Fatal Frame (Live action) – Quebre a minha maldição
Fatal Frame é uma série de jogos do gênero survival horror, o mesmo do famoso Resident Evil, muito popular no Japão e que deu origem a esta adaptação cinematográfica de 2014. Dirigido por Mari Asato e protagonizado por Ayami Nakajo, Aya, e Aoi Morikawa, Michi, o longa conta a história de uma maldição que só afeta garotas e deve ser quebrada, revelando mistérios de um colégio interno católico.
Na história a primeira personagem com a qual o público tem contato é Kasumi, mas ela apenas serve para expor o problema no colégio interno feminino, a existência de uma maldição que só afeta garotas e é ativada quando a foto de uma garota é beijada à meia-noite, o limiar entre dois dias.
A simpatia para conquistar o amor espalhada por boatos acaba afetando o ambiente escolar e expõe a existência de mistérios canalizados pela aparição de um fantasma que é a cara de uma das garotas, Aya Tsukimori.
Não consegui deixar de pensar em um paralelo entre uma maldição que só afeta garotas e muitas das dificuldades que mesmo a vida nos dias de hoje ainda confere as mulheres.
Ao longo dos anos os avanços pelos direitos das mulheres foram muitos e perceptíveis, mas ainda há muito a se melhorar e, sejamos honestos, ainda existem muitos problemas que só afetam garotas, ou afetam bem mais a elas. Assédio, gravidez na adolescência, preconceito de gênero, violência familiar, feminicidio, entre outros.
Enfim, me incomoda que a Aya seja não só o alvo do amor de várias garotas da sua escola, como também tenha se trancando em seu quarto por mais de um mês sem ninguém ter pensando em arrombar a porta, ou se não isso, ter tentado tirá-la de sua reclusão com mais afinco.
Privacidade é superimportante, mas nesse tipo de situação, em que ela estava diretamente envolvida, deixá-la de lado foi “estranho”. Talvez aceitável de acordo com o modus operandi da sociedade japonesa? Talvez.
Estranho também é o fascínio de muitas de suas colegas por ela. E não é nem que ela não seja bonita, pelo contrário, mas ter um borogodó tão grande é incomum. Posso pôr isso na conta da maldição, pois é como se o fantasma precisasse que as garotas fossem atraídas pela sua imagem, igualzinha à da Aya.
Não estranho que em um colégio interno católico só para garotas existam aquelas que acabam se apaixonando por uma colega, o caso da Kasumi e de tantas outras nessa história.
O problema é que se elas estão lá é sinal de que a família não deve aceitar que as filhas tenham esse tipo de relacionamento com outra garota e é justamente isso que cria a base para a maldição existir e se propagar, atingindo não só a Kasumi, a primeira narradora, mas a outras meninas que querem amar livremente, não limitadas pela sociedade que as cerca.
Aliás, a forma que suas senpais encontram para sair disso muito remete a cultura japonesa de que o suicídio é uma saída para os problemas que se tem em vida.
Mas fiquei pensando, no catolicismo o suicídio é uma passagem só de ida para o inferno, sendo assim, no fim das contas as garotas não acreditavam nisso ou não se importavam, achando que desejar ficar juntas da pessoa amada já seria o suficiente, ainda que fosse após a morte ou quem sabe no próprio “inferno”?
Não sei, mas sei que a forma como o xintoísmo vê o suicídio é diferente do que no catolicismo. Me pergunto se não foi um erro de abordagem usar o “suicídio” em um colégio católico…
Talvez eu só esteja pensando demais e, de toda forma, não acho que é assim tão relevante. O que é relevante é que para chegar ao ponto de se suicidar a pessoa deve estar desesperada, sabendo que não teria outro caminho, e isso é um reflexo da sociedade machista, retrógrada mesmo, japonesa. Não é como se isso fosse muito diferente no Brasil. Pelo contrário, consigo é enxergar muitas semelhanças.
Voltando à trama, a Kasumi, que beijou a suposta foto da garota que ela ama, a reclusa Aya, desaparece e isso chama a atenção de todas no colégio, provocando o interesso de outras garotas e assim a descoberta do que aconteceu com ela, ou melhor, do que ela estava tentando fazer, ter o amor de Aya, a garota mais popular do colégio, que cantaria um solo na formatura e se tranca em seu quarto.
É aí que o filme deixa a primeira ponta solta que conectará as coisas mais à frente. O aparecimento do garoto que fotografa o espirito que assombra a cidade. Aliás, esse filme é baseado em um livro baseado na série de jogos. Até onde sei as diferenças entre os games e a película são muitas, mas alguns elementos se mantêm; como a fotografia, os fantasmas e as garotas. E é só disso que sei, ou nem isso.
