Começo o artigo sobre esse episódio difícil com uma amenidade e um mea-culpa: ontem, dia 30 de março, foi aniversário de Megumi Hayashibara, a veterana dubladora que está fazendo um excelente trabalho como Miyokichi em Rakugo Shinjuu. E eu só descobri isso já durante a madrugada. Tivesse sabido de antemão teria me esforçado mais para que esse artigo tivesse ido ao ar ontem, que é quando ele deveria ter sido publicado de todo modo. Seria uma boa forma de dizer “feliz aniversário”, não seria?

Na correria e no consequente cansaço para escrever o Guia da Temporada de Abril (já leu?) e para assistir Batman vs Superman (tinham mesmo que lançar o filme em uma virada de temporada de animes?), acabei atrasando esse artigo. Desculpe. Outra consequência de eu ter assistido o filme dos heróis da DC foi ter me lembrado de muita coisa daquela editora, incluindo o juramento de um dos meus personagens favoritos, o Lanterna Verde (sou velho e meu preferido é o Hal Jordan) e que quase se encaixa nesse episódio:

“No dia mais claro, na noite mais densa” é seu primeiro verso. E não dá para dizer que esse episódio foi literalmente de seu “dia mais claro” (o Sukeroku voltar ao rakugo) à sua “noite mais densa” (a morte dele e da Miyokichi)? Se o juramento parasse por aí estaria perfeito. Mas lógico que ele não termina assim, ele é um voto heroico de combate incessante ao mal. A própria mensagem positiva já o torna incompatível com o episódio, mas mais do que isso, a dicotomia bem versus mal que é comum em histórias de heróis não faz o menor sentido em uma história tremendamente humana como Rakugo Shinjuu. Não há vilões a quem culpar, nem heróis para nos salvar.

Paixão entalada por anos

Paixão entalada por anos

A coisa que me deixou mais feliz nesse episódio (sim, é possível ficar feliz com esse episódio!) foi ver que a Miyokichi não foi transformada em vilã. É verdade, ela quis forçar o suicídio duplo com o Yakumo antes, mas pense nas circunstâncias dela: sempre comeu o pão que o diabo amassou e nunca teve escolha senão continuar vivendo um dia depois do outro. Nunca teve direito sequer à esperança. Até que um dia ela teve esperança, ela se apaixonou e passou anos nutrindo esse sentimento e a esperança de que fosse ser escolhida pelo Yakumo, ao mesmo tempo em que a dúvida crescia em seu coração até que finalmente se transformou em desespero quando ela teve certeza que, mais uma vez, seria abandonada.

Ele não consegue dizer não

Ele não consegue dizer não

No calor do momento, no auge do desespero, prometeu vingar-se de Yakumo. No que ela estava pensando quando disse isso? Eu acho que nada. O que ela poderia fazer? Bom, a “sorte” sorriu para ela na forma de um Sukeroku abalado, expulso por seu mestre. Era perfeito: ela afastaria Sukeroku para sempre de Yakumo! Mesmo assim, não creio que isso fosse só uma vingança. Acredito que parte dela gostaria mesmo que Sukeroku a fizesse esquecer do Yakumo, e ter um filho talvez até ajudasse nisso. Mas o Sukeroku nunca esteve pronto para dar um passo para frente, ele nunca decidiu o caminho que seguiria, se iria tentar voltar ao rakugo ou se iria abandoná-lo para sempre. Como a Miyokichi o proibiu de praticar rakugo para não se lembrar do Yakumo mas como ele nunca foi determinado o bastante para fazer qualquer outra coisa, nada na vida deles mudou de verdade.

Para bom entendedor, meio pezinho levantado basta

Para bom entendedor, meio pezinho levantado basta

Eles tiveram uma filha e estavam morando no interior, mas todo o resto era igual: Miyokichi precisava viver de “acompanhante” para ganhar a vida e o Sukeroku era um vagabundo que só bebia. Como Konatsu, sua filha, adorava o rakugo, ela não conseguiu sequer se apegar à garota. Ela continuou vivendo em desespero. Ela continuou ansiando por Yakumo. E ele foi até ela. Só o que ela conseguia enxergar era o seu amado diante de seus olhos – e ele não a negou. Confesso que também fiquei feliz em ver que ele de fato nutria sentimentos verdadeiros por ela, evidenciados nesse episódio. Mas aí começa a parte mais difícil para nós porque nossa cultura é bem diferente. Por que a solução dela foi “vamos nos suicidar”?

