Bom dia!

Se eu tivesse que responder qual dos animes que eu escrevo eu mais lamento ter atrasado o artigo sem dúvida diria que é Girls’ Last Tour. Na verdade, acho que é o único que eu realmente lamento. Eu precisei tirar essa semana fora, não tinha jeito. Estou me virando com os artigos agora.

Wake Up, Girls! Shin Shou? Ok atrasar, se não teve jeito. Dies irae, Ousama Game, Kujira no Kora? Por favor, né. Mas eu queria, como queria ter escrito um artigo para cada um desses episódios de Girls’ Last Tour…

O nono episódio até abandonou as animações de abertura e encerramento, ficando com uma aparência de filme, de obra solo! E francamente, poderia ser apresentado como obra solo, não é? Foi também um ponto de inflexão no anime: elementos de ficção científica finalmente surgiram e ocuparam o primeiro plano do enredo. Até então a única coisa realmente futurista do anime era o seu cenário, que de todo modo estava arruinado. Ruína por ruína, tanto faz ser em uma mega-cidade de vários andares de Girls’ Last Tour ou no deserto escaldante de Mad Max, ambos se prestam a, através de ruínas da civilização, nos fazer pensar sobre como tudo o que consideramos eterno e imutável na verdade pode sucumbir a qualquer momento. Ou aos poucos, ao longo de tanto tempo que ninguém percebe a ruína tomando conta. De tudo o que temos, o que realmente é importante? Por quê? O que significa para nós?

Girls’ Last Tour vinha respondendo a isso até agora, de forma que a não-civilização, a ruína de uma civilização, é na verdade uma alegoria para a nossa própria civilização. Então robôs. O que mudou? Quero dizer, alguma coisa mudou? Eu acredito que não: como outras tantas ficções científicas, Girls’ Last Tour não apresentou um mundo futurista para que apreciemos suas peculiaridade ou que pensemos sobre o que vamos nos tornar, mas para, através de um ponto de vista inesperado em um mundo que não conhecemos, colocar em evidência as mesmas alegorias, provocações filosóficas sobre o mundo que conhecemos.

O que é vida? Não é a primeira vez que elas se perguntam isso. E esse não é o único déjà vu do episódio; de fato, a cena inicial inteira é reminiscente da cena inicial do primeiro episódio – e as próprias garotas dizem isso. A diferença desse para aquele é que o mundo aqui parece mais vivo. Há mais ruídos, há mais luz, há mais movimento. Até então, a cada andar, o mundo mudava um pouco, a arquitetura era notavelmente diferente, mas nesse episódio era mais do que isso. Não resta dúvida de que o mundo onde elas se encontram agora está mais vivo do que em todos os lugares em que estiveram desde o começo do anime.

O que é vida? O que é um ser vivo? O que é viver? São perguntas filosóficas, difíceis de responder. E a verdade é que mesmo a ciência tem dificuldade para dar respostas definitivas. Enquanto escrevo, uma das minhas gatas dorme na cadeira ao lado, e eu sei que ela está viva mas a cadeira não. Posso até dizer porquê. O problema é quando essas respostas, essas definições, são testadas em seu limite. Vírus estão vivos? Uma sociedade (não só a humana; pense em uma colmeia de abelhas também, etc) em si está viva? O planeta está vivo? O sistema solar? O universo? Achar uma resposta que separa gatos e cadeiras é fácil. Uma que separe tudo o que intuitivamente nos parece “vivo” do resto, necessariamente não vivo, é bem mais difícil.

As garotas experimentam com a noção de empatia. Mas empatia só faz sentido para seres superiores, com sentimentos (verdadeiros, como os humanos, ou falsos, como os dos robôs – e definir o que é um sentimento “verdadeiro” também é provavelmente muito difícil), capazes de sentir empatia portanto. O episódio termina com a Chito concluindo que “vivo” é aquilo que um dia acaba. É uma definição problemática também, mas não acho que o anime quisesse mesmo dar uma resposta definitiva. O que é estar vivo, para você?

Quando alimentou o peixe, Yuuri começou a formar um vínculo com ele

Mais importante que isso, voltando à vida superior, dessa vez definida como a vida de seres capazes de tomar decisões conscientes, está a consequência dessa habilidade: se eu posso escolher entre isto ou aquilo, se posso escolher entre fazer ou não fazer, deve haver uma escolha melhor. Deve haver, senão em todos os casos pelo menos em alguns, escolhas certas e escolhas erradas. A partir desse tipo de vida nasce a ética.

No caso da Yuuri e da Chito, pela primeira vez desde o começo do anime foram forçadas a tomar uma decisão ética complexa. Se viram às voltas com um dilema moral: o robô construtor está desmontando tudo. O peixe irá morrer e o robô cuidador do peixe irá perder sua razão para viver – e sendo ele um robô com uma programação bem simples, não é como se pudessem apenas conversar com ele e convencê-lo a fazer outra coisa ou tentar perseverar de alguma forma. Ele estaria funcionalmente morto. Elas escolhem destruir, “matar”, o robô construtor. Foi uma decisão utilitarista? Olhando de fora e sem uma análise aprofundada, pode parecer o caso: escolheram duas vidas ao invés de uma, afinal. Mas teve mais que isso: o robô construtor era o “agressor”, (embora seja complicado invocar a justiça aqui quando ele estava apenas seguindo a sua programação. Como o robô cuidador do peixe, ele não tinha escolha), e as garotas estabeleceram um vínculo com o outro robô e com o peixe. Vínculo emocional e justiça, nessa ordem, foram provavelmente os fatores preponderantes.

