A arte é feita da mesma matéria da qual são feitos os sonhos. Ao mesmo tempo, ela precisa ser criada e executada por homens de carne e osso, falíveis, sujeitos aos próprios humores e também àqueles do mundo, limitados pelo local, pela época, frutos de seu tempo e que, com o tempo, passam. O Sétimo Yakumo não teve filhos de seu próprio sangue, mas criou da melhor forma que pôde duas crianças: um dançarino que feriu a perna e um moleque de rua. Eles cresceriam para se tornar Kikohiko (e depois o Oitavo Yakumo) e Sukeroku. O Sétimo se foi.

Sukeroku tragicamente se foi cedo demais pouco tempo depois. Coube a Yakumo, o oitavo, criar sua filha, Konatsu. Depois de velho ele ainda brilharia como um raio de esperança para o então detento Kyouji, que se encantou com a arte do rakugo e através dela saiu do mundo do crime, tornando-se Yotaro. Agora é o próprio Yakumo quem adentra no crepúsculo de sua vida, mas independente de qual fosse a sua vontade ele não pode querer levar tudo consigo para o túmulo. Ele não pode sequer abandonar tudo enquanto ainda vive. Ele não tem esse direito, sua arte agora pertence ao mundo. Nada disso foi e não pode se tornar apenas um sonho.

Vou começar esse artigo com especulações cronológicas. O anime nunca diz em que ano se passa então só podemos especular. E por que isso é importante? Bom, não é. Mas não deixa de ser uma interessante curiosidade tentarmos posicionar os fatos de Rakugo Shinjuu no tempo que conhecemos e calcular as idades dos personagens.

Depois de velhos vão ficar melosos assim?

Quando o futuro oitavo Yakumo se torna discípulo do Sétimo, ele não devia ter mais do que dez anos. Aposto em menos, mas que seja dez. Eu pesquisei mas não consegui descobrir qual era a idade de maioridade no Japão Imperial pré-guerra, o que é importante para saber com quantos anos os jovens eram alistados, então só para exercício vou chutar 20, a idade de maioridade no Japão hoje (mas provavelmente era menos na época). Assim sendo, passaram-se 10 anos entre a chegada dos garotos à casa Yuurakutei e o começo da Segunda Guerra Sino-Japonesa, que foi o começo da Segunda Guerra para o Japão, em 1937. Yakumo teria cerca de 20 anos em 1937 e não foi alistado por ser manco, enquanto seu mestre e Sukeroku participaram do esforço de guerra levando entretenimento para as tropas. Corta para o presente.

O terremoto citado por ocasião da conversa entre Yotaro e o diretor do teatro, quando foi revelado que ele precisaria ser demolido, é muito provavelmente o Terremoto de Otaki de 1984. Se Yakumo tinha 20 anos em 1937, em 1984 ele tem 67 anos. Yotaro chegou há dez anos, já que foi esse o tempo que levou seu treinamento até sua profissionalização, e há 30 anos ocorreu a tragédia de Sukeroku e Miyokichi. Se a Konatsu tinha cerca de 5 anos naquela época, hoje já está nos seus 35, e o Yotaro deve ter idade próxima. As idades deles combinam com suas aparências e mentalidades? E os fatos do anime parecem se encaixar com os períodos históricos em que teriam ocorrido, se meus cálculos estiverem corretos? Eu acho que sim, mas aceito correções. Agora de volta ao que interessa.

Yakumo sente-se preso a um corpo que não mais o obedece

Yakumo está velho, está cansado, e está definitivamente bem longe do auge de sua capacidade física. Tanto pior que tenha tido um infarto durante o qual provavelmente faltou oxigênio no cérebro, o que comprometeu sua fala. Sua memória também começa a falhar. Voz e memória são as duas coisas mais importantes para um contador de histórias, e Yakumo está perdendo as duas. Mais do que estar fisicamente cansado, a própria natureza o está tomando o rakugo. No fim das contas ele ama o rakugo e viver sem ele é algo doloroso, inimaginável. Era de se esperar, não é? Apesar de toda a atitude ruim dele. Reconheça-se que suas limitações de começo de carreira mais as preocupações que tinha com um mestre e um irmão descuidados o tornaram uma pessoa bastante severa. E quando todos tinham se ido, o rakugo foi tudo o que restou. Agora ele sente que o rakugo também está indo e não sabe o que fazer. Sente-se talvez “deixado para trás”.

