O ursinho destruído por Ai após ter sua infância destruída por um pedófilo que sua mãe trouxe para dentro de casa

Bom dia!

Desculpe pelo atraso. Entre o final da temporada passada, a gravação dos dois programas ao vivo sobre primeiras impressões dessa temporada, a publicação de um podcast sobre Shoujo Kageki Revue Starlight (esse até tem algo a ver com Kageki Shoujo!!) e a gravação de um podcast de Kaiba (que ainda não foi ao ar), além do meu trabalho cotidiano, fiquei absurdamente saturado e não consegui escrever nada.

Ainda devo artigos da temporada passada.

Peço desculpa pelo título também. Chamativo, talvez apelativo, mas eu acho que tem muito a ver com esse arco do anime. Descreve exatamente o que se passa com a deuteragonista Narata Ai, afinal.

E descreve a realidade. Sabia que no Brasil, entre 2011 e 2017, quase 70% dos abusos sexuais contra crianças foram cometidos dentro de casa? Não sei os números no Japão, mas pela dinâmica desse tipo de crime não tenho motivos para acreditar que seja muito diferente.

Mas não se preocupe que esse é um artigo sobre a Ai, não sobre estatísticas.

 

Aula de sapateado na escola Kouka

 

Antes de ir direto ao assunto, porém, um breve aparte para falar sobre “kageki” com a profundidade que eu gostaria para as primeiras impressões, mas acabei forçando-as no Kakeru, que fez o melhor que pôde.

Kageki pode ser tradução literal de ópera, daí um dos títulos alternativos de Kageki Shoujo: Opera Girls. Mas ópera é um gênero teatral europeu, então no contexto japonês kageki pode significar qualquer tipo de teatro musical. Em particular, “shoujo kageki” se refere a teatros musicais em que todos os papeis são desempenhados por mulheres.

Há trupes de teatro musical feminino no Japão e teatros dedicados exclusivamente a elas, a mais famosa sendo a Takarazuka. A escola Kouka de Kageki Shoujo é inspirada diretamente na Takarazuka, que também tem sua própria escola, teatro e várias trupes profissionais.

Nem tudo são flores nesse tipo de ambiente, e o anime começou a mostrar isso logo de cara com a veterana que tenta derrubar a “concorrência” e com a professora que assedia uma das alunas por estar supostamente “gorda” (não estava), o que vai empurrá-la para a bulimia.

 

Uma veterana armou para a Sarasa quando a viu com o stalker e um professor fora da escola

 

Na verdade acho que nada são flores.

Nada são flores no kageki, mas ainda é melhor do que na indústria idol, donde vem a deuteragonista Narata Ai.

Desde o começo do anime sabemos que Ai é androfóbica, tem medo de homens. O único com quem consegue interagir normalmente é seu tio, que é professor em Kouka. Ela foi expulsa do grupo idol do qual fez parte e decide entrar em Kouka, que é um ambiente quase exclusivamente feminino (há outros professores homens, afinal), não por sonho de se tornar atriz, mas para se sentir mais segura nos dois anos que durarão o curso.

Além de androfóbica, Ai é super antissocial, evitando se relacionar para além do necessário com qualquer uma de suas colegas de classe, e em particular com sua colega de quarto Watanabe Sarasa, a protagonista do anime e quase tão alta quanto extrovertida.

Ai construiu uma barreira ao redor de si (inclusive uma barreira física em sua metade do quarto) que é praticamente inexpugnável. A personagem chega mesmo a ser grosseira e antipática, o que não preocupa as garotas mais calculistas que querem se tornar atrizes em Kouka porque alguém como Ai não tem futuro, mas que perturba o espectador e Sarasa, que chega a dizer que “tudo entre elas está acabado” (não que nada tenha existido antes).

A cadeia de eventos que levou a doce Sarasa a quase desistir de se tornar amiga de Ai começou bem antes delas entrarem em Kouka, quando Ai ainda era idol e disse a um fã, durante uma sessão de apertos de mão, que ele estava sendo desagradável por ter segurado a mão dela por mais tempo do que podia. Essa foi a causa da sua expulsão do grupo.

Nada são flores na indústria idol.

Nada são flores na indústria idol, mas será que é muito melhor que o cinema, no qual trabalha a mãe de Ai?

