Bom dia!

Se você já conhece o Café com Anime deve ter pelo menos uma ideia do que está acontecendo aqui, se já não souber através dos meus parceiros. Se não conhece, vai conhecer agora:

O Café com Anime é uma projeto em que participamos eu, pelo Anime21, o Diego, do É Só Um Desenho, o Gato de Ulthar, do Dissidência Pop, e o Vinicius Marino, do Finisgeekis. Nós nos reunimos e discutimos sobre algum anime que estamos assistindo. Desde o começo, temos discutido sobre animes da temporada, episódio a episódio, mas essa edição do Café com Anime é especial.

Na virada da temporada de outubro para a de janeiro costuma haver uma ou duas semanas quase sem anime nenhum, então achamos que faríamos bem se aproveitássemos esse tempo para assistir alguns filmes anime e discutir sobre eles. Como de costume, cada blog hospedou a discussão de um anime diferente.

No Finisgeekis conversamos sobre Hórus: O Príncipe do Sol, de Isao Takahata (Túmulo dos VagalumesO Conto da Princesa Kaguya).

No Dissidência Pop conversamos sobre Roujin Z (1991), adaptado de mangá de Katsuhiro Otomo (Akira), que trabalhou nos scripts do filme dirigido por Hiroyuki Kitakubo (Blood: The Last VampireGolden Boy).

No É Só Um Desenho conversamos sobre Cleopatra (1970), de Osamu Tezuka (AstroboyBlack Jack, sério, muita coisa).

E aqui no Anime21 conversamos sobre Jin-Roh (1999). Leia abaixo o que foi que achamos desse filme, baseado em mangá de Mamoru Oshii (Ghost in the Shell), que supervisionou a direção de Hiroyuki Okiura (A Letter to Momo).

 

Fábio "Mexicano":
O que acharam de Jin-Roh: Eu Não Acredito Que Isso Não É Rotoscopia?

Movimento e aparência hiper-realistas, sem nenhuma distorção, aparente falta de quadros por segundo em algumas cenas (porque redesenhar muitos quadros por cima de um filme sai proporcionalmente mais caro), mas segundo a Wikipedia o diretor Hiroyuki Okiura diz que não foi rotoscopia. Está bem então. Rotoscopia ou não, é bastante único, e eu gostei, pessoalmente.

Outra curiosidade: Jin-Roh é a terceira parte de uma trilogia que adapta um mangá do Mamoru Oshii. Os dois filmes anteriores foram com atores reais. Isso explica a longa introdução, embora mesmo assim eu a tenha achado longa demais e talvez desnecessária. Mas acho que foi o único momento em que o filme falou muito, não é? Em Jin-Roh, o silêncio carrega muito mais informação e significado do que as palavras.

Sobre a história em si, que é o que importa, agora talvez vocês discordem bastante de mim porque vou sair interpretando livremente mesmo, ok?

Existem dois tipos de pessoas no mundo: as que vivem bem, e aquelas às custas de quem as primeiras vivem. Essa divisão pode se tornar mais notável em períodos de acelerada expansão econômica, e com certeza foi o caso do Japão de Jin-Roh (não sei sobre o Japão real, mas não duvido que tenha sido algo semelhante). Para manter a ordem social, garantir a continuidade do crescimento, entre outras coisas, existe a polícia e forças de segurança relacionadas. A função da polícia não é se opor à população, obviamente.

Mas em alguns casos algumas pessoas se levantam contra o próprio sistema. Eles deixam de ser bandidos normais e passa-se a chamá-los de terroristas. Porque eles são diferentes, também lida-se com eles de forma diferente: ao invés da polícia que protege, a polícia que mata. O filme em mais de um momento nota que não apenas há dois tipos de pessoas (não importa como sejam chamados cada um), mas diz que é impossível para elas se entenderem. Se a compreensão e a coexistência são impossíveis, resta apenas a guerra e o extermínio. Não há mais certo e errado, e que vença o mais forte.