Outra que não quer ser deixada para trás é Konatsu. Por trás de sua atitude agressiva ela ama o velho rabugento que a criou. Quem diria, não é? Bom, nessa segunda temporada é fácil de dizer, mas durante a primeira eu cheguei a cogitar que ela realmente o odiasse do fundo do coração. São sentimentos mistos, provavelmente. E o risco, sempre presente, de que na verdade ela não tenha se esquecido de fato do que aconteceu naquele fatídico dia, naquele fatídico hotel. Pensando bem, mesmo que tenha sido ela quem fisicamente atacou a mãe, levando-a a recuar até cair do balcão, permanece o fato de que o elemento disruptivo ali foi o Yakumo. Para o bem e para o mal nada teria acontecido se ele nunca tivesse estado ali. Como além de tudo ele próprio assumiu a culpa a situação se torna psicologicamente mais confortável. Mas isso é só uma hipótese e eu mesmo não acredito nela. Acredito que a verdade esteja enterrada em seu subconsciente e algo ainda a fará se lembrar daqui até o final do anime – cheguei a cogitar que a apresentação do Yakumo nesse episódio poderia causar isso, aliás.

Yakumo e Konatsu se emocionam com a apresentação de Yotaro, cada um a seu modo

Todos os fãs de longa data do Yakumo também não querem ser deixados para trás. Higuchi não quer deixar para trás as novas gerações, quer que todos conheçam quem foi e quem é Yakumo, o Oitavo. Em resumo, ele não quer que o próprio rakugo seja deixado para trás. E esse risco parece não mais existir a essa altura, não é? Até a versão de Quioto da arte parece estar renascendo, seguindo o retorno de Mangetsu para a contação de histórias. Mas assim como todos que o antecederam, Yakumo também terá que partir, e esse momento está se aproximando. A simbologia outonal desses dois últimos episódios não deixa dúvidas: seu inverno está chegando.

Mas a arte e os sonhos não vão acabar. Yotaro segue sendo um sucesso e já tem seu próprio aprendiz. Isso além do que já sabíamos ou eu já mencionei nesse artigo, como a volta do Mangetsu ao rakugo e o esforço de Higuchi para criar novas peças de rakugo. Yakumo quis ser o último, mas não conseguiu. Sua arte, carreira e influência se tornaram terreno fértil para que o rakugo floresça mesmo depois que ele tiver partido. Só não vou deixar passar uma coisa nesse episódio: que final anti-climático, hein? Até entendo e achei verossímil, mas não obstante completamente inesperado. E encerro esse artigo de forma anti-climática também.