O que se segue são aparições bem contundentes do fantasma que supostamente é a diva hikikomori, sempre pedindo ajuda para que quebrem a maldição.
Uma maldição que só afeta garotas, que a afetou e para se livrar dela o fantasma não sente vergonha em pedir ajuda, de formas que chegam até a ser cômicas e não assustadoras, é verdade, mas que funcionam para escancarar que há um drama pesado ali.
Acho que a aparição do fantasma é tão frequente, tão natural, que fica difícil se assustar como em um filme de terror. Não sei se foi porque vi o filme de manhã, mas Fatal Frame não me assustou nada.
Apesar disso, eu gostei da atmosfera criada no longa. Não é um terror convencional, é mais circunstancial, remete mais ao sobrenatural e ao incômodo por não se saber direito o que está acontecendo. Já comentei em outros artigos, principalmente de anime, e volto a repetir, o terror japonês é bem mais criativo que o ocidental, tem mais variações, depende bem menos do susto em si.
Eu gosto disso. Acho que Fatal Frame é muito bom nesse sentido, ele chama o telespectador para dentro da história, o convence a acompanhá-la até o fim. Isso, claro, também passa pelas personagens, mas me reservo a comentá-las mais à frente, pois logo outras garotas desaparecem na história e não muito depois seus corpos aparecem boiando no rio. Outra dica para as respostas que o longa deve dar.
Repito, acho que tudo seria resolvido mais cedo e mais fácil se a Aya tivesse sido “motivada” a sair de seu quarto. Mas não teria graça se fosse mais fácil, é verdade, então tudo bem, dou esse desconto, mas preciso confessar que teve momentos em que cheguei a pensar que ela havia morrido e no quarto só restava o corpo, que ela realmente era o fantasma, o que começa a ser explicado um pouco depois.
O plot twist de que a Aya nunca foi o fantasma, mas sim o suposto doppelgänger dela é muito bom e serve a outro propósito, inserir a garota de vez na trama, agora como uma personagem ativa.
Quando isso ocorre a coisa melhora, porque o longa se torna mais objetivo e brilha a atuação de Ayami, Aya, e Aoi, Michi, Principalmente da Aoi, que mostra não ser apenas uma garota apaixonada e amaldiçoada, mas afetada pelas mortes das colegas, alguém que quer resolver o mistério e devolver a paz ao colégio.
A cena aparentemente inútil da professora com seu irmão de pouco antes da volta da Aya e a cena depois que a Aya se revela foram indícios mais que suficientes de que ela e o irmão estavam envolvidos no mistério.
Em um longa assim dois personagens bem secundários não ganham destaque do nada se não for para serem aproveitados posteriormente. Até porque a participação das professoras, as irmãs, tinha sido mínima até aquele momento. Os responsáveis tinham mistérios e sua parcela de indiferença.
Eu sabia que a Mary-san seria útil. Você não apresenta uma ex-aluna, uma senpai, em uma trama colegial se não for para ela orientar suas kouhais, né.
O que ela revela sobre os muitos casais de garotas que acabaram se suicidando porque não poderiam ficar juntas me leva a um questionamento. O amor, considerado impossível entre duas mulheres, deve ser mesmo sempre fadado a tragédia? O quanto o preconceito é nocivo para a vida das pessoas, principalmente as mais jovens?
Acho que você já tem as suas respostas e não acho que a maldição seja o amor entre garotas, a maldição nasce dos sentimentos negativos gerados pela negação a liberdade de se expressar sentimentalmente dessas garotas. Ser lésbica não é o problema, o problema é a sociedade que não as permitiria ser assim fora daquele lugar.
Enfim, é revelado que o garoto, filho da Mary-san, é um fotógrafo tão bom que tira até foto de fantasma e esse certamente foi mais um indício do que estava por vir, porque se formos parar para reparar, em nenhum momento o fantasma assombra as pessoas. O máximo que ele faz é pedir ajuda as garotas que beijaram a sua foto.
Algumas morreram, é verdade, mas se a intenção do fantasma fosse mesmo maligna ele não faria a expressão deslocada, até um pouco assustada, que faz o filme todo. O que eu quero dizer é que em nenhum momento eu vi malicia no olhar da garota amaldiçoada.
Continuando… Acho que a Aya e a Michi formam um casal tão fofinho. Sem forçar nada. Só não gosto da Michi ter um visual mais tomboy, masculinizado. Não acho que era preciso, parece se apoiar na boba construção de que em uma relação homoafetiva entre mulheres uma tem que ser mais máscula e a outra mais feminina, mas vou deixar isso de lado porque no filme mesmo sequer tocam no assunto.
