Tekkon Kinkreet pode ser descrito como a fábula do bem o do mal, ou mesmo da luz e da escuridão. Mas ao contrário do típico dualismo ocidental, ela se desenvolve e significa-se através do monismo oriental, do Yin Yang, que para muitos representa um dualismo. Mas me atrevo a dizer que a adequada leitura desse sistema filosófico só pode ser monista.

 

 

Há quem saque a faca e diga que estou errado, que o Tao propõe um sistema de equilíbrio entre duas forças opostas, as quais se sustentam através do conflito e da contradição, da destruição e da criação. Princípios que a tudo compõem e impregnam, entretanto, lhes pergunto: existe Yin sem que exista Yang? Como podemos alcançar o equilíbrio do universo sem que ambos estejam ali, agentes e pacientes ao mesmo tempo?

Percebam que mesmo dentro do Yin, um lampejo de Yang desponta, e o contrário também se apresenta. Kuro e Shiro, nossos protagonistas, representam exatamente isso, pois em Shiro há um pouco de Kuro, e em Kuro há um pouco de Shiro. Podemos traduzir como escuridão e como luminosidade, se assim desejarem, mas de um modo ou de outro, um depende do outro, um se desequilibra sem o outro. Eles são diferentes, mas ao mesmo tempo, são iguais. A simbiose de ambos é tamanha que por vezes não sabemos quem é a luz e quem é a escuridão.

 

 

Shiro aparenta ser ingênuo, infantil, descontrolado ou mesmo imerso no mundo da fantasia, beirando a insanidade. Kuro, por sua vez, aparenta sobriedade, maturidade, controle e violência. Ele age sobre o mundo real, roubando, agredindo, estabelecendo o seu território, a sua lei, as regras que regem a cidade que lhes pertence. Ambos controlam a cidade do Tesouro como a gangue de delinquentes mais forte. Os Gatos, como são chamados, impõem respeito e sobrevivem como marginais.

Quando o território de ambos é ameaçado, Kuro e Shiro agem estrategicamente, um complementa a fraqueza do outro, um protege e motiva o outro. Kuro se sente responsável por Shiro, que é mais frágil e menos habilidoso, e Shiro, ao agir como alguém abobado, acaba por humanizar o lado sombrio de Kuro, que quando está perto dele, consegue ser um pouco mais feliz, mesmo que ainda imerso no abandono, rancor dos adultos e tristeza.

 

 

Órfãos, relegados a sobrevivência pela própria força, ao verem ameaçado o seu modo de vida, quando os Yakuzas resolvem impor autoridade, os Gatos atacam. Indiretamente protegem outros delinquentes que também compartilham do submundo da cidade do Tesouro, mas o objetivo real é proteger um ao outro, pois um precisa do outro para existir e para ser a si mesmo. Yin e Yang, Kuro e Shiro, não podem sobreviver separados.

A Yakuza, representada pelo personagem Rato, um veterano do crime organizado, acaba acuada pelos novos tempos, a mudança que varre o modo de vida dos antigos mafiosos. A Serpente, um novo marginal da nova era, traz consigo novidades, a reestruturação dos negócios. O Rato sabe que seu tempo terminou, ele aos poucos se recolhe em seu canto, pois o que manda é o dinheiro e o lucro, não a tradição e a estabilidade.

 

 

A Serpente, ao desejar construir o seu novo império, decide soterrar todos aqueles que ficarem em seu caminho, dentre eles, os marginais locais, com destaque para os Gatos, que são os únicos que fazem frente a esse mafioso.

Com um poder de fogo avassalador, a Serpente caça impiedosamente os meninos, chegando ao ponto de quase matar Shiro. Kuro, em face de sua impotência em proteger o menino, decide o abandonar, deixando-o aos cuidados da polícia local, que nada mais faz do que monitorar o crime de uma distância segura. A cidade do Tesouro é um caos onde coabitam inúmeras diversidades. O cenário do filme representa muito bem isso, pois se prestarem bem atenção, poderão ver diversos elementos e simbolismos das mais diversas religiões, ou mesmo a arquitetura típica da cidade. Tudo isso sendo varrido pela homogeneidade dos novos tempos.

 

 

Mas o caos real que podemos presenciar é a separação de Shiro e Kuro, onde ambos, ao estarem distantes um do outro, desenvolvem comportamentos erráticos. Kuro é absorvido pela sua própria escuridão, e tendo que lutar para sobreviver, ele enlouquece em sofrimento. Shiro, conectado e sentindo dentro de si tudo o que Kuro sente, tenta com todas as forças alcançar o coração do amigo, pois como comentei no início da resenha, ambos são diferentes, mas ao mesmo tempo, são iguais, e por mais que sejam indivíduos, só podem existir em plenitude, ao serem apenas um.

 

 

O desfecho dessa bela história se dá não apenas pelo poder da escuridão que a tudo desintegra, no caso, quando Kuro se entrega momentaneamente ao desespero, mas sim por um outro personagem, Kimura, que embora tenha aniquilado o Rato, seu mentor cujo nome é Suzuki, se redime ao escolher o caminho da tradição, virando as costas para o submundo e buscando escapar desse modo de vida corrompido. Uma pena que no processo acabe gerando mais um órfão, ou seja, a futura geração de delinquentes, assim como o próprio Suzuki e ele mesmo, Kimura, sem contar os Gatos, o são.

Onde existe luz, existe escuridão. A realidade pode ser enfrentada pela racionalidade dos Yakuza, pela resignação dos policiais, ou mesmo pela liberdade dos Gatos, Kuro e Shiro, que no fundo são um misto de rancor, insanidade e sofrimento. Mas no fim, toda semente floresce em árvore, toda morte renasce em vida, todo órfão se torna pai da nova geração monista que habita a cidade do Tesouro.

 

 

P.S.: O mangá do qual se origina o filme foi lançado no Brasil pela editora Conrad em 2001 com o total de 3 volumes, intitulado “Preto e Branco”, tendo sido relançado em 2018 em volume único pela editora Devir com o título original “Tekkon Kinkreet”.

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