Yakumo só sabia fazer rakugo e foi por causa do rakugo que ele a rejeitou em primeiro lugar no passado. Também por causa do rakugo o Sukeroku nunca pôde ser um bom pai e marido. A única coisa que ela sabia fazer era satisfazer outros homens, e ela continuou vivendo disso mesmo depois de já ter ido morar junto com Sukeroku – acho que nunca saberei se eles se casaram oficialmente, mas creio que não. Mesmo assim, viviam juntos e até tinham uma filha. No sociedade japonesa, especialmente naquela época (acredito que hoje seja melhor, mas ainda não muito), seria um escândalo que Miyokichi e Yakumo ficassem juntos, a não ser que fugissem para algum lugar onde ninguém os conhecesse – o que ela já havia pedido para o Yakumo antes e ele já havia recusado. Sem mais força ou vontade de continuar vivendo, encontrou no suicídio com seu amado a saída digna possível do ciclo de sofrimento que era sua vida.

Mal sabia ela que Sukeroku havia finalmente se decidido: iria abandonar o rakugo e trabalhar para cuidar de sua família. Foi basicamente isso que ele quis dizer com a peça que executou mais cedo naquele dia e que emocionou a plateia e a ele próprio. O sonho de sua peça se referia ao seu desejo e agora possibilidade real de se tornar um Yakumo. O alcoolismo era seu rakugo. Como sempre, Sukeroku escolheu sua peça cuidadosamente. Para o público é apenas engraçado ou emocionante. Para ele é bem mais do que isso. Quando ele chega para dizer a Miyokichi de sua escolha pegando-a agarrada ao Yakumo e tentando se matar com ele o estado de consciência alterado em que ela se encontrava (além de emocionalmente abalada pela presença do Yakumo e pela sua própria determinação de se matar ela aparentava estar embriagada) a fez entrar em choque.

Ele já tinha decidido

Ele já tinha decidido

Não deve ser fácil ser pega pelo seu marido tentando se suicidar com seu antigo amor (e irmão de seu marido), não é? Mesmo assim acho que tudo poderia ainda acabar bem se a sacada daquele hotel não fosse feita de palito de sorvete, ocasionando o acidente que se seguiu. Ela caiu e Sukeroku pulou atrás dela. Ele a abraçou e Yakumo o agarrou pela roupa. Mesmo que ele tivesse força para puxá-los, o paliteiro despencaria antes com o peso dos três. É um alívio inútil saber que a Miyokichi tão determinada a morrer instantes antes agora estava tremendo – era mesmo uma decisão tomada no calor do momento, sem muita reflexão. Yakumo não teria se importado se os três morressem, e talvez esse fosse o final mais justo para a história se não houvesse a pequena Konatsu. Sukeroku conhece seu irmão e melhor amigo muito bem, sabe que pode confiar nele, e os dias que viveram juntos dão a ele a certeza de que Konatsu estará em boas mãos se for com o Yakumo. Todos os homens, Yakumo e Sukeroku inclusos, falharam com a Miyokichi em vida. Sukeroku quis pelo menos não falhar com ela na morte.

Olhando fundo para o abismo mas ainda ancorado na luz; Yakumo não pode cair

Olhando fundo para o abismo mas ainda ancorado na luz; Yakumo não pode cair

O casal mergulha para a morte com o peso de todos os arrependimentos que acumularam em suas vidas; e um olhar fixo e um braço estendido para cima implorando para que Yakumo cuide de tudo

O casal mergulha para a morte com o peso de todos os arrependimentos que acumularam em suas vidas; e um olhar fixo e um braço estendido para cima implorando para que Yakumo cuide de tudo

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