Eu já não sei muito sobre Takarazuka ou a indústria idol, mas sei ainda menos sobre o cinema no Japão. Espero que seja um ambiente minimamente salubre para mulheres, mas, ao redor do mundo, é comum que esse não seja o caso.

Seja como for, Kimiko, a mãe de Ai, é uma atriz. E mãe solteira. Vive cercada de homens e vive absorvida pelo seu trabalho. Não é um bom exemplo, mas vive dizendo para a filha que tudo o que faz é para poder dar o melhor para ela.

Desde cedo Ai sabe que a mãe só está realmente preocupada é em ter o melhor para si.

É fácil culpá-la por tudo o que o anime revela e que logo a seguir descrevo, mas … bom, ela é culpada por tudo, mas ainda assim é bom entendermos o seu contexto. Entender, não perdoar, que fique claro.

Como atriz, mulher bonita e de sucesso, é fácil entender como ela pode viver cercada de homens. Também é fácil imaginar como possa ter se tornado uma mãe solteira, e sendo uma mãe solteira, é fácil entender porque seja tão difícil encontrar homens sérios sobre ela.

O que não é imediatamente óbvio é que provavelmente ela nem sempre teve sucesso. Mas sempre foi bonita, talvez até mais em sua juventude do que agora. Um dia ela deve ter sido só uma mulher frágil e bonita tentando o sucesso no cinema.

A partir daí volta a ser fácil. É fácil imaginar a que está sujeita uma atriz novata.

E, no entanto, apesar de tudo o que ela passou, hoje ela tem sucesso. Venceu na vida, acredita que tem tudo o que sempre quis, e o que ainda não tem está ao alcance dos dedos.

Entender isso é importante porque apenas assistindo o anime não fica claro que ela sabia o que aconteceu com a filha. Ah, sim, o que aconteceu com a filha?

Kimiko eventualmente trouxe um de seus amantes para morar em sua casa. E ele era um pedófilo que imediatamente pregou seus olhos na pequena Ai.

Até então, mesmo sabendo, no fundo, que a mãe a ignorava, Ai tentava viver de forma positiva, tentando acreditar nas palavras da mãe de que tudo era, no fim das contas, para o bem dela. A menina era sorridente, simpática e sociável, em claro contraste com a Ai que conhecemos no começo do anime.

Mas ter um homem secando-a com os olhos deixou Ai bastante estressada.

 

A mãe de Ai traz seu novo namorado para casa, um pedófilo que imediatamente faz Ai se sentir mal com a forma como olha para ela

 

Quando sua mãe a deixou uma semana sozinha com aquele homem, ela entrou em pânico. E, desgraçadamente, toda a preocupação da menina se mostrou justificada quando ele abusou dela. Arrancou-lhe um beijo. De boca. De língua.

O pior é que foi a própria mãe quem a deixou com aquele homem. O pior é que provavelmente a mãe sabia, e a Ai sabe que ela devia saber. Ela tentou ligar para a mãe logo depois do abuso, mas foi interrompida por uma atriz muito preocupada com seu trabalho.

Eu não digo que Kimiko soube do abuso em si, mas é bastante provável que soubesse que seu amante olhava de forma lasciva para a própria filha. Acostumada a ter vários amantes, provavelmente acostumada a ser traída, que um homem seu olhasse para outras não devia ser nem novidade nem algo que a fizesse reagir a essa altura.

Por que não se preocupou com a própria filha? Ela mesma deve ter sido vítima de várias formas de abuso, de violência, ao longo de sua carreira. E mesmo assim está lá, viva e bem, deve dizer a si mesma. Essa mentalidade, se ela parar para pensar na filha por um instante, o que não é muito provável, deve fazê-la crer que Ai faria bem se aprendesse logo cedo a lidar com abuso e violência também.

E algo ela aprendeu, não foi?

Se não podia confiar nem na própria mãe, aprendeu a não confiar em mais ninguém – exceto no tio, que a ajudou.

Se ser simpática e sociável não servia de nada, pelo contrário, a deixava mais exposta, aprendeu a se isolar e ser antissocial.

Finalmente, por força do trauma, “aprendeu” a temer todos os homens – exceto, de novo, seu tio.

A Ai que conhecemos no começo do anime nasceu ali.

Eventualmente Ai entraria para o JPX48, grupo idol que não disfarça ser uma versão fictícia do AKB48. Ela achou uma boa ideia porque foi seu tio quem sugeriu, seria perto da casa dele e, afinal, era um grupo só de garotas.