Acompanhando Fuse, o filme nos faz flertar com a possibilidade de que seja possível romper essa barreira. Mas no final não era, não é? Ou pelo menos não foi possível para ele e Kei. Por outro lado, a sugestão de que há possibilidade, e a constatação de que no caso deles o que os impediu não foi a guerra entre essas e aquelas pessoas, mas uma disputa de poder dentro da própria elite do lado dominante, fazem com que o filme termine com um tom trágico sim, mas sem apagar todo traço de esperança.

Opiniões?

Vinícius Marino:
Eu estou aqui coçando a cabeça me perguntando onde o Fábio encontrou um panfleto cripto-marxista num filme sobre dissidências internas de um regime totalitário. Inspirado abertamente na Alemanha nazista, como indicam todos os figurinos, armaduras e armamentos. Mais do que isso, no conflito interno de um stormtrooper em seguir seus sentimentos ou se render à Banalidade do Mal. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Banalidade_do_mal)

Talvez tenha sido no longo e desnecessário prólogo? Serei sincero: eu brisei durante aquele introito. Não tenho paciência para longas exposições sobre cenários fictícios e pessoas que eu nem conheço. Se o filme achasse que essa informação era relevante, que inserisse ao longo do filme, em indícios nos seus cenários, diálogos, etc. Foi preguiçoso, e já me fez começar o longa de má vontade.

Sobre o anime em si (deixando elucubrações de lado): é um anime primoroso, mas cujas partes são mais fortes que o todo. Algumas tomadas (o massacre no esgoto, a execução final) possuem um poder visual inigualável. Os conflitos internos do Fuse são trabalhados com sensibilidade e honestidade.

Mas esses momentos nunca convergem a um triunfo maior. O enredo que os une é confuso e, a tempos, arrastado. A trama conspiracionista meio que cai por terra pela simples regra da eliminação: o elenco é tão pequeno que conseguimos adivinhar o próximo traíra só apontando aos que ainda não traíram.

Gato de Ulthar:
Estou com o Fábio na sua interpretação, se bem que é a própria interpretação dada pelo filme: “Existem dois tipos de pessoas no mundo: as que vivem bem, e aquelas às custas de quem as primeiras vivem. Essa divisão pode se tornar mais notável em períodos de acelerada expansão econômica, e com certeza foi o caso do Japão de Jin-Roh”. No filme fica claro que os conflitos entre manifestantes e polícia se originaram em virtude de uma busca pela expansão econômica em detrimento de política sociais, basta ver a longa introdução, que para mim não é um problema especialmente falando.

Está certo que o mundo de Jin-Roh se passa em um ponto da história alternativa do Japão, mais especialmente na década de 1950, diferentemente do nosso mundo “real”, ali a Alemanha ganhou a guerra, e aparentemente o Japão foi ocupado pela Alemanha (pelo menos foi o que pareceu, não pesquisei a fundo), mas essa ocupação durou bem pouco tempo, já que a história do filme se passa nos anos 1950, só restou certos aspectos da indumentária e armas.

Confesso que podia tirar todo esse arcabouço histórico fictício que o filme ainda faria sentido, de fato houve vários conflitos nos anos 1950 e seguintes com grupos de estudantes socialistas e outros grupos sociais, inclusive com a prática de terrorismo, e a mais notável terrorista nestas décadas foi uma mulher, Fusako Shigenobu. Assim sendo, o filme apenas realça o aspecto que a polícia pode tomar em ambientes de conflitos sociais, e isso se dá em qualquer tipo de governo, por mais democrático que possa ser, não consigo enxergar que os atos dos personagens em Jin-Roh seja sobre dissidências internas em um regime totalitário.

E a polícia do filme me lembrou as forças policiais de Taiwan:

 

 

No mais, gostei bastante do filme, e não o achei maçante em nenhum momento, terminou de forma trágica de uma maneira que não foi apelativa. Aprovado o filme.

