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Sarusuberi: Miss Hokusai (2015) é uma adaptação para filme anime do mangá Sarusuberi (1983-1987), de Hinako Sugiura, biográfico, que conta trechos da vida de Katsushika O-Ei, artista de ukiyo-e no século 19, filha de Katsushika Hokusai, também artista de ukiyo-e.

Miss Hokusai exibe fragmentos de um trecho curto e bem específico das vidas de pai e filha, que parece ter sido de um ano, além de alguns flashbacks e um epílogo, e nos convida a extrapolar todo o resto.

 

Cena noturna em Yoshiwara (Yoshiwara Koushisakinozu - 吉原格子先之圖) (1850)

Cena noturna em Yoshiwara (Yoshiwara Koushisakinozu – 吉原格子先之圖) (1850)

 

Com esse formato, o filme não é senão um slice of life no sentido mais literal possível do termo, e, desse modo, é um slice of life no sentido original pretendido para o termo por Jean Jullien, dramaturgo francês que dizia que “uma peça é uma fatia da vida colocada no palco com arte”, e também que o final de uma peça era “apenas uma interrupção arbitrária da ação que deixa o espectador livre para pensar sobre o que vai além de sua expectativa”.

Um flashback da infância da infância de Oei e o epílogo ao final do filme, porém, indicam a pretensão de conduzir esse processo de pensamento do espectador.

Oei é a protagonista e a história é contada de seu ponto de vista, são os seus pensamentos que Miss Hokusai compartilha conosco, não os de seu pai ou qualquer outro personagem.

Logo no começo, após conversar com sua mãe (Koto, segunda esposa de Hokusai), escutamos o lado filosófico de Oei pela primeira vez, quando ela observa uma murta de crepe florindo:

 

“Floração sem sentido, apenas para depois desmoronar colorida”

 

Oei compenetrada enquanto trabalha em uma obra

 

Oei transmite um senso forte de indiferença, desinteresse, que contrasta com seu esforço no trabalho artístico, o cuidado que tem com a frágil irmã mais nova Onao, e, como não poderia deixar de ser, nas desavenças que tem com o pai. Que não são desavenças de verdade.

Ao longo do filme fica claro que tanto ela quanto o pai escondem uma chama dentro de suas almas, que só são visíveis para quem consegue ver, quando eles querem mostrar, além, lógico, de através de suas artes.

No fundo, os dois são muito parecidos, e em parte é por isso que os defeitos do pai a incomodam: porque são também defeitos dela. Uma das primeiras coisas que descobrimos é que a casa de Hakusai é uma bagunça, que nada nunca é arrumado e precisando de espaço eles simplesmente jogam o que estiver no caminho para os cantos.

Escutar a Oei descrever isso em pensamento enquanto seu pai pinta faz parecer que ela o está criticando, mas ela está falando também de si mesma. Com efeito, se é para alguém duvidar do descuido da protagonista, nessa mesma cena, tão logo ela termina de descrever o modo de vida desleixado dos dois, ela se distrai tentando matar uma mosca e derruba brasa da piteira que fumava em cima da pintura que seu pai estava terminando. E que é para ser entregue no dia seguinte. Um enorme dragão, encomendado por alguém poderoso o bastante para fazer cabeças rolarem e barrigas se abrirem caso não seja entregue.

 

Pai e filha em sua casa-ateliê desordenada

 

É assim que acompanhamos a vida de pai e filha por um período de aproximadamente um ano. Os dois são almas livres que dificilmente poderiam ser mais parecidos, a única diferença é que Oei ainda é inexperiente em muitas coisas na arte e na vida.

Teimosa o suficiente para rejeitar os conselhos do pai na cara dele, sábia o bastante para procurar colocá-los em prática em suas costas. E ele provavelmente sabe disso.

Um dos momentos mais constrangedores do filme, e para Oei em particular, é quando ela vai para Yoshiwara contratar um kagema (prostituto) porque tem dificuldades com o amor e para desenhar cenas eróticas por, segundo seu pai, não entender o amor.

