To Your Eternity – ep 2 – O monstro e o sacrifício
A March é uma graça, não é? Se você não gosta dela saiba que está errado, assim como qualquer tradição que maltrate a vida humana. Dentro da nossa cultura não vemos isso de forma tão evidente, mas, por exemplo, a repressão a mulher no islamismo não é uma forma de tradição abusiva? Aliás, para lá de abusiva, não consigo imaginar obrigar alguém a se vestir e agir de uma forma tão restrita como algo minimamente racional.
Entretanto, não se engane, isso também ocorre no cristianismo, a diferença é que há mais “saídas” sociais, ainda que para muitas seja difícil acessá-las, apesar de muitos costumes problemáticos ainda serem banalizados e até incentivados. Sei que não é o mesmo que sacrifício humano, mas determinar o destino de alguém é uma violência sem igual não importa a forma. Cercear a liberdade de escolha de outra pessoa é em si matá-la em algum nível.
A March será mesmo sacrificada para aplacar a ira do urso branco? Há indícios de que isso pode acontecer, mas também há indícios de que não (eu diria, inclusive, que a abertura meio que encerra a questão), o relevante é discutir os problemas com tradições que não respeitam a vida, o bem mais preciso que o ser humano tem e que deve preservar entre os seus, afinal, ninguém têm o direito de roubar o futuro de uma criança, nem se for um deus.
Como acho desconfortável chamar o protagonista de “aquilo” ou só “protagonista”, vou adotar o nome do humano que ele metamorfoseou. Fushi segue sendo uma existência fascinante enquanto dá os primeiros passos para conviver entre os humanos. A primeira ação foi realizar o objetivo daquele que cuidou dele, mas isso não seria suficiente, só que se ele age apenas por estímulos, então não dava para esperar que desse o segundo passo sozinho.
É por isso que introduzir a March e todo o problema que a cerca foi um excelente ideia, afinal, não tem como não se sentir estimulado perto de alguém que está para perder a vida. Nesses casos nosso instituto de sobrevivência, nosso instinto animal, fala mais alto e a racionalidade dá lugar aos mais variados sentimentos, tudo de que o Fushi precisa para compreender a criatura horrível e bela, em uma dicotomia constante, que é o ser humano.
Mas antes de focar nisso, só uma observação interessante. Pink Blood, a abertura, é cantada pela diva Hikaru Utada, uma das cantoras orientais de maior sucesso da história, enquanto Mediator, o encerramento, é de Masashi Hamauzu, compositor de trilhas de games, com destaque para a franquia Final Fantasy. Não conhecia o trabalho dele, mas o dela um pouco sim (adoro música japonesa, não tem como não conhecer a Utada) e aproveito para indicar minha música favorita dela para você conferir.
Enfim, sejamos honestos, um ritual que se diz de gratidão e oferece uma criança em sacrifício é apenas uma covardia sacana. Por que não oferecem um adulto com muito mais carne que uma criança? Apesar de que a questão nem é essa e sim como a superstição é algo irracional e ser irracional sempre prejudica alguém, nesse caso é uma violência cometida contra alguém que não pode se proteger, que é pressionada para aceitar calada.
Além disso, o que oferecer uma criança para encher a pança de um urso branco enorme tem a ver com cessar suas atividades? Eu acredito que nada, mas se os nativos daquela região fazem isso deve ter o mínimo de “razão” que a respalde. Seria o fim do período de caça do urso que coincide com a oferenda feita a ele? Acho que sim, e isso faz ainda mais sentido se lembrarmos que alguma hora esse urso vai hibernar, né? Como não pensam nisso?
Não sei, li esse arco quase todo no mangá, mas não lembro de muitos detalhes, meu ponto é, se eu acho que nenhuma tradição que signifique acabar com uma vida humana deve ser seguida, essa minha convicção se reforça com a falta de lógica que vejo nessa situação. E o pior, a criança é escolhida por outras pessoas e sem nenhum critério evidente (será que foi por a March parecer mais alegrinha, mais saudável?), o que só torna a situação ainda mais criminosa.