Vinícius Marino:
Pode ser falta de sensibilidade minha, mas eu não vi como isso contribui ao conflito central do filme. Todo esse arcabouço ficou boiando em algum momento entre a introdução e uma das conversas entre o alto oficialato dos quartéis. Poderia ser qualquer conflito sob qualquer motivação e o cerne do filme continuaria o mesmo. O que me indica que se ele tem uma “mensagem” maior sobre teoria política (à la LOGH) ou ela é desnecessária ou é mal explorada.

Obviamente, poderia ser inclusive sobre divergências da polícia num estado democrático (por sinal, esse filme tem nome: Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora é Outro). Mas Oshii me deu stormtroopers nazistas, armados com Stg 44s. Você não faz isso com seu sistema fictício se não quer insinuar que ele seja totalitário.

(Embora os soldados em questão mais me tenham parecido o Brotherhood of Steel da série Fallout)

 

Fábio "Mexicano":
A trama principal acaba sendo sobre facções dentro do poder, mas elas só existem em primeiro lugar porque existe a resistência ao poder. Quero dizer, é provável que mesmo sem uma resistência haveria facções disputando o poder, mas não é esse filme que a gente assistiu. A Polícia da Capital foi criada para combater o Secto, e sua unidade de elite estava com sua existência ameaçada porque se considerava que o Secto já estava suficientemente enfraquecido para que as forças policiais normais, trabalhando junto com a Polícia da Capital, conseguissem dar conta do trabalho.

É tudo apenas pretexto? Provavelmente. Mas o pretexto precisa existir. É tudo feito em nome de combater um inimigo, combater e eliminar o Outro com o qual sequer é possível dialogar. O medo do Fuse era que a Kei fosse devorada pelos Lobos por se aproximar dele, mas quando ele descobriu que ela havia sido do Secto, apesar de amá-la, não conseguiu mais se fazer protegê-la. Ela virou o Outro, e ele foi o Lobo que a devorou.

Vinícius Marino:
Acho que meus comentários passaram uma imagem demasiada crítica do filme. Então deixe eu falar desde já: essa subtrama do Fuse com sua amada – a “chapéuzinho vermelha” desse mundo distópico – foi belissimamente executada. Oshii é um mestre da direção, e seu trabalho nessas sequências é primoroso.
Fábio "Mexicano":
Sem dúvida, essa história particular – que é “a história do filme”, ou pelo menos seu fio condutor – é muito bonita. Todo o resto empalidece diante dela.
Vinícius Marino:
Acho que o filme, como um todo, é uma perfeita ilustração do gosto (diria até militância) do Oshii por temáticas adultas. Ele já disse em várias entrevistas como lhe desagrada o estilo serelepe, “family friendly” do Studio Ghibli. Jin-Roh parece, nesse sentido, quase um anti-Ghibli, não só abordando temáticas espinhosas, mas da maneira mais visceral possível.

Eis um filme para que o sangue não apenas não é apelativo, como é primordialmente necessário.

Fábio "Mexicano":
E com traço realista (rotoscopia ou não).
Vinícius Marino:
Sem dúvida: note como as personagens inclusive parecem japonesas. E não esse visual caricato, inspirado na Era de Ouro da Disney, que marca a maioria dos animes.
Fábio "Mexicano":
Esse traço mais japonês não é bem novidade, embora seja raro em animes, mas a movimentação realista foi o que me fez acreditar que fosse rotoscopia. Depois fui pesquisar e oficialmente não foi, mas parece que nem todo mundo acredita nisso, LOL
Gato de Ulthar:
Pois é, a animação também me chamou muito a atenção, o realismo é digno de nota. E devo concordar, a relação do Fuse com a garota foi belíssima e finamente executada, queria ver mais relações dramáticas como essa!

E claro, foi super legal ver o Fuse metralhando todo mundo, ótima cena de ação.

