Aqui no blog já escrevemos muito sobre adaptações de light novels para mangás e animes, mas que tal escrever sobre uma light novel em si? Sempre tive essa vontade e acho que o livro escolhido não poderia ter sido outro.

86 – Eighty Six –, obra de Asato Asato lançada desde 2017 e que conta com 5 volumes até o presente momento, uma adaptação em mangá e um sucesso de vendas que assegura aos fãs sonharem com uma adaptação para anime.

No artigo comentarei apenas o primeiro volume tentando ao máximo não dar spoilers para não estragar a sua experiência com essa leitura. Acredite em mim, caro(a) leitor(a), vale a pena dar uma lida nesse volume e, antes de mais nada, neste artigo!

Antes de sequer ir para a sinopse, acho importante escrever do que se trata uma light novel. Um livro com ilustrações – mas há exceções a essa regra – e linguagem mais simples, focada no público jovem e com uma forma de categorização diferente das demografias dos mangás.

Na verdade, o padrão das lights novels leva a vários questionamentos, mas dá para resumir de forma prática. É light novel tudo aquilo que a editora disser que é e, normalmente, tenha as características que descrevi acima – além de se tratar de uma leitura dinâmica focada nos personagens da obra e não na construção de mundo.

Esclarecida qualquer dúvida sobre esse formato, acredito que agora posso comentar exclusivamente a light novel que escolhi para esse artigo, digamos, “experimental”. 86 é um drama sci-fi que se passa em um mundo em guerra no qual os jovens residentes dá zona 86 devem pilotar robôs para proteger as outras 85 zonas que “também” compõe a Republica, um pais livre erguido sobre ideais de justiça e fraternidade que está há anos em guerra com o Império.

Mas essa é apenas a versão oficial dos fatos.

Você estudou a segunda guerra mundial na escola? Acredito que ainda que não tenha feito isso deve conhecer superficialmente o contexto do nazifacismo naquela época e como a Alemanha jogou suas minorias étnicas em campos de concentração e praticou as mais diversas barbaridades com elas, no que se tornou uma das maiores manchas, senão a maior, na história da sociedade moderna.

Imagine que eles utilizassem todos os mestiços e forasteiros – os não albas – para enfrentar quem ameaçasse invadir suas fronteiras, não tivessem um ditador em seu comando e gozassem de uma boa reputação com as nações vizinhas e temos 86; história na qual a hipocrisia e imbecilidade humana fazem escola. É verdade, é um contexto diferente, mas com certeza há influencia desse trágico episódio da história.

Sim, os registros oficiais mascaram a verdade cruel e degradante, pois essa zona 86 nada mais é que um amontoado de pequenos campos de concentração no qual vivem aqueles que foram segregados pela República. Eles são chamados de “eighty sixers” e lutam sob a falsa promessa da cidadania que nunca virá, pois eles morrem antes disso, já que a Legion – o exército humanoide do Império – não é mais comandada por humanos. As máquinas tomaram o controle e seguem o caminho da destruição.

É nesse contexto desfavorável que Vladlena Millize recebe a incumbência de comandar o esquadrão “Spearhead”, conhecido por sua incrível performance em batalha, e busca desenvolver uma relação amigável com os soldados que têm a sua mesma faixa etária. Só que nem tudo na vida são flores, e é claro que a gentileza dela seria malvista, afinal, ela está do lado do opressor e eles são os oprimidos.

Um dos acertos que pode ser percebido já no início da leitura é que desenvolvem a trama em função dos personagens e eles são muitos mais complexos do que apenas pessoas que dizem “sim” ou “não” quando confrontadas com uma situação que exige reflexão e uma noção mais realista de mundo.

Há aversão a comandante em um primeiro momento, mas não é como se eles não reconhecessem a boa vontade dela, é só que não querem receber a sua piedade. Eles não nutrem um ódio indiscriminado – apesar de pegarem pesado com ela em certos momentos – pelos albas – não lembra raça ariana, né? – como se poderia esperar, e nem são ignorantes a sua própria situação ou as dificuldades da garota.

Aliás, o comando militar da Republica é tão leviano que obriga os esquadrões a serem comandados a distância – eles recebem ordens para morrer de alguém que está no conforto de sua casa – e ameaça desertores ou revoltosos com mísseis apontados para todo o território da zona 86. Se tentarem fugir eles serão mortos, se continuarem a lutar também.

Não há como lutar contra o destino que lhes fora imposto. A liberdade não é uma opção, e isso os frustra, mas magoa principalmente a Lena que não tinha ideia do quão sem esperanças era a situação e vai percebendo isso com o convívio com eles. O protagonista da história é um dos eighty sixers, seu nome é Shin – codinome: Undertaker – e é justo na interação entre ele e ela – com certas coincidências que os envolvem – que a trama se desenrola.

