Plastic Memories – ep 1 – Um anime sobre espectadores com sentimentos
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Oh, desculpe pelo título, eu quis dizer andróides com sentimentos. Mas você entendeu, não entendeu? De todo modo, estou apenas te provocando. Você é um ser humano (ou o googlebot) e como tal simplesmente assumimos que você possui sentimentos. Mas o que são, afinal, sentimentos? O que é personalidade? Isso também é algo que damos por garantido. Somos humanos, temos sentimentos e personalidade! E memórias. Essas são mais fáceis de descrever: são informações. A fórmula de Bhaskara, o endereço da sua casa ou o que você fez na madrugada de sábado passado são informações que você sabe (sabe Bhaskara, né?). E memórias, talvez por entendê-las de forma tão simples assim, nós sabemos que não somos as únicas entidades no universo que podem ter. O computador ou celular onde você está lendo esse artigo também tem memórias. A forma como ele as armazena e o uso que faz delas são definitivamente diferentes de você, mas mesmo assim é fácil dizer que tanto esse computador ou celular quanto você possuem memórias. Plastic Memories lida com esse tema já consagrado na ficção científica: e se robôs humanóides (andróides) tivessem sentimentos e personalidade?
No anime, existe apenas um modelo de andróide com essas características, fabricado por uma única empresa, e adequadamente chamado de giftia, do inglês gift, presente, dádiva. É uma dávida para os giftias ter personalidade? Ou é uma dádiva para os seres humanos que os adquirem por ter ao seu lado alguém com quem podem manter uma relação de afeto que em nada é diferente de uma relação humana? A busca de afeto do ser humano em outros seres que não humanos é um tema espinhoso por si só, mas embora não vejamos pessoas comprando andróides para isso no mundo real, até porque máquinas assim ainda não existem, os animais de estimação de companhia são um fenômeno em ascensão. Em Plastic Memories, suponho que essa busca em um futuro fictício onde há tecnologia para tanto levou à criação dos giftias. Então, em um primeiro momento, foi uma dádiva para os seres humanos. Mas esses andróides possuem sentimentos verdadeiros (e o que seriam sentimentos falsos, aliás?), auto-consciência e inteligência suficiente para concluírem que isso é, também para eles, uma dádiva. A dádiva de existir. Claro que nem todos pensam assim. A andróide protagonista, Isla, mais de uma vez demonstra profunda melancolia e chega mesmo a dizer que seria melhor não ter memórias em primeiro lugar.
Isla diz isso porque os giftias possuem um prazo de validade: algo um pouco mais do que nove anos. Depois disso, suas memórias começam a deteriorar e eles as perdem rapidamente até o ponto em que perdem a própria personalidade. Em Plastic Memories, a personalidade é uma construção e consequência das memórias. Ou talvez haja algo mais sombrio e perigoso aí, já que a história se desenrola em um departamento da indústria que fabrica os giftias responsável especificamente por retomar os giftias antes que rompam seu prazo de validade, e isso precisa ser feito sem falha, tendo sido citada inclusive a possibilidade de uso da força para tanto se necessário for. Se foi citado, é porque será usado em algum momento. Será que os giftias apenas perdem a personalidade e as memórias mesmo? E por que as pessoas que quiserem, afinal desenvolveram um vínculo afetivo forte com seus andróides, não podem mantê-los mesmo depois de quebrados? É como qualquer família que mantém ligados os aparelhos de um ente querido já desenganado pelos médicos. Em vários países a eutanásia nessas circunstâncias é permitida (e em alguns, até mesmo em circunstâncias anteriores a essa mas que fatalmente se desenvolverão até ela), mas em nenhum lugar do mundo, que eu saiba, é obrigatória. Em Plastic Memories, a “eutanásia” dos giftias é obrigatória.
Outra detalhe técnico que acho importante comentar é o rígido limite de tempo útil de um giftia. Não existe sequer a possibilidade de mover as memórias de um giftia velho para um giftia novo e idêntico, minorando drasticamente a dor dos seres humanos que viviam com eles. Também não existe, sei lá, a possibilidade de aumentar a memória ou algo parecido com isso para que eles durem mais. Considerados esses fatores, parece ser mesmo uma limitação tecnológica, talvez uma quantidade máxima de memória que esses andróides possam ter e que depois de um tempo bem determinado estará totalmente ocupada. Mas existe também a chance, não desprezível, do anime ignorar completamente o porquê desse limite e usá-lo apenas como ferramenta para o enredo. Sendo um bom enredo, até que eu não me importo.
O anime, afinal, é sobre seres humanos e robôs praticamente humanos que vivem juntos, sentem juntos, crescem juntos, e um dia precisam se separar. A vida mesma é assim, não é? Somos todos cadáveres adiados. Como os giftias, sabemos que iremos morrer um dia, a única diferença é que não sabemos quando. Isso deprime Isla. Aparentemente não só o próprio destino como o fato de que o trabalho dela é, na prática, matar sua própria espécie. Ela sabe que o que está fazendo hoje com outros um dia será feito com ela. E esse dia talvez nem esteja tão longe assim: ela dá uns “erros” de vez em quando, e é tratada como veterana que inclusive já não estava mais fazendo trabalho na rua, só voltou a fazer isso porque não havia outro giftia à disposição de um novato (Tsukasa) na empresa que chegou lá contratado para esse trabalho. Tsukasa e Isla são os protagonistas de Plastic Memories.
Nesse primeiro episódio, acompanhamos a dolorosa história de Chizu, uma senhora idosa, e sua giftia de nome Nina, em forma de garotinha. As duas possuem nove anos de convivência, Nina é um andróide para todo mundo, mas para Chizu ela é sua neta. Isla e Tsukasa aparecem todos os dias durante uma semana como anjos da morte que querem levar sua garotinha embora, e ela os rejeita toda e cada vez. Até que Isla pula o muro e conversa com Nina, que sabe de sua condição. Ela sabe que seu tempo está acabando mas diz não ter medo de perder as memórias (o que para um giftia é quase o mesmo que morrer), só fica triste por saber que quando as memórias dela começarem a falhar, Chizu, sua avó, ficará triste também. Ela gostaria de continuar junto, mas, sabendo que não é possível, quer se despedir com um sorriso. A avó escuta isso por detrás da porta e finalmente entende que a dor não é só dela, e cede. Então, elas compartilham uma última memória juntas, se despedem com sorrisos e lágrimas, e Nina parte. Tsukasa se sente mal por não poder ter feito nada por Chizu. Isla se sente mal por mais uma vez ter visto tão de perto um vislumbre do seu próprio destino, mas ela talvez tenha aprendido algo com a garotinha de nove anos que não tinha medo de morrer. E eu me sinto mal porque ainda não saiu o próximo episódio.