Diego:
Chegando um pouco atrasado pra discussão porque, bem francamente, foi difícil sentar pra assistir isso aqui. Eu já tinha visto o filme uma vez, mas queria rever para a nossa discussão, e nessa minha rewatch eu confirmei o que já sabia: esse filme não é pra mim, nem de longe.

Acho que meu maior problema com Jin-Roh é que ele me soa como um filme vazio. Um filme que não realmente entrega qualquer coisa para além do puro “acontecer”, que eu termino com uma sensação de “hum… tá então, né”. Não é um filme sobre totalitarismo. Não é um filme sobre terrorismo. Não é um filme sobre a polícia. É um filme sobre duas facções de uma organização brigando, e meio que é isso aí. Coroado com um protagonista que é um cone, onde seu momento de maior expressividade – quando ele chora abraçado da “chapeuzinho” – me fez foi dar risada. Ah sim, e um final trágico. Afinal, por que não, não é? O filme já é escuro mesmo, bora lá matar a garota.

E não entendi por que vocês acharam que poderia ser rotoscopia. Essa possibilidade nem me passou pela cabeça 😃

Fábio "Mexicano":
Eu acho que o Fuse fez muita coisa. Ele não falou muita coisa mas fez muita coisa, dentro do que ele podia fazer, o que não era muito, de todo modo. O anime começa de verdade com ele fazendo (ou melhor, não fazendo) algo que colocou a história em movimento: ele não atirou na garota. E ele perguntou a ela por que fazia aquilo.
Vinícius Marino:
A “inação” do Fuse é, de fato, o ato mais significativo de todo o anime. E acho que o Diego está sendo injusto chamando ele de cone. Ele é um stormtrooper de um esquadrão da morte. Ele é treinado para ser um cone. E vive num Estado paranoico em que qualquer emoção em falso pode colocar ele na cadeia (ou num paredão de fuzilamento).

Também acho que seu dublador fez um trabalho impecável trazendo a dose certa de emoção nas cenas em que foi necessária. Vejam, por exemplo, seu primeiro encontro com a suposta “irmã” da vítima. Ambos estão batalhando para esconder seus sentimentos, mas você percebe a tensão transbordando de cada frase.

Mas também concordo com o Diego que o filme pareça vazio. Ele traz, como eu disse, toda uma bagagem política que simplesmente não aborda. O longa em si traz um conflito verossímil e um excelente retrato dos tormentos morais e psicológicos do Fuse, mas tudo é costurado a uma trama de conspiração que pareceu (na minha opinião) pouco interessante e confusa. É o tipo de enredo que poderia ser resolvido de forma muito mais simples, sem nenhuma perda para seu impacto dramático.

Contra o argumento do Fábio de que esse conteúdo filler é necessário para que a trama exista, quero levantar um contra-exemplo. Em Dunkirk (2017), todo o pano de fundo político cabe em uma frase: “O inimigo encurralou os ingleses e franceses até o mar”.

 

 

Só isso. Ele não explica o que é a guerra, porque ela existe, ou mesmo quem está lutando (“Nazistas” sequer ganham nome durante o filme todo). Se Dunkirk ganhasse o tratamento Jin-Roh, começaria com um powerpoint narrando a história desde a ascensão do Hitler em 1933. Teria ficado melhor? Duvido muito.

Fábio "Mexicano":
Ah, mas eu acho que é necessário algo. Não necessariamente no formato de Jin-Roh. Dunkirk tem algo, em um formato totalmente diferente. Talvez algo assim funcionasse em Jin-Roh (não tenho certeza que algo tão sintético daria conta em uma ficção, mas quem sabe). Talvez algo diferente e mais curto. Talvez algo diferente e mais longo. Só precisava de algo.
Gato de Ulthar:
Não consigo comparar o filme Dunkirk com Jin-Roh. Dunkirk é uma obra baseada em fatos reais, e todo mundo já está cansado de saber sobre Hitler e