, não maculava a sua estonteante beleza, o mundo que provia tudo. Fujino demorou para compreender essas palavras, e Ririsu, ao ouvir novamente as mesmas palavras por ela agora pronunciadas, compreende que Yuuko não a abandonou, e que mesmo que ela tenha colapsado para o sofrimento e se afogado em desespero e dor, ela desejava, orava e gentilmente oferecia a vida e esperança para aqueles à sua volta, mesmo para aqueles que ficaram após a sua morte.

 

 

Uma assassina e uma suicida melancólica que sofrem juntas ao nascer de mais um belo dia de sol. Que vivem, que perseveram, que seguem o fluxo humano da existência. Fujino paga pelos seus crimes silenciosamente, Ririsu é obrigada a se erguer e andar com as próprias pernas, a seguir a sua vida, a viver, pois ainda não é o momento, a dor ainda não lhe obriga a dar fim a si mesma, ela precisa viver.

Assim descem as cortinas da franquia de Kara no Kyoukai, mais um dia, mais uma vida. Esse deveria ser o último artigo, mas já adianto, não é, temos ainda mais um. Até o artigo final pessoas, companheiros de vida e de sentimentos que caminham pelas mesmas pedras em direção à espiral do vazio.

 

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