Melhor filme, melhor diretor, melhor roteiro original, melhor filme estrangeiro. Parasita (Gisaengchung no original), filme sul-coreano de 2019 dirigido por Bong Joon-ho, foi o grande vencedor do Oscar 2020, sendo o primeiro filme estrangeiro e não falado na língua inglesa a ganhar o prêmio principal. Preciso escrever mais para convencê-lo a assistir esse filme? Se sim, e ainda que não, peço que confira minhas impressões da obra.

Parasita aborda um tema bastante comum na ficção, a luta de classes, o bom e velho pobre contra rico. Entretanto, o longa coreano se destaca por fugir da mesmice (o rico é mau e o pobre é bom) e trabalhar o tema de modo autêntico. Com mais sensibilidade que expositividade, mais sutileza que pressa, tudo isso com dinamismo, proporcionando divertimento e envolvimento para o público ao mesmo tempo em que o incita a reflexão.

Segue a sinopse, extraída do AdoroCinema.

 

“Toda a família de Ki-taek está desempregada, vivendo num porão sujo e apertado. Uma obra do acaso faz com que o filho adolescente da família comece a dar aulas de inglês à garota de uma família rica. Fascinados com a vida luxuosa destas pessoas, pai, mãe, filho e filha bolam um plano para se infiltrarem também na família burguesa, um a um. No entanto, os segredos e mentiras necessários à ascensão social custarão caro a todos.”

 

Se você e sua família estivessem em maus lençóis, você agarraria uma oportunidade de emprego mesmo que tivesse que “trapacear” para isso? Se já passou ou passa por alguma grande dificuldade financeira em sua vida creio que a resposta esteja condiciona a isso, exceto se você não se importa em passar frio, fome, ou até mesmo correr o risco de perder o pouco que tem por conta das dívidas.

 

 

Se a pessoa tomar o caminho considerado “mais fácil” realmente dá para julgá-la? O quão inocente é achar que se consegue tudo por meio da meritocracia e que há oportunidade para todos? Nem afirmo que o rico tira da boca do pobre, pois a discussão é complexa demais para resumi-la a uma frase feita, mas ponha a mão na consciência, será que todos conseguiriam viver decentemente apenas fazendo o que é moralmente “correto”?

E quando me refiro a decência se trata do básico mesmo; alimentação, roupas, tratamento médico, um pouco de lazer, etc; coisas as quais todos têm direito (ao menos na teoria).

Sendo assim, consigo reconhecer a ação de parasitismo da família Kim como um ato moralmente incorreto, mas ao mesmo tempo absurdamente humano. Eles viram uma oportunidade de ganhar dinheiro e trabalharam para isso usando as armas que tinham. A culpa não é deles se os riscos que parasitaram não foram o mínimo desconfiados e se deixaram enganar.

Alias, um dos pontos positivos do filme é justamente o dinamismo com o qual as investidas da família Kim se desenrolam. Primeiro, o filho mais velho arruma emprego de professor de inglês na casa dos Park e usa tanto da boa referência que recebeu do amigo, quanto da própria esperteza (o instinto de sobrevivência do pobre é condicionado a dificuldade que passa na vida) para encantar a filha dos patrões e impressionar a patroa.

Depois, vendo a oportunidade de arrumar emprego para a irmã lidar com o filho caçula o raciocínio rápido e a lábia de Ki-woo abrem as portas para que “Jessica”, ainda mais safa que o irmão, diga o que a patroa quer ouvir e na base da indicação, aqui mais importante que qualquer diploma, conquiste seu espaço dentro da casa e avence com o processo de parasitismo.

Inclusive, a cena da Jessica confirmando a história com o irmão conquistou muita gente com sua fofura. Não é à toa que Parasita foi o filme de 2019, muitos de seus momentos são verdadeiras sacadas artísticas devido ao trabalho sensacional da direção, mas também a atuações consistentes e em sua maioria equivalentes. O filme reforça a ideia de que a soma de bons e ótimos trabalhos individuais é o caminho para o equilíbrio narrativo.

 

 

Enfim, o resto das substituições dos funcionários segue a mesma premissa, indicação de quem chegou depois e uma situação armada a fim de desqualificar quem já estava na casa. Não é assim que um parasita age, toma a força o seu lugar no hospedeiro? É assim que a família Kim suga o máximo que pode da família Park e vai saindo da vida de dificuldades que a afligia.

Quanto a isso, um ponto digno de nota. Não é como se o rico fosse inocente para acreditar em qualquer um que diga e mostre ser capaz de servi-lo sem uma comprovação de qualificação, é que o rico considera o pobre tão insignificante, tão inofensivo, que não passa por sua cabeça a possibilidade de ser enganado, confiando a entrada em sua casa a quem tiver boa aparência e bons modos, a quem agradá-lo e tiver indicação.

