Yoru wa Mijikashi Arukeyo Otome – O vermelho e o licor que contaminam a noite, a boemia de um coração livre
O nome da vez é Yuasa, não por que eu queira destacar e conectar o filme com o seu diretor, é que os personagens do filme não têm nome mesmo. Enfim, bora lá.
A obra em questão, intitulada Yoru wa Mijikashi Arukeyo Otome, é o que podemos chamar de psicodelia romântica, um filme com os dois pés em uma narrativa surreal elevada pelo sentimento agridoce do desejo e da paixão. O protagonista masculino, conhecido como Senpai, é um stalker de bom coração, um rapaz estrategista e metódico que utiliza de sua queda por uma bela jovem para apreciar a vida que esse sentimento lhe desperta. Senpai sempre está, constantemente e heroicamente, se arremessando no campo visual de sua donzela de cabelos pretos, à qual, aliás, tem por nome esse mesmo, a moça dos cabelos pretos.
Não ser invisível, existir, despertar no outro através da cortesia e da gentileza, a curiosidade, ou mesmo um sentimento de afeto e reciprocidade, um paciente e elaborado plano de conquista construído ao refletir a completa covardia e baixa auto estima de um homem comum. O mais magnífico desse plano de grande risco, é que ele surte efeito, um efeito discreto que laça o coração da jovem e reforça as chances de sucesso para o esforçado Senpai.
O filme pode não sugerir isso claramente, na verdade, ele tem por intenção muito mais trabalhar o ponto de vista da Garota de cabelos Pretos, em sua indômita e elegante boemia através de uma noite mágica de liberdade, do que desenvolver o real aperto ansioso pelo qual o Senpai atravessa.
O ponto fraco de seu plano gradual, é exatamente o peso que isso gera, pois, aos poucos e sempre, vai se acumulando um desejo e uma carência incontrolável, uma agonia que não se concretiza e que de amor se torna paranóia, medo, auto piedade e flagelação. A incógnita de concretização somada ao desdobramento de esforços é um dos piores infernos que um stalker apaixonado pode enfrentar.
O peso do culto e da idealização paralisam e engrandecem ainda mais o pavor da rejeição, e é perceptível que Senpai está chegando em seu limite, tanto é que o desmoronar de integridade e racionalidade estão por um fio, ele quer se declarar.
Alheia a tudo isso, a Garota de cabelos Pretos segue a sua vida. Somos apresentados para diversos coadjuvantes e histórias paralelas intrincadas pela aleatoriedade e devaneio de uma noite embriagada, conhecemos um velho niilista agiota e melancólico, um casal excêntrico de boêmios especialistas em filar gratuitamente o líquido sagrado do entorpecimento, um idol bonitão que comanda um conselho estudantil com braço de ferro e às vezes se traveste por entretenimento e lascividade, uma noiva apaixonada e um assalariado retórico refém de um amor não correspondido que busca justificar o seu fracasso argumentando contra a felicidade do casal, composto por um noivo em coma alcoólico cujo sogro pervertido está acuado por uma catástrofe que se abateu sobre o seu ganha pão e lhe empurrou para o submundo, mas por sorte sua vida foi salva pela fulminante Garota de cabelos Pretos que em sua imunidade completa destrói em copo e em esperanças a decadência do idoso cujo tempo urge.
Isso sem contar a história secundária de amor gravitacional um tanto quanto asquerosa entre um homem que não troca sua cueca enquanto não realizar o seu destinado encontro com o seu amor platônico que floresceu em um pomar do aleatório deslumbre homoafetivo.
Sim, o filme é surreal, mas pé no chão, é dividido em três arcos bem estabelecidos, iniciando pela madrugado dos goles e gargalos entre danças e abraços, seguido pelo arco da competição e da nostalgia trilhada pela infância distante junto a locomotiva dos sonhos, um livro e seus desígnios utilitários dentre as mãos de seus antigos e novos donos, enquanto um luta por seu destino em planos de empenho, outra vaga pelo turismo no festival que se direciona para uma declaração teatral e confessa.
O Capitão Cueca, parte central na narrativa, literalmente cria o enredo de seu encontro com o futuro, desvendando em roteiro a peça encenada de maneira itinerante e ilegal dentre as luzes amareladas da rebeldia e revolta. Caçados pelas autoridades, o clímax é a revelação da verdade e da juvenil atração do destino, quando se apresenta uma revoada de peixes que nadam pelo rio de um novo relacionamento. A diretora do teatro itinerante efetiva o seu mais secreto sentimento e degusta uma resposta equivalente.
Finalizando no arco da redenção, a Garota de cabelos Pretos adentra como protetora e cuidadora, novamente, imune, a remediar os efeitos de uma terrível pandemia de gripe que assolou a todos os personagens nessa noitada sem fim.
Enfrentando os ventos tempestuosos de inverno, ela avança de casa em casa, preparando uma canja em sua receita materna de amparo aos necessitados, acudindo os enfraquecidos e acalentando o espírito de seus comparsas de crepúsculo. Lentamente ela conquista a saúde de cada um de seus amigos, recebendo suporte e mimos, continua sua jornada até o desfecho de sua própria glória. Senpai, derrotado e frustrado, mesmo que vitorioso em sua determinação e conquista do livro prometido, se esconde em um oceano de vontades reprimidas e mágoas personificadas em facetas ocultas de seu ser.
A Garota de cabelos Pretos desata o nó e adentra o futuro ao olhá-lo nos olhos e aceitar o que igualmente desejava, o seu Senpai, que em um golpe cirúrgico e afobado consegue não apenas o sorriso, mas o coração e a reciprocidade do sentimento que a tanto tempo nutre e o qual propagava pelo acaso, apenas pelo acaso. Ambos adentram pela estrada de um encontro predestinado regado a bebidas quentes e olhares constrangidos.
Yuasa, nosso diretor, acerta em cheio em desenvolver um bom filme, que apesar de adequado em todos os aspectos, lindo e fluido, amarrado e funcional, que nos conta uma boa história de uma noite fulgurante de inverno, peca por uma pequena falta de intensidade em sua primeira metade, que pouco engaja, mas que se consolida pela bagunça aleatória que se amarra em seu desfecho agradável e pontual.
É um bom filme, mas não é realmente um filme marcante, infelizmente. No entanto, não se pode subestimar a competência e habilidade com que sua proposta se estabelece, sobretudo os arcos dos protagonistas que, apesar dos véus emaranhados do cenário, são muito bem estabelecidos e consolidados em grande êxito.
E é isso, até a próxima, pessoas.