Kara no Kyoukai Remix: Gate of Seventh Heaven – A memória do esquecimento se chama eternidade
Chegamos ao último, e agora ao último mesmo, filme de Kara no Kyoukai. Primeiramente, obrigado por existir, anime belo, anime formoso, anime que é exatamente o meu estilo favorito de animes. Tudo bem, é uma adaptação de uma novel, eu sei, mas o que fizeram no decorrer desses onze filmes, é algo fantástico. Não acreditam em mim? Então leiam até o final essa resenha do filme de Kara no Kyoukai Remix: Gate of Seventh Heaven.
Esse segmento da obra não é o fim da história, na verdade é um fragmento que efetiva uma função fundamental na história, compilar e reapresentar os seis primeiros filmes de Kara no Kyoukai. O filme Remix, como o próprio nome sugere, efetiva um AMV, acompanhando a magnífica trilha sonora da obra com os momentos chave de cada um dos seis primeiros filmes, isso para fundamentar o solo em que o sétimo germinará.
É uma apresentação incrível e digna em si mesma, que não apenas cumpre a sua função primordial, como amplia, e muito, muito mesmo, a reflexão e os inúmeros conceitos filosóficos trabalhados durante a franquia. Temos o desfecho e o oferecimento de códigos que nos ajudam a transcrever a amplitude dos elementos antes apresentados na obra, e ainda mais, temos o convite para uma literal tempestade de ideias filosóficas alocadas sutilmente no decorrer das narrativas, e no caso desse Remix em particular, lindamente ornamentado com o ritmo das potentes e imersivas letras das músicas de Kalafina, a banda responsável pela trilha de todos os filmes, e ainda mais letras que nem vou considerar na análise, mas que são absolutamente incríveis ao transpor a essência da obra de maneira poética e sublime.
Toda a estrutura misteriosa e multifacetada da obra, as peças que somos conduzidos a montar e organizar, os nós que desatamos e posteriormente somos a eles atados, Kara no Kyoukai, esse Remix e o oitavo filme em especial, nos sugam a alma. E fico sem palavras em relação a composição de imagens e a animação fantástica que ilustra todo esse percurso, e novamente, em destaque, estão esse Remix e o oitavo filme, as espinhas dorsais e secundárias que arquitetam o corpo completo da franquia.
Acha que estou exagerando? Então me acompanhe no decorrer da jornada a seguir.
Consolidamos o entendimento sobre Shiki um, à qual, quando aceita o mundo, acaba por desejar estar só, ela não suporta ser infectada com sentimentos, por isso ela nega e deseja a morte do mundo, e principalmente da Shiki dois, pois, depois de aceitar a tudo, ela se sente violada pela existência. Mikiya adentra em seu coração, e isso lhe causa um grande sofrimento, sendo este misturado com felicidade e intensidades das mais diversas, que a corrompem, por assim dizer, e que moldam o seu coração.
Por outro lado, Shiki dois nega o mundo, acaba por desejar estar acompanhada, ela é infectada por tudo aquilo que nega, pois deseja destruir o que lhe circunda e acompanha, ela é uma catástrofe natural, como bem explica Shiki zero, e nisso ela não apenas deseja, mas é a morte em si do mundo. Ela deseja violar a existência. Mikiya, novamente, adentra em seu coração e lhe causa uma grande euforia, misturada com o desejo de matá-lo, como um sol que emana luz e existência em sua direção, suprindo infinitamente o seu desejo de estar acompanhada e de a tudo dissolver.
Consolidamos o entendimento sobre Fujino. Exemplificando a personagem, temos a teoria das camadas da mente, uma delas é a que está na realidade, a ilustração sugerida é que pensemos nessa camada como um canal, como se estivéssemos ligados a um canal de TV, mas no caso da Fujino, ela possui outros canais, potencialidades, sendo assim considerada, para aqueles sintonizados no canal do senso comum, uma anormalidade, uma anomalia fora da realidade, sendo considerada, caso revele a sua natureza, uma existência imprópria. Fujino é isso, uma pessoa para além da compreensão humana, com um poder e uma realidade outras, um canal ou mais para além do costumeiramente conectado senso comum. E o Mikiya? Ele é aquele que quer trazer à luz a garota, torná-la uma pessoa que se mantenha na realidade, no canal convencional. Mas será que alguém que acessa o para além do real consegue se firmar no real? Não se pode destruir uma camada sem que se destrua a própria pessoa. Fujino é multifacetada e sempre será, o seu poder é e sempre será uma anomalia dentre a realidade comum. A escolha da moça? Sim, ela escolhe viver entre mundos, respeitando a beleza da vida, mesmo que sofra por nunca conseguir ser ou estar ao lado da normalidade.
Consolidamos o entendimento sobre Kirie. A moça desejava enxergar o mundo de um lugar alto, ser livre de seu destino, fugir da morte e do sofrimento, ela estava em uma situação limítrofe, à beira de um penhasco e vivendo ao lado do desespero. Sua jornada era o fim, e o única esperança que podia nutrir, era a fuga. Araya, consciente dessa situação, oferece a moça a queda, a permite vagar pela sua flutuante situação, como um fantasma, para além de um corpo decadente e condenado. Kirie se arremessa como um espectro que pronuncia e manifesta, como um imã, a vontade de fuga, a cisão da realidade, do sofrimento e da agonia, e mesmo sem intenção, atrai as mariposas para a sua luz torpe e mórbida, ela arrastava para junto de si pessoas com o mesmo intuito, que fogem, que entram em desesperança e encaram o abismo da queda, literalmente. É um personagem trágico que flutua sem poder transcender, que assombra e fracassa, gravitado por iguais, por espectros acorrentados ao fútil da derrota.