É revelado também que a Aya foi adotada pela escola, o que remete a um questionamento meu anterior, se é assim, onde estava a figura materna dela esse tempo todo? Ou não tinha ninguém diretamente responsável pela garota?
Por que as ações dos adultos pareceram nulas ou indiferentes por grande parte da história? Isso até é respondido mais à frente, mas, ainda assim, senti falta de mais participação dos adultos. Só não é pior que Zambi, que é legal, mas as meninas são deixadas à míngua.
O que a Michi fala sobre nunca ter gostado de um garoto me impactou positivamente, gostei de ver, e até me surpreendi por a Aya não gostar de garotas. Não porque achava que ela era lésbica, mas porque esperava uma caracterização previsível da personagem. Ter uma diretora mulher acho que ajudou nesse sentido, pois tirando a questão visual, todo o resto não foi trabalhado de maneira boba.
Depois dessa cena emblemática no quarto tem a “boa” e velha cena de histerismo adolescente, rotineira nesse tipo de filme. Adolescente em situação estressante, sentindo medo e sofrendo com o descaso dos adultos, está fadado a fazer besteira mesmo. Com isso eu concordo, mas chegar ao ponto de matar não parece meio exagerado?
Elas não têm medo de serem presas? Nesse caso, será que seriam se tivesse matado mesmo a Aya? Deveriam, mas o filme retrataria isso de maneira realista? Eu não sei e nunca saberemos, pois, a pegada não é essa, suspense policial, e a Michi dá uma de heroína!
O beijo da Michi na Aya é um momento muito bonito e que acredito também ser libertador, tanto para a Michi, que estava se expressando de maneira natural, como também para qualquer garota que viu o filme e se sentiu representada ali, com aquela cena da garota que não tem vergonha em dar um beijo em outra.
Sei que o Japão melhorou muito nesse sentido de abraçar esses relacionamentos homoafetivos na ficção, mas, assim como o Brasil, a estrada é longa e acredito que um filme que se proponha a defender bandeiras da comunidade LGBT, ainda que não faça isso de maneira escancarada, merece ser celebrado. Ainda mais um que é dirigido por uma mulher, e é feito para mulher ver e gostar.
Gostei de como o filme vai abordando essa questão do amor entre garotas gradativamente e de uma maneira realista, sem varrer para debaixo do tapete o preconceito, mas sem ser hipócrita ao não mostrar que a culpa é totalmente do entorno das garotas, já que se forma ao redor delas um ambiente muito sufocante, até limitante, que não as permite verem outra saída além do suicídio, além da morte.
A Kasumi voltou do nada e apesar da conveniência — Será que posso justificar isso porque ela é quem parecia ter o sentimento mais forte pela Aya ali? — foi algo bom para fazer a história andar, já que isso levou a promessa feita pela Michi e pela Aya, que se fracassasse terminaria o filme como uma tragédia e se desse certo faria o filme terminar feliz, com o ciclo de sentimentos negativos finalmente quebrado.
A cena da Michi e da Aya deitadas foi uma baita analogia ao fio vermelho do destino, akai ito. Adoro as analogias, geralmente nada sutis, que os japoneses fazem a ele em tudo que é tipo de história. Como é uma coisa cultural eu entendo o uso do simbolismo e aproveito para afirmar que ele reforça a minha impressão do final feliz que eu queria, afinal, o fio pode ter se quebrado, mas o objetivo foi alcançado.
Só gostaria de fazer um adendo antes de partir para a reta final da análise. A música tema do filme, que se esparrama pela cena do transe da Michi, é muito boa. Imagino que seja um clássico no Japão, pois tenho a impressão de já ter ouvido. Aliás, a produção do filme é ótima para os padrões japoneses.
Com a aparição do irmão da professora e o que ele fez tudo começou a se encaixar. Aliás, já estava na cara que eles tinham relação com as mortes. Só achei engraçado como ninguém evitava a poça d’água.
Agora, falando sério, a Aya bloqueou a memória da própria irmã por medo. Não posso me colocar no lugar dela, não posso entender como ela se sentiu, então também não posso dizer que isso foi um exagero do roteiro para chocar, né.
Ela não tinha nenhuma família além da irmã e a irmã ainda se ofereceu para morrer no lugar dela. Traumático é pouco para o que a gente pode achar dessa situação. Enfim, achei essa explicação do fantasma ser a irmã melhor do que a do doppelgänger, pois ela esticaria demais as coisas e eu acho que já bastava os suicídios ao longo dos anos e a maldição da foto.
Gostei de como o filme expõe o estigma social do amor entre mulheres de forma natural. Não precisando parar para criticar e nem banalizar, só mostrando o que aconteceu e o motivo.