Isso é viver em uma redoma, cercado da certeza de que nada pode atingi-lo, de que o mundo é apenas o que está ao alcance de seus olhos, que ninguém precisa (e, de certa forma, os Kim precisavam) passar a perna no próximo para ter uma vida melhor.

É claro que nem todo mundo faria o que os Kim fizeram, mas, repito, é da natureza humana buscar o melhor para si, então talvez se mais pressionado a isso mesmo quem faz de tudo para viver uma vida honesta, por mais pobre que seja, também cairia em tentação, também olharia para a grama verdinha do rico e pensaria que não seria tão injusto assim poder deitar um pouco nela e curtir o sol.

É aí que Parasita mostra a que veio, pois além da abordagem mais básica (o rico é o vilão, o pobre o herói injustiçado em busca de reparação) não se dar de maneira óbvia, ainda que essencialmente seja isso, o longa se constrói justamente em cima da aproximação e do distanciamento desse conceito.

 

 

O pobre também pode ser encarado como vilão nessa situação, enquanto o rico é o vítima. E eles podem ser isso ao mesmo tempo em que são a outra coisa. A indulgência do rico tanto é sua fraqueza quanto a afirmação de sua brutalidade, enquanto a esperteza do pobre é a sua força e também sua condenação.

Nenhum dos dois lados está completamente certo ou completamente errado e o filme retrata isso com várias sutilezas, cenas pontuais nas quais é exposto ao público que os ricos bonzinhos não são exatamente aquilo que parecem e os pobres aproveitadores são parasitas do sistema, mas também são vítimas dele. Aliás, é esse sentimento de compensação que os Kim trazem a família Park. A reparação por toda a sua soberba.

É ao comentar o cheiro do motorista com nojo, como se o quanto ele é simpático e eficiente só compensasse seu “espírito de pobre” por pouco, e comemorar a chuva, ignorando que na verdade se tratou de um temporal que trouxe desgraça aos menos abastados, que podemos perceber como os Park são fúteis. Aliás, isso já me parecia certo pela forma como gastavam, só que antes desses momentos não tinha dimensão de que era tanto.

Inclusive, há uma cena muito boa em que o filho caçula sente o cheiro do motorista e da governante e os compara, apontando como iguais. A não desconfiança, a qual seria até natural, dos patrões passou a ideia de que para eles era como se todos os pobres tivessem o mesmo cheiro, fossem todos iguais, servindo apenas para atender as suas demandas; e isso se intensifica ainda mais após o temporal e o aniversário de última hora.

 

 

Não vou me aprofundar no clímax, pois acho que ele é tão bom que ninguém que não tenha visto o filme deveria pegar spoilers, mas comentar algumas cenas e desenvolvimentos que levaram a ele já é o bastante para entender porque Parasita fez tanto sucesso com o público e a crítica e assim marcou para sempre a história do cinema mundial.

Parasita conta com uma direção impecável, pois, ao mesmo tempo em que nenhuma atuação individual rouba a cena, o coletivo, a soma dessas atuações, se sobressai. Um dos momentos mais emblemáticos nesse sentido se dá na noite derradeira em que o destino da família Kim é praticamente selado; e não só pelas reviravoltas que acontecem, como também pela criatividade em se aproveitar do tema e do que havia sido feito até ali.

Se os ricos que compraram a casa e nela vivam eram tão seguros de si ao ponto de apenas seguir indicações e impressões pessoais dos outros, não é estranho que não soubessem dos segredos que se escondiam dentro da própria casa e melhor, que não ligassem para os sinais que eram dados. Fosse em uma luz que piscava de forma aparentemente aleatória ou um fantasma que na verdade não era fruto da mente de uma criança.

Ao longo do filme a direção e o roteiro espalharam vários desses detalhes que mostram muito bem a indiferença desses personagens, assim como o descontentamento por parte de seus parasitas. É verdade que tudo só se intensifica na reta final, mas, antes mesmo disso, se você ver o filme com atenção não é difícil perceber as sutilezas que levaram a conclusão arrebatadora.

 

 

E isso não só em se tratando das duas famílias, mas também do caso de parasitismo que já ocorria naquela casa, muitos antes da chegada dos Kim. Parece absurdo o que acontece, ainda mais da forma que acontece, mas não é realmente tão absurdo assim se levarmos a construção dos personagens e da trama até as últimas consequências, ainda mais depois da noite que é o divisor de águas da película.

É cruelmente “engraçado” como basta um sopro, um acontecimento fora da programação, para que toda a pseudo-estabilidade dos pobres da trama seja virada de pernas para o ar, mas isso sem abandonar a ideia de que seus próprios atos foram os perpetuadores de sua ruína. O que também vale para os ricos. Nada em Parasita acontece de graça.