Assim eram Oei e Hokusai: faziam e falavam o que lhes dava na telha. Fica implícito que isso não era senão parte do que significava a liberdade para eles, um elemento importante de suas personalidades e de suas artes.

Em mais de uma ocasião durante o filme ocorrem eventos sobrenaturais na presença dos dois, e só eles conseguem ver o que não deveria ser visto porque não deveria existir. Dessa maneira, a arte de Oei e Hokusai não era algo que nascia apenas na cabeça deles, a criatividade não está apenas em suas mentes, mas ela é algo que existe como potência no mundo, e seus trabalhos como artistas é realizá-la e capturá-la em suas artes.

 

Três mulheres tocando instrumentos musicais (Sankyoku gassô zu - 三曲合奏図) (1850)

Três mulheres tocando instrumentos musicais (Sankyoku gassô zu – 三曲合奏図) (1850)

 

Uma desavença entre pai e filha, porém, manteve-se imutável ao longo do filme: a relação com a família, e em particular, com Onao, irmã mais nova de Oei.

Onao é uma criança que nasceu muito fraca (isso ou, possivelmente, teve uma doença infecciosa quando ainda era bebê, tendo sobrevivido com sequelas). Ela é cega, o que para a filha de um dos maiores nomes do ukiyo-e é uma piada cruel do destino, e se adoenta fácil.

Oei tem carinho especial por Onao, a visita sempre que pode, a leva para passear e cuida dela quando necessário. Hokusai, por sua vez, nunca a visita, nunca fala sobre ela, ignora quando Oei fala sobre Onao.

Não é desprezo ou qualquer sentimento ruim para com a criança, que apesar do descaso ama seu pai. É que ele se sente culpado mesmo. Culpado de quê, exatamente? Isso Miss Hokusai não responde.

 

 

E é assim, quase tão do nada quanto começou, que o filme termina. O filme encerra com um epílogo em que algumas datas e eventos são jogados, nos convidando a preencher as imensas lacunas.

Ao contrário do que Oei implicou com aquela frase sobre as florações inúteis, porém, Sarusuberi: Miss Hokusai parece querer dizer que há, sim, significado nas flores desabrocharem, mesmo que elas eventualmente murchem e caiam. O significado está, por exemplo, no que transcende a vida. No caso dela, justamente a sua arte. A vida de seu pai teve um significado para ela. A vida da pequena Onao, teve outro. Tudo isso foi importante.

Um filme feito como se fosse um quadro. Estático, pleno em sua incompletude. Não é uma história inteira, mas, como queria Jean Jullien para o seu teatro, apenas um fragmento da vida. Uma narrativa incompleta que nos desafia a pintar o resto.

 

Kinuta, ou Bela mulher batendo pano à luz da lua (1850)

Kinuta, ou Bela mulher batendo pano à luz da lua (1850)

 

As imagens de ukiyo-e desse artigo são reproduções de obras de Katsushika O-Ei, e foram retiradas do Trivium Art History.

 

  1. Legal ver posts assim falando de filmes não muito conhecidos.

    Keiichi Hara é um excelente diretor dessa geração, mas pouco lembrado comparado aos grandes nomes da atualidade como Makoto shinkai e mamoru Hosoda. Acho Miss Hokusai um bom filme, mas o mais fraco de sua filmografia. Grandes expectavivas para o próximo filme dele, Birthday Wonderland.

    • Fábio "Mexicano" Godoy

      Olá Rodrigo, tudo certinho?

      Estamos nos esforçando aqui para cobrir mais do que só animes da temporada, que bom que está gostando 😊

      Sobre o diretor, estou com Colorful dele aqui na minha lista para assistir ainda. Parece ser bem diferente de Miss Hokusai, e bem mais pungente.

      Obrigado pela visita e pelo comentário!

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