  1. Este episódio de Shouwa, foi muito bom e emotivo, tal como este anime já nos acostumou. A tua especulação cronológica é bastante certeira. O serviço militar obrigatório, no exército Imperial Japonês, era obrigatório, para todos aqueles que fossem filhos varão, com mais de 21 anos e teriam que servir no exército no mínimo 3 anos. Antes da revolução Meiji, as castas dos samurais, o alistamento no exército do shogunato ou de um senhor da terra, era a partir dos 15 anos. Quando um filho de um samurai, atingisse os 15 anos, este tinha que fazer um ritual, chamado Genpuku, onde o adolescente deixa a sua vida de criança e passa a assumir as responsabilidades de um adulto. Também era neste ritual, onde os jovens adultos, recebiam as suas espadas e o título de samurai. Por isso é certo, afirmar que o Yakumo, quando estoirou a guerra, ele já deveria ter mais de 20 anos. O Kikuiko, nunca poderia ter sido convocado para servir, ele com aquele problema da perna, nem passaria nos testes médicos. O Japão no quesito de esforço de guerra, foi um bocado exigente. Quando a guerra chegou ao arquipélago japonês, todas, mas mesmo todas as pessoas, tiveram que contribuir para o esforço de guerra. Desde a entrega de objectos de cobre, latão, para fabricar munições, quando as indústrias bélicas japonesas foram totalmente destruídas, as casas dos simples cidadãos transformavam-se em fábricas artesanais de armas, na sua maioria de munições e armas brancas. O grupo mais afectado foram as mulheres e as crianças, que eram obrigadas a trabalhar que nem escravos, na reconstrução das cidades destruídas, na defesa da pátria, quando o Japão estava na derrota eminente, existiam batalhões de mulheres com lanças de bambu, naginatas e pedras para defender a pátria dos bárbaros do Sul. Por isso, a ida do Sukerou e do seu mestre, para a Manchúria para entreterem as tropas, não foi nada demais. De resto, estou de acordo com a tua teoria cronológica, ela faz muito sentido. E obrigado pela aula de história.
    Este episódio, este cheio de feels, parece que estes vão ser uma constante até ao final desta temporada de Shouwa. Como é bonito, ver o Yotaro e a Konatsu, cada vez mais confidentes um do outro. A cena dos dois sentados no banco, foi muito bonita, só espero que por este andamento, ele adaptem a parte em que a Konatsu engravida do Yotaro (que para mim, foi das melhores coisas do mangá). O velho Yakumo, sente-se cansado, ele está com uma depressão profunda, ele já não consegue fazer Rakugo, o corpo dele já não o obedece como ele quer, claro que ele ia chegar a um ponto, em que ia ponderar tirar a sua própria vida. Eu também estranhei, o Yakumo ir aquela ponte de noite, pelo que a Konatsu deu a intender, ele já fazia semanas que evitava sair de casa por causa da sua condição. Então o que ele iria fazer aquela hora naquela ponte,o meu ponto imediato, foi que ele ia matar-se. Mas o Yotaro com os seus olhos de águia e rapidez de uma lebre, conseguiu evitar o pior. Note-se que o Yakumo, mentiu para o seu pupilo, ele não queria magoar e preocupar o Yotaro. Ele conseguiu enganar o Yotaro, mas não enganou a Konatsu, a Konatsu sabia que o Yakumo ia se matar. E esta discussão originou um dos momentos mais emotivos deste episódio, a demonstração dos sentimentos da Konatsu, pelo homem que a criou como filha e vice-versa. Aquele discurso do Yakumo, para a Konatsu e o Yotaro, em que ele diz, que ainda não pode partir,por causa do amor que eles sentem por ele, foi muito bonito e cheio de simbologia. A Konatsu para mim, nesta temporada está irreconhecível, ela mudou muito, principalmente se formos atentar à relação entre ela e o Yakumo. Aquele abraço que ela deu ao Yakumo naquela cena da ponte, foi uma espécie de reconhecimento dela, em relação ao Yakumo ser o pai dela. Aquilo foi um abraço entre pai e filha. Eu acho que a Konatsu, sabe o que aconteceu naquela noite fatídica em que ela perdeu os seus pais. Ela de vez em quando tem uns flashbacks daquela noite (o anime já deu a perceber isso), será que ela nesses flashbacks descobriu que o Yakumo não tinha culpa, e dai ela estar a dar-se melhor com o velho resmungão, é uma hipótese possível. Como foi bom, ver o Mangetsu reviver o Rakugo de Quioto, ele bem diferente do Rakugo de Tóquio. Ainda estou curioso,o que levou ao Yakumo, ter uma gratidão tão grande, com o chefe Yakuza, já se sabe que esse chefe é o pai biológico do Shin, mas o que ele terá feito ao Yakumo, para este ser tão agradecido a ele. Aquele esforço que todos fizeram, ao reunir, as 20 pessoas mais importantes na vida do Yakumo, foi um gesto lindo. Acho que o velho Yakumo, nunca esperou receber tanto carinho e amor na sua velhice. O Matsuda saiu da linha, quando enganou o seu mestre, ao mudar o rumo da viagem do carro do Yakumo. Como foi boa, aquela cena, já na casa de chá, quando o Yakumo é surpreso, com a noticia que iria apresentar uma peça para 20 convidados ilustres. Ele bem tentou fugir, mas a dona da casa de chá, Oei, deu o empurrão decisivo ao Yakumo, o velho até ficou sem jeito quando entrou forçadamente no palco. Eu nem tenho palavras para descrever a actuação do Yotaro. Ele sabia que aquele momento ali, era muito importante, para o seu mestre, ele escolheu representar a mesma história que o Sukerou tinha representado antes de morrer. Fiquei bem emocionado nessa cena, tal como a Konatsu e até o velho Yakumo, ficou emocionado à sua maneira. Tudo parecia tudo bem, quando a policia invade a casa de chá, para deter o chefe Yakuza. Nessa cena até tive pena da Oei-san, ela defendeu o seu amado até ao fim, só desistindo quando o seu amor lhe disse para desistir daquilo, pois ele já sabia que não valia a pena argumentar.
    Como sempre, mais um excelente artigo, de Shouwa Fábio.

    • Fábio "Mexicano" Godoy

      Acabei falando pouco da cena final, né? Algo que pode ter passado despercebido para algumas pessoas mas que eu reparei na hora e minha cabeça ficou louca pensando em significados foi quando o Yakumo perguntou ao Yotaro se o Sukeroku havia chorado, e ele respondeu que sim. Acabei não escrevendo sobre isso porque já era tarde da noite (quase de manhã, na verdade) e me esqueci mesmo, desculpe.

