Antes de partir para a resenha em si, já agora levanto um questionamento. Não sei se esse filme é um filme, no sentido cinematográfico, ou uma animação propriamente dita. A pergunta é válida, uma vez que o filme em questão se utiliza da técnica da rotoscopia. Pessoalmente não sei, mas desenvolvo no corpo do texto a apresentação dessa história.

 

 

Efetivado em uma linguagem nitidamente cinematográfica, Hana to Alice Satsujin Jiken, assim o é de modo inevitável, afinal, na prática ele é um filme revestido por outro filme? Bem, não, mas ao mesmo tempo, sim. Como poderia ser a mesma coisa? A imagem, sua natureza visual, ganha um universo completamente adverso da costumeira realidade filmada, ele literalmente veste uma roupagem, uma identidade expressiva, atmosférica, contemplativa e narrativa completamente outra.

A técnica da rotoscopia aplica uma dualidade de leitura, principalmente quando podemos perceber que a linguagem empregada em filmes de captura de imagem, oferecem uma cadência e uma expressividade impossível de se replicar na linguagem da nossa já conhecida estrutura particular da animação, e o contrário também é verdadeiro, como bem sabemos, e muito sofremos, frente a grande gama de adaptações controversas inspiradas no universo singular da animação.

 

 

É um enigma, é um filho bendito que difere de ambos os seus pais.

Quanto ao filme em questão, é nítido como o dia que sua alma está cindida entre um roteiro e uma direção, ou mesmo uma respeitável atuação, que são tingidos pelas peculiaridades tonais que sequestram a identidade da obra para um surrealismo juvenil. Mas confesso que o resultado me agrada.

 

 

Muitos podem se sentir incomodados, ou mesmo aturdidos pelas contradições que esse pacto visual fomenta, e sem dúvida o estranhamento se mescla na carne mesma da obra, entretanto, é de uma riqueza ímpar as consequências oníricas que essa confluência resulta. Prestem bem atenção no quanto as rupturas de fluxo, o desconforto e o desagrado, agregam nos sentidos de quem presencia a história.

 

 

Não apenas uma vez, mas diversas, o filme nos carrega pelo olhar aos detalhes, as distorções que não buscam em momento algum a beleza, mas sim o transpor, ou mesmo o bambolear, dos idiomas narrativos ali presentes. Por vezes a atuação tem destaque, nos gestos dos atores que materializam as suas personagens, seus sentimentos, vozes, inseguranças e ansiedade, por outro lado o contorno se borra, as margens das formas evaporam, e percebemos uma espécie de lente submersa em um mar de cores que compõem em sincronia a ambientação e a vida no constante fluxo da história.

Hana, uma menina com um trauma profundo e ingênuo, em seu ápice de imaturidade e confusão, esconde com todas as forças o seu coração frágil dos conflitos do amor, ao mesmo tempo em que este pulsa e suspira, forçando-a a buscar refúgio entre as paredes de sua casa.

Hana conhece Alice, uma garota impetuosa e destemida, que abraça com as duas mãos, embora de modo estabanado, a curiosidade e o carinho por tudo aquilo que lhe cativa. Ela se muda para a casa à frente da de Hana, e descobre uma nova vida em uma nova escola, acompanhada de sua mãe, uma senhora um tanto afetivamente inconveniente, que trabalha sem olhar para trás, e garante a estabilidade e a felicidade para as duas.

 

 

Dentre novas e velhas amizades, Alice se vê inserida no passado sombrio de sua sala de aula. Aos poucos o filme nos fisga pela sua excentricidade e bizarrice, por tolices absurdas elaboradas por jovens inseridos em um mundo fantástico a muito abandonado pelos adultos.

O resultado imediato dos elementos ali dispostos, levam Alice a se intrometer, literalmente, na casa e na vida de Hana, o que, curiosamente, tem resultados os mais aleatórios possíveis.

Ambas partem em uma aventura de descoberta e redenção. Alice, orientada por Hana, tenta emboscar o pai de um afeto antigo da garota, mas acaba perseguindo, comicamente, um senhor simpático até o último fio de cabelo. A interação de ambos é adorável.

 

 

Seguidos equívocos levam as duas a passarem por situações ridículas, como terem de passar a noite ao relento, correrem de um lado para o outro atrás de sombras do passado e do presente. Seja ao perseguirem um caminham, seja ao fugirem do medo e do frio, esquentarem-se sobre o calor de veículos e sobre as tolices inconclusivas do passado.

Uma jornada que sedimenta um laço de beleza e amizade inestimável, de superação e de esperança, um filme que nos presenteia com inúmeras cores dentre palavras e mal entendidos de humanidade zombeteira. Seja na dificuldade, seja nos bons ventos, a companhia de alguém que lhe dá a fidelidade da presença, e para quem podemos oferecer a irmandade da confiança, é o ápice de uma mensagem não escrita e não dita que preenche o clímax das inconsequentes e insanas aventuras das protagonistas.

 

 

Alice e Hana são duas jovens dentre os jovens que sentem e que sufocam, mas que respiram, e um filme que mescla e condensa habilmente a expressividade das cores e dos gestos, da carne e dos tecidos que revestem, não é jamais descartável e não deve ser subestimado, mas sim contemplado com o adequado respeito.

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