Ou ela não sabia, ou não tinha pensado ainda no que implicava se tornar membro de um grupo idol. Quero dizer, quem é o público-alvo desses grupos? Quem são os fãs dessas artistas? Como fãs e idols interagem? Pois é.

É lógico que deu errado, e isso até já sabemos como. Um fã segurou sua mão por tempo demais e o resto é história.

Depois disso ela foi para Kouka, mais uma vez por indicação do tio, que dá aula lá. É uma escola feminina, dois anos de curso, o que pode dar errado?

Bom, ela podia não ser mais idol, mas isso não significa que as pessoas magicamente esqueceram dela da noite para o dia. Em particular, o fã responsável pela sua expulsão do grupo se revelou um stalker e a perseguiu até Kouka.

Ai ficou paralisada. Seu trauma a estava perseguindo onde quer que ela fosse.

Exceto que esse fã-stalker não era de todo ruim, e a Sarasa estava lá para seu socorro.

 

Sarasa e Ai encontram com o stalker esperando a ex-idol

 

Podemos discutir sobre a conveniência de Kageki Shoujo ter redimido o fã stalker, pelo menos parcialmente, mas acho que a história fez sentido no final.

Ele não era uma pessoa ruim, só queria pedir desculpas. Ele é jovem, cometeu um erro e quer se redimir. Quando eu era jovem e cometia erros também fazia ou pensava em fazer loucuras para me redimir. O ponto é que esse tipo de pedido de desculpas não serve de verdade para fazer bem à pessoa ofendida, e sim apenas para que o ofensor se sinta melhor consigo mesmo. Ufa, fui desculpado, então está tudo bem! Não é assim que funciona.

O fã em questão não sabia do trauma da Ai, e por isso ele pode, com efeito, ser desculpado. Mas o que ele fez no evento de aperto de mãos e o ato de tê-la perseguido até Kouka para pedir desculpas foram apenas egoísmo de sua parte.

Mas as coisas se complicaram um pouco mais, e ele teve finalmente sua chance de redenção.

Quando Ai fugiu dele a Sarasa ficou para trás. Como ela demorava a voltar, Ai ficou preocupada. Munida de toda a coragem que deve ter custado muito para ela reunir, Ai voltou ao local do encontro indesejado para, se necessário, salvar a colega de quarto. E o que ela encontrou ao chegar lá foi ela e o stalker dançando juntos animados.

Ok, ele tinha uma história, que seja, mas não dá para realmente querer que a Ai ficasse contente vendo aquilo. Por outro lado a Sarasa também está certa quando diz que se a Ai estava mesmo preocupada, deveria ter ficado feliz ao ver que ela estava bem. As piores brigas são aquelas que acontecem quando ninguém está errado.

O refúgio seguro da Ai desmoronou rápido. Sem saber o que fazer, Ai faltou à aula e foi andar por aí. Acabou perto do mar, e lá ficou observando-o, absorvida em seus pensamentos.

Mas o seu fã-stalker não era o único que ainda se lembrava dela, e dois marmanjos bem mais perigosos a encontraram e tentaram forçá-la a acompanhá-los. Ai desaba, e bem nesse momento chega o stalker para salvá-la – ou apanhar tentando.

Eis que a Sarasa ficou preocupada quando soube pelo tio da Ai que ela havia desaparecido. Então ela entrou em contato com o stalker, porque é lógico que ela trocou telefone com ele, e ele usou seus poderes de otaku de idol para localizar a Ai.

Entender que mesmo um fã esquisito e stalker (e homem!) podia não ser mal intencionado ajudou a Ai a dar o primeiro passo para finalmente começar a lidar com seu trauma. Ela ainda não consegue se aproximar de homens, mas ela está disposta a tentar seguir em frente na vida.

Foi um final feliz.

 

Ai não está feliz, mas está pelo menos aliviada

 

Não um final feliz de conto de fadas, ninguém vai viver feliz para sempre ainda, mas foi o final feliz possível. Ai, Sarasa, o stalker, todos conseguem seguir em frente, com seus acertos e também com suas culpas.

Assim finalmente as duas principais personagens de Kageki Shoujo estão em bons termos uma com a outra e a história pode prosseguir.

 

Ao final de tanta dor e angústia, Ai encontrou alguém com quem ela quer andar lado a lado

 

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