      Para começar, por que o Yakumo fez aquela pergunta? A impressão inicial é de seria uma deixa para dar um sermão, algo como “ele chorou? não né? então se quer mesmo fazer como ele não pode chorar!”. Pode ter sido dúvida legítima também, algo pode ter se perdido na tradução, enfim, não importa. O importante é: qual não foi a surpresa do Yakumo ao ouvir que sim, o Sukeroku chorou! Há 30 anos atrás seu melhor amigo, seu irmão, fez seu último rakugo. Uma comédia boba, como era sua especialidade, mas essa tinha uma lição de moral no final. Yakumo apenas escutou a apresentação dos bastidores, não a assistiu, assim pôde apenas reconhecer a boa apresentação de Sukeroku, como ele já esperava que fosse. Mas Sukeroku chorava. Em meio a uma peça de comédia, Sukeroku chorava. Em uma história que termina com um sermão sobre tomar rumo na vida, sobre aprender com seus erros, o Sukeroku chorava. Ele morreu naquele mesmo dia e Yakumo nunca soube disso. Eu não consigo nem começar a ter ideia do que possa ter se passado pela cabeça dele ao descobrir isso. É coisa demais pra lidar de uma vez só e logo em seguida qualquer que fosse sua linha de raciocínio ela foi interrompida pela entrada da polícia.

      O que nos leva a sua dúvida, que é também a minha dúvida: qual a relação entre o Yakumo e o chefe yakuza? Eu tinha entendido antes que eles haviam se conhecido por causa do Yotaro – o Yakumo o teria procurado para garantir a “liberdade” do discípulo e coisa e tal. Mas pela conversa deles parece que há bem mais além disso, e provavelmente desde antes. Não foi algo simples como um empréstimo, o yakuza fala explicitamente em manter a boca fechada. O tal favor dele teria sido ocultar alguma informação? Qual? De quem? Quando? Por quê?

      Talvez isso esteja diretamente relacionado ao motivo pelo qual o Yakumo foi se apresentar em uma penitenciária em primeiro lugar – ou talvez seja a razão para tanto.

      Faltam poucos episódios e ainda estou cheio de dúvidas e expectativas! Que época para se estar vivo e assistindo animes, não é? Hehe.

      Obrigado pela visita e pelo comentário! =)

      E por mais informações históricas, naturalmente. Em minha pesquisa havia chegado até o genpuku, mas ainda não era isso que eu precisava saber. E nada encontrei sobre o alistamento no Japão no período das guerras, enfim.

      • Só faltam 4 episódios para este anime acabar e eu também estou como tu, cheio de dúvidas e expectativas. Será que eles vão adaptar até ao final do mangá, o mangá já acabou faz um ano e meio. Não sei se eles vão conseguir acabar o anime com um final fechado, mas espero que continuem com o excelente trabalho que têm feito até agora.
        O alistamento no Japão nas guerras ficou muito confuso, desde a implementação da Era Meiji. Na segunda guerra Mundial, sei eu, que o alistamento era obrigatório, para todos os homens com mais de 21 anos. E quando a guerra começou a ficar mal, para o lado japonês eles obrigavam homens ainda mais jovens a alistarem-se, principalmente para a força aérea (na sua maioria, para se tornarem Kamikazes) e para o Kempeitar, a policia que monitorizava o exército imperial japonês. Um filme que demonstra razoavelmente bem, a questão do exército japonês é o Letters From Iwo-Jima, filme que recomendo muito.

      • Vai demorar muito, para outro diamante lapidado, como Rakugo aparecer, mas para mim Rakugo quando acabar vai ser insubstituível. Quando o anime acabar, podiam fazer um ova, como fizeram antes da estreia da primeira temporada, a mostrar os filhos da Konatsu e do Yotaro, sonhar não custa nada.

      • Fábio "Mexicano" Godoy

        É verdade! Poxa vida, gosto tanto desses personagens, quero acompanhar as vidas deles inteiras. Ou pelo menos ter uma amostra grátis.

      • Se o mangá ainda estivesse em lançamento ainda haveria esperança de ver, mais das vidas destes personagens queridos do público. Mas como o mangá já acabou, e os dvds e Bds desta segunda temporada de Rakugo vão vender mal (animes que fazem pensar, nunca vendem), quase de certeza que nunca mais veremos, mais nada relacionado a Rakugo.

  2. Mesmo me iniciando na primeira temporada (desculpe peoples não leio os comentários para não dar a mim mesmo spoiler)…Tenho a dizer é um daqueles que tem que se apreciar como bom vinho, e do jeito que eu gosto encorpado e cheio de conteúdo histórico. Os personagens são muito bem construidos e desenvolvem-se até com uma certa leveza. Senhores vos agradeço por este entretenimento que é precioso! Só lamento ter descoberto tarde e não estar a par de vcs…

    • Fábio "Mexicano" Godoy

      Rakugo Shinjuu foi um dos melhores animes do ano passado, sua segunda temporada vem sendo um dos melhores da temporada atual, enfim, antes tarde do que nunca =D

      E pode comentar nos artigos dos episódios já passados se quiser conversar sobre eles, sempre vale a pena ^^

      Obrigado pela visita e pelo comentário!!

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