Consolidamos o entendimento sobre o Araya. Ele almeja efetivar o registro do efêmero, lembrar. Araya quer presenciar e respeitar todas as mortes, ele sabe que não pode salvar ninguém, mas quer compensar o vazio, quer observar a existência, quer ser e acessar a onisciência, e assim, oferecer significado ao nada e a morte, a vida e a existência fútil dos humanos. Ele despreza a insignificância humana, por isso deseja que todos os insignificantes, ou seja, todos os humanos, desapareçam, para assim poder significar a existência dos mesmos através de si mesmo, aquele que registra e presencia, aquele que respeita e dá sentido. Ele, Araya, é ninguém, mas ao mesmo tempo ele é o reflexo e o todo, da teia de relações, do tecido humano de existência, faz parte da consciência coletiva e do vazio, do nada, faz parte da própria insignificância que despreza, ele é humano. O conhecimento, a descoberta da origem e do fim em si mesmo, dentro de si mesmo, revela que o desejo último de Araya, é existir, é ser lembrado, é não ser vazio e transcender a sua insignificância, mesmo que demonstre um apego profundo à mesma, e uma repulsa absoluta a si mesmo, e a tudo. Ele é um humano, um falho humano dentre a espiral do paradoxo que deseja o calor divino de um Deus que não está ali, e exatamente por esse Deus não estar ali, é que ele almeja estar nesse lugar e oferecer sentido a todas as vidas humanas. Sendo ninguém, buscando manifestar o conhecimento em si mesmo e descobrir a verdade, ele fracassa. O mais interessante é que se ele não tivesse fracassado, ele teria conseguido efetivar a sua ambição, como fica claro quando vemos o oitavo filme.
E por fim, o mais denso e importante de todos, ou ao menos, a mais complexa apresentação filosófica do filme Remix, temos o segmento que consolida o entendimento sobre o mago A palavra de Deus, Mayday. A debate tem por foco inicial a eternidade. A narrativa discorre a elaboração do significado da memória, nos dizendo que a memória é o que dissolve ao ser eterna, sendo o registro indestrutível que nunca se apaga, mas que pode ser sempre gravado, e exatamente por poder ser gravado, pode ser gravado como a memória do esquecimento. Guardem essa ideia, a memória do esquecimento. Ou seja, o que não lembramos, o que esquecemos, é a eternidade de uma memória que foi gravada, assim como todas as demais, e que nunca perecerá, apenas se dissolverá, diluirá, entre todas as demais que também estão registradas. O eterno oceano que armazena os registros das lembranças e o registro do esquecimento, dentre o qual um complementa e é o outro. Se aquilo que não se apresenta como eterno, assim o for, será aquilo é eterno em sua apresentação, concluindo-se que nada pode ser apagado, pois já se apresentou, destruído, pois já não o é, se dissolveu, e que será apenas reescrito sem deixar de ali estar. O eterno aqui entendido é exatamente a transitoriedade, mas a qual só pode ser transitória se se consolidar como evento que transcorre em eternidade, sendo assim, não existe transitoriedade que não seja eterna. Incluindo o esquecimento.
O que a palavra vê é apenas o fato real, ela não pode descrever nada mais, ela substitui a imagem para informar o mundo, preencher, entretanto, qualquer coisa além, o conhecimento, não pode ser alcançado. Mayday é ciente de sua incapacidade em conhecer, e de seu poder de revelar através da palavra, a forma do esquecimento que nunca deixou de estar ali, junto a memória dos fatos, como estrutura necessária que efetiva a essência dos registros, sua identidade efêmera e informe. O esquecimento é uma memória, e assim como quem se lembra de um instante, de uma forma, de uma correspondência que abstrai a mudança, efetiva a mudança que se refaz, que assim como o esquecer, e uma nova correspondência que se conduz. Uma mente que dá valor ao antes e ao depois, como Mayday ilustra, oferece duplamente o esquecimento, entre as partes e perante a si mesma. Essa é a impressão do não eterno que se eterniza, uma memória de fluxo que esquece e se lembra que esqueceu para poder lembrar.
A verdadeira eternidade, o significado de ser eterno, é não ter forma. A memória humana só se estabelece em sua eternidade, em sua verdade e significado, os quais não possuem forma, e devido a isso, ela só se estabelece em relação ao que não mais é, e ao qual nunca foi, ela só nasce quando se morre, e quando se morre é exatamente quando a vida desperta em memórias. A memória do esquecimento se chama eternidade.
Encerro aqui definitivamente os artigo da franquia de Kara no Kyoukai, agradeço a todos os que acompanharam esse desfecho comigo, e remeto um agradecimento especial a obra, que não é perfeita, como bem comentei, principalmente nos vídeos, mas consegue elevar e muito o grau de reflexão para aqueles que desejam refletir junto a animes. Até a próxima pessoal.