Não é um filme sobre uma bolha, afinal, o exterior impacta diretamente no que ocorre no interior, mas também não é um longa sobre a forma como a sociedade reage a relacionamentos homoafetivos, então eu acho que o meio termo foi bom. O importante era mostrar a visão das garotas sobre a situação delas.
Acho a mensagem de que a Maya não era má, mas os irmãos sim, ou no caso a irmã, bonita. O comum é que o espirito seja maligno, né, mas não era o caso. A Maya, a menina que se sacrificou pela irmã gêmea, apenas estava sofrendo, se sentindo sozinha.
Inclusive, gostei muito da situação ser relacionada a família e não ao amor romântico, pois era o mais coerente por se tratar de uma dupla de crianças, além de dar espaço para que as pontas soltas, distribuídas ao longo do filme, se ligassem.
Não lamento a morte da assassina, lamento a morte do irmão cuja única besteira que fez foi ter jogado a Aya no reservatório, mas não por maldade e sim por compaixão a Maya, então dou um descontinho.
Vou considerar que existia uma força sobrenatural mantendo quem entrasse na água lá e só permitindo que saísse quando alguém viesse buscar, porque custo a acreditar que a pessoa que conseguisse pelo menos boiar não conseguiria fazer um esforço para sair. A distância nem era grande.
Outro detalhe que adorei do final foi os assassinatos não serem algo sobrenatural, mas sim fruto de ações humanas, que muitas vezes são mais horríveis que qualquer maldição lançada por um fantasma.
A verdade por trás da morte da Maya foi bem chocante, um plot twist que eu não estava esperando, mas que fez todo o sentido. Se não tivessem explicado isso o filme ficaria tendo essa baita ponta solta.
Só não entendo porque a Aya não sentia ódio, ao menos não demonstrou, da Madre. Será que ela também esqueceu que foi a Madre quem matou sua irmã ou só engoliu para não perder o teto que tinha? Se ela procurasse as autoridades e relatasse o caso será que a Madre não seria presa e ela iria para um orfanato normal?
Será que inconscientemente ela queria ficar perto da irmã? Acho que essa é a única inconsistência do filme, não terem tocado nesse detalhe, de resto não acho que tenho do que reclamar. Aliás, de certa forma, isso justifica o descaso com a situação da Aya por parte da Madre.
Também gostei da reflexão sobre o que é real e o que é ilusão. Algo que foi simbolizado pela cena em que a Michi vai tirar a foto da Aya e ela vê as cinco garotas mortas. A foto é feliz, felizmente assombrada, por assim dizer. Com o desfecho da situação quem morreu finalmente descansou em paz.
Acho que há duas interpretações possíveis para o final do filme e as duas passam pela Aya ter ou não se apaixonado pela Michi. Como é a Michi quem avança para dar o beijo e a Aya não recusa e nem se surpreende, não parece nenhum pouco incomodada, acredito que ela também queria, que estava afim.
O problema é que a Michi decidiu dar o beijo apenas quando tivesse voltado de Tokyo, já com sua vida estabelecida e condições de viver seu amor com a Aya sem ter que dar satisfações a ninguém.
Contudo, há uma segunda interpretação, a de que quando ela fala em se tornar uma adulta normal, e abandonar a fase de garota, ela está se referindo a deixar os sentimentos que tem de lado e seguir com a vida, o que serviria para as duas.
Prefiro acreditar nesse final poético, sem beijo por um bom motivo, que compactua com a construção das personagens, é só lembrarmos de como a Aya parece impactada pelas ações da Michi quando ela a defende, do que nesse final covarde que se prende as convenções de uma sociedade machista com a desculpa disso ser sinal de maturidade, de ser “adulta”.
Por fim, foi um filme bom, com boa produção, boas atuações, principalmente das protagonistas, Aya e Michi, e um mistério que não achei tão interessante, mas conseguiu surpreender um pouco até o final. Considero isso o suficiente para achar o mistério bom e também gostei da forma como tudo foi resolvido.
Só o karma da Madre, de ser atormentada, não me pareceu punição suficiente para ela, mas acho que ela ter saído sem maiores prejuízos também foi realista. Há tanta gente que faz mal aos outros por aí e não sofre represália social alguma, e, no fim das contas, não faria uma diferença prática, não apaziguaria o coração de ninguém.
Então, consigo suportar também o desfecho dela e achar que foi um bom filme, claro, seguindo a interpretação de que o amor floresceu entre as protagonistas e que elas vão lidar com ele de maneira adulta, sem esconder ou renegar o que sentem.
Até a próxima!