O maior foco da trama reside nesses personagens; em seus dramas, suas reflexões, ações e reações. É dado aos outros personagens um papel coadjuvante, mas nem por isso menos importante já que, ainda que de forma simplista, as histórias de vida de cada um deles contribuem para pintar quais são as cores desse mundo colorido em podres tons de cinza.

Há casos de eighty sixers que foram salvos e ajudados por albas, assim como casos de preconceito que contribuem para contextualizar a situação do país, o que levou a população a aceitar essa sobrevivência do mais forte sacrificando o mais fraco.

Em paralelo a isso há toda uma trama que envolve Shin e seu irmão, soldado que morreu no campo de batalha tendo deixado algo a resolver entre os dois. Há elementos de sci-fi na trama familiar que não vou comentar em detalhes para não estragar as surpresas que a obra guarda, mas posso garantir que esse sentimento vai muito além do amor fraternal e que a Lena, ainda que de forma indireta, faz parte dessa subtrama que é, de certa forma, efeito colateral da guerra e a tem como pano de fundo.

Outro ponto positivo desse primeiro livro é a personalidade dos personagens, como nelas há nuances que os humanizam e refletem suas próprias histórias de vida. Por exemplo, a ignorância da Lena, que desconhecia boa parte das atrocidades praticadas pela República de São Magnólia e teve que sair da sua zona de conforto para só assim conseguir se conectar de verdade com seus subordinados.

Com o tempo ela consegue se sensibilizar com a dor deles e entende o quão impotente ela era, mas, ainda assim, poderia fazer alguma coisa – o mínimo que fosse – a fim de ajudá-los a encontrar a liberdade. Aliás, no final desse primeiro volume há uma resposta para esse questionamento, o que de fato pode ser considerado liberdade, e como a forma de encarar essa liberdade pode depender mais de fatores subjetivos que objetivos.

É aí que entra outra coisa bacana sobre essa light novel – ao menos em seu primeiro volume –, pois, se você não ler o último e curto capítulo pode dar a história como finalizada.

Fecha-se um arco, tudo o que foi proposto foi bem resolvido e não parece haver necessidade de mais outro capítulo. Contudo, a light novel continua sob circunstâncias diferentes. Ainda não li seu volume dois, mas creio que o gancho para ele foi mais do que satisfatório, pois não fugiu do clima sério que a obra tem e nem pôs a perder tudo o que ocorreu antes.

Pessoas morrem nessa obra e sequer é dado tempo – ao menos em alguns casos – para que o leitor consiga se apegar a esses personagens, o que é bom, pois não explora o drama em demasia. Além disso, por se focar muito nos protagonistas não seria tão interessante ramificar demais os temas a serem trabalhados.

A guerra é cruel, nela se morre sem direito a despedidas elaboradas ou palavras de conforto. É tudo muito visceral, tanto durante as ótimas batalhas que o livro entrega, quanto as interações entre os garotos e aquela que os comanda.

Há poucas – mas, felizmente, belas – imagens na light novel e praticamente toda sua violência gráfica tem que ser imaginada pelo leitor, o que considero um acerto, pois, mesmo sendo light novel ainda é um livro como qualquer outro. Em livros as pessoas costumam exercitar a mente para imaginar caras e bocas, cenários e roupas; além de batalhas – entre outros momentos. Não acho que isso possa ser, ou não acho que deva, tirado do leitor e dei sorte por ainda não ter lido uma light novel em que essa parte visual me incomodasse.

Enfim, tentei comentar esse primeiro volume da maneira mais sucinta o possível. Espero que este artigo tenha instigado o interesse por ler o livro em você. E sobre o título, a verdadeira liberdade está em se sentir livre, ainda em não ser. É nessa resposta que esse volume de 86 me fez chegar.

A título de curiosidade, 86 é um termo usado para representar “descarte” no meio militar, e por isso a novel ganha esse nome. Outro detalhe é que Undertaker significa “coveiro”, algo que faz todo o sentido conhecendo o personagem que carrega tal codinome. Leia 86! Até a próxima!

  1. Gente, vocês que assistiram a tantos animes quanto eu (e provavelmente mais além), lembram se havia um mangá ou light novel de nome “86” mostrado numa cena de… Re:Creators ou… Eromanga Sensei? (sic)…
    (Esse “maratonão” que venho fazendo desde o início da pandemia está transformando minha cabeça em liquidificador.)

    • Vi os dois animes e não lembro, mas fica a curiosidade de que o Shirabi, ilustrador da novel de 86, também ilustra a novel de Musaigen no Phantom World e Ryuuou no Oshigoto, além de cuidar do character design desses animes e do de 86 também. Como a novel de 86 é de fevereiro de 2017, acho difícil que tenha entrado em Eromanga-sensei ou Re:Creators já que ambos os animes são de abril do mesmo ano. De toda forma, agradeço o comentário, foi bem divertido lê-lo.

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