Mas isso não é um defeito do anime, diria até que é o contrário, afinal, como eu você já deve ter ouvido falar de grupos que canibalizavam ou mesmo ofereciam sacrifícios aos deuses, até na bíblia tem esse tipo de coisa, então não é nada inesperado o que a trama nos apresenta, e a pouca ou nenhuma razão que vejo no ato é típica de povos que se orientam mais pela superstição do que pelo conhecimento, como eu imagino que seja um povo pouco desenvolvimento tecnologicamente.
Deixando essa questão de lado, a outra personagem dessa vila que teve um pouco mais de destaque foi Parona, a amiga de March que, inclusive, tenta fugir com a menina. Ela já é velha o suficiente para ter visto isso acontecer outras vezes e sabia que se fosse pega teria que retornar, então não vejo como achar que ela fez pouco, pelo contrário, afinal, foi a única que tentou e continua tentando. Aliás, os pais da criança mesmo aceitam a situação por mais consternados que possam ter ficado.
A aceitação desse cenário horripilante também é compreensível, mas fica claro que não deixa de ser doloroso para eles, além disso, eles têm outra filha pequena, então entendo que fiquem de mãos atadas (não posso exigir uma mentalidade diferente para pessoas daquela época), mas a Parona em teoria poderia tentar alguma coisa e tentou uma farsa se valendo de suas habilidades no arco e flecha, mas também do fator surpresa, afinal, atacou o comboio e deu chance para a March escapar.
Entrando na cena em que a garotinha vê o falcão (é um falcão ou um gavião?) passando na frente dos seus olhos, voando livre, ela é de um simbolismo e uma e sutileza tremendos porque é algo que se relaciona ao que ela estava vivendo ali naquele instante, é o sabor da liberdade que estava sendo tirado de sua boca. Não que ela tenha a compreensão disso, mas como qualquer animal uma criança também tem instintos e naquele momento em que a flecha apareceu ela se agarrou a qualquer fio de esperança com tudo.
Ela deu vazão ao seu desejo pela sobrevivência, pois de outra forma, se raciocinasse, travaria. Mesmo a March sendo uma criança pequena ela dá toda a pinta de que entende razoavelmente bem seu entorno, algo simbolizado na forma como brinca e no pedido (na verdade, mais uma ordem disfarçada) do pai para que seja uma boa garota. Desde cedo March aprende a cuidar de bebês, quer virar logo uma adulta para ser uma mãe e é também por isso que é coagida a aceitar o que os mais velhos lhe dizem para fazer.
Não que um garoto não tivesse que obedecer, mas, apesar de não ficar claro, não deve ser por acaso que escolhem uma garota, né. O raciocínio deve ser de que é mais fácil coagi-las a não se rebelarem, além de ser mais fácil usar a força. É nessas horas que a criação da mulher em uma sociedade patriarcal (em que a mulher tem uma função determinada, a de cuidar do lar e da família) paga seu preço e por mais que a March seja “inquieta”, para ela se torna quase impossível reagir.
Usando uma situação quase que provinciana a trama acaba por tocar em feridas que até hoje vemos sangrarem em nossa sociedade patriarcal, machista e doentia. Pelo que a velha que escolhe o sacrifício diz nos é passada a ideia de que a inocência, a pureza da criança, importa, o que é outra coisa bizarra se pensarmos que as três crianças a serem escolhidas devem ser igualmente puras. Então ela escolheu a March por que não foi com a cara dela? Mais um motivo para achar tudo isso muito podre.