A cena chave para que o fim do filme fosse tão impactante e que deu a exata dimensão do que a direção era capaz, um recorte da noite anterior ao fim, foi a do pai e os filhos debaixo da mesa da sala, enquanto os ricos vigiavam o filho caçula acampando ao ar livre. Antes do ato sexual do casal houve o comentário sobre o pai e motorista, já pouco antes e enquanto acordavam, a fuga. Uma fuga de prender a respiração do telespectador.

Se você pensar bem, foi uma forma capciosa de trazer a temática para dentro de cena, pois bastava que os ricos olhassem para o lado e muito provavelmente toda a farsa seria descoberta, ou se não isso, ao menos o final certamente seria evitado.

 

 

E muitas vezes ao longo da narrativa eles tiveram a oportunidade de “olhar para o lado”, agora no sentido figurado, mas não o fizeram, continuaram ignorando as ameaças que se reuniam em torno deles. Assim como os Kim continuaram a “viver o sonho” sem se importar com as consequências.

E não é nem que essas consequências eram inevitáveis, pois a “brecha” que os parasitas aproveitaram foi a mesma brecha aproveitada por aqueles que vinham parasitando de muito antes. Foi o próprio ato de parasitar que fez tudo dar com os burros n’água e o mesmo vale para o próprio ato de “ser rico”.

Talvez um pouco mais (na verdade, bem mais) de honestidade e empatia não teriam feito tudo acabar de forma diferente? No caso da ficção de Parasita nós nunca saberemos, mas acho que a mensagem fica para a vida. Não há julgamento de valor sobre o bem ou o mal implicado por uma ação, mas a transmissão da mensagem de que o que você faz tem uma consequência, mesmo se você tiver grana.

A riqueza não impediu que a família Park fosse abalada, assim como a esperteza não salvou os Kim, e muito menos o casal “inimigo”. Todos foram agentes de suas próprias ruínas, assim como da ruína do próximo, com o rico menosprezando o pobre, como se este fosse um parasita incapaz de sequer pensar em fazer mal algum, com o pobre odiando o rico, transtornado com a falta de carinho e respeito com a qual era tratado.

 

 

Por mais que tentassem se vestir de forma diferente, falar de forma diferente, trocar o sabonete e perfume para mudar de cheiro; caminhar entre os ricos não era assim tão simples e se não impossível, denotaria muito mais tempo e costume do que apenas o parasitismo oportuno poderia prover. No fim, não só o Ki-woo, como também toda a sua família, estavam deslocados, não pertenciam aquele ambiente.

Você pode interpretar isso apenas como um reforço de que as desigualdades sociais não podem ser superadas, mas eu acredito que não é nem o caso de elas não poderem ser superadas, mas de que são necessárias qualidades morais de ambos os lados para que um meio-termo, que é necessário, seja alcançado. Mentir para ganhar migalhas e tratar pessoas como objetos vai na contra-mão disso, e é por isso que tudo acaba mal.

Aliás, não poderia ser de outra forma, pois Parasita não é um filme de final feliz, é o final amargo que agrega a mensagem e a catapulta. Claro, tudo isso não seria possível sem uma direção afiadíssima, atores capazes de transitar entre o cômico e o dramático com leveza e uma proposta que acredita em seu potencial, o explorando até as últimas consequências. Uma luta de classes nunca foi e nunca será apenas “preto no branco”.

 

 

Por fim, acredito que o “sonho” do Ki-woo se tratava apenas de sua perspectiva de futuro e assim o filme fecha de forma satisfatória, com consequências claras e irreversíveis para a família pobre, com a família rica saindo do primeiro plano, protegida por seu dinheiro e status. Socialmente é o rico que saí como vítima, já o vilão é o pobre e, honestamente, quantas vezes não é assim na vida?

Mesmo que não seja assim tão simples, e nunca é, ocorre com uma frequência alarmante, e esta sim reforça a desigualdade e a estimula. Parasita propõe você a refletir sobre isso, pois na vida real não existem pessoas que são apenas más ou apenas boas, não existem heróis e nem existem vilões; e por maior que seja sua riqueza financeira, somos todos igualmente humanos, igualmente falhos, igualmente carentes de respeito e amor.

Se ainda não assistiu, dê uma chance a Parasita. Não se ganha quatro estatuetas à toa, né. Ainda que você, assim como eu, tenha suas reservas sobre a credibilidade da premiação, não se pode ignorar a qualidade dos trabalhos nela indicados. Espero. inclusive, que o filme seja um divisor de águas para o Oscar no que se refere ao valor dado as obras estrangeiras.

Que mais filmes orientais, não só coreanos, atraiam a atenção do público ocidental e ainda mais pessoas descubram que arte da mais alta qualidade também se faz do outro lado do mundo.

 

 

E a pedra que atraia riquezas no fim das contas não era mais que um placebo, acabou se tornando sinal da derroca, mas não teve valor algum além do simbólico. A superstição não é mais que um afago, a realidade é o resultado de coisas muito mais duras, palpáveis e, por tabela, difíceis de lidar.

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