Está feito

O mundo está ainda mais vivo no episódio 10. Para começar, Chito e Yuuri tomam um trem logo no começo: o mundo está funcionando. Ao mesmo tempo, haviam lá várias carcaças de robôs desativados, mas tragicamente ainda operantes em algum nível – “vivos”. Girls’ Last Tour ainda não mostrou um único cadáver humano, mas os cadáveres de robôs já estão aparecendo para todos os lados. No episódio 9 o robô pequeno contou um pouco da história do mundo, bem pouco. Disse ele que certo dia a cidade sofreu um dano massivo, e depois disso, não conseguiu mais se recuperar. Sabe-se, contudo, que uma segunda civilização, provavelmente menor e menos avançada, ocupou o espaço deixado vago pela primeira. As informações do Kanazawa, detalhes arquitetônicos e tecnologia anacrônica denunciavam isso.

O trem que as garotas tomaram

O décimo episódio, contudo, fornece uma paisagem que muito provavelmente é o mais claro sinal da existência consecutiva das duas civilizações: uma colossal perfuração no andar superior logo acima de uma cratera no andar em que as garotas se localizam sugerem que esse é o tal “dano massivo”, ou parte dele, a que o robô do peixe aludiu. Uma arma terrível e inimaginável causou esse estrago. Nas bordas da cratera, posicionados em vários níveis nos edifícios devastados, tecnologia militar com a qual estamos familiarizados, também arruinada, sugere que a segunda civilização também já batalhou nesse mesmo local. Para onde foram ambas? Estarão extintas?

Bom, pelo flashback do primeiro episódio cumpre lembrar que a tal “segunda civilização” é a das próprias protagonistas. E elas foram colocadas para fora do lugarejo em que viviam, para sua própria proteção, à véspera de uma batalha. Terão todos lá morrido também? Não é improvável. Em um mundo com tamanha escassez por recursos é apenas natural que batalhas irrompam o tempo todo entre as várias tribos esparsas que o habitam – deve haver uma ou outra por aí ainda, as garotas nunca os encontram apenas porque o mundo é estupidamente enorme. Já trombaram com outras duas pessoas solitárias, contudo, e elas têm que ter nascido de alguém, o que indica a existência de mais pessoas em algum lugar, nem que seja um lugar do passado.

Mas e a primeira civilização, que assume-se seja a nossa própria, após cerca de um milênio de progresso? Bom, parte dela pode ter involuído tecnologicamente e se tornado a segunda civilização, ou talvez essa segunda civilização tenha sempre existido à sombra da primeira, e tenha sido negada a ela todos os avanços tecnológicos que a primeira desenvolveu. Talvez tenham coexistido em um sistema de castas – os múltiplos andares podem ser exatamente isso, afinal.

Por outro lado, os múltiplos andares podem ser apenas uma alegoria para o fato de que o progresso, para o bem ou para o mal, é construído em cima do passado. Em Girls’ Last Tour, a partir do momento em que decidiu viver separada da natureza, a humanidade deu um novo significado a essa expressão. Veja, hoje em dia dizer “construímos em cima do passado” já é literal: abaixo da cidade em que vivemos hoje existem os restos da cidade em que as gerações passadas viveram. Em cidades muito antigas na Europa ou na Ásia é sempre difícil realizar grandes obras de infraestrutura porque é certo que se irá trombar com achados arqueológicos. Mas mesmo em nosso país relativamente jovem, muitas de nossas cidades centenárias já convivem com isso e não é raro que essa ou aquela obra, pública ou privada, encontre restos do período imperial ou colonial, ou em alguns casos mais incomuns sítios arqueológicos dos povos pré-colombianos. Tudo isso para reforçar a ideia: construímos literalmente em cima do passado.

Qualquer que tenha sido o motivo, talvez a primeira civilização de Girls’ Last Tour tenha começado a fazer isso de uma forma completamente diferente: começou a erguer pilares colossais e construiu laje em cima de laje, e em cada nova laje, uma cidade mais nova que a anterior. Os restos arqueológicos de guerras passadas que Chito e Yuuri encontraram talvez não sejam o indício do extermínio da humanidade, mas apenas algumas camadas abaixo de onde a civilização está vivendo hoje. As garotas continuam subindo, e quem sabe, talvez, um dia encontrem essa civilização que acreditávamos perdida? Mas será que elas os reconhecerão? As batatas e peixes já estão bastante curiosos, e aquele animal que elas encontraram, aquela salsicha falante, é simplesmente alienígena. Se um homem das cavernas fosse magicamente transportado para o centro de qualquer cidade contemporânea, ele reconheceria as pessoas ali como seus iguais?

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