Mas voltando a criança, desde sua apresentação até o que ela faz no final do episódio, tudo têm reflexos da maneira como ela foi criada, da maneira como ela foi “programada” para dizer sim com um sorriso mesmo em meio as piores violências, caso sejam convenientes para outros, mesmo que não seja conveniente para ela. E ela até tenta se libertar disso, mas é compreensível que se pressione psicologicamente, até inconscientemente (o pesadelo foi bem isso), para retroceder em sua rebelião e aceitar.
É nesse mundo feio e complicado demais que o Fushi revive mais uma vez e dá de cara com a March, ele tenta seguir rumo ao sul sem se preocupar com a garota, mas é claro que ela não deixaria o evento fantástico que presenciou passar impune e no alto de sua inocência e curiosidade começa a interagir com o garoto. Alias, no alto também de sua gentileza e carisma, afinal, apesar de se chatear com seus modos animalescos, logo ela entende que o Fushi é como um bebê e que ela poderia ser uma mãe (e uma bem amorosa) mesmo que por pouco tempo.
Não tenho dúvidas de que a March seria uma boa mãe não porque ela foi criada para isso, mas porque é uma existência amorosa, gentil e de muita personalidade. Desde a vila ela chorou em silêncio e engoliu seu destino cruel para poupar a irmã, o que sim, repito, é uma coisa ruim por ser uma permissividade imposta a ela, mas por outro lado também demonstra qualidades de sua pessoinha, não à toa sua consciência a pune pela transgressão com um pesadelo tão desagradável quanto toda a situação que lhe cercava.
Foi a partir daí, após acordar desse pesadelo aterrador, que seus passos na direção da qual veio entregaram o que a prévia apenas confirmou, que apesar de ter se rebelado, ela caiu em si e aceitou seu destino. Muito por ser ensinada a acatar mesmo a pior das violências, mas também porque ela não quer causar mal algum. É contraditório, eu sei, mas os seres humanos são assim, ainda mais quando seus sentimentos ficam a flor da pele e não parece haver outra opção.
Contudo, há outra opção e ela está bem atrás da March, é o Fushi, mas como o garoto que mais age como um animal pode ajudá-la? Veremos, já li isso no manga e lembro, mas não vou dar spoilers, né. Só o que posso dizer é que só o fato dele segui-la e de antes disso ter interagido de maneira tão próxima a ela denotam uma afeição em construção que se assemelha muito ao que ele tinha com o humano que lhe serviu de molde, e é na esteira desse estímulo que ele deve ser impelido a agir.
Que bom que tem a Parona para ajudar, né, até pensando em não só evitar que a March seja morta, como também que isso aconteça com outra criança. Não dá para esperar que o Fushi tenha uma compreensão tão grande do que está em jogo, então se cooperar com a Parona usando a imortalidade ao seu favor as chances de quebrar esse ciclo de violência estúpida aumentam. Ainda vai ser bem dificultoso, mas, convenhamos, a March aparece tanto na abertura que duvido muito que ela morra. Espero estar certo.
Repito, não cheguei ao fim desse arco no mangá (e se cheguei ou passei não lembro de nada), realmente li muito pouco, então não sei direito o que acontece, estou quase tão a mercê da animação quanto eu imagino que você esteja. Sendo assim, só o que posso é especular e o fiz, não consigo pensar em muitas outras formas de resolver o problema. Ademais, achei realmente bacana que a March tenha trazido um tom cômico a trama em vários momentos, apesar de tudo que de ruim estava acontecendo com ela.
No fim, a vida é isso, um conjunto de muita merda, mas também de algumas coisas boas, e se tem um tipo de pessoa que consegue se sair relativamente bem vivendo acredito que sejam aquelas capazes de sorrir e se divertir o pouco que for mesmo em meio a própria desgraça. Sou cearense e me orgulho (o que também é questionável, eu sei) da minha resiliência (nem que seja só um pouquinho) e como a March, quero ser livre. Diferente dela, já sou adulto e posso escrever com convicção que esse anime segue incrível em toda sua sensibilidade e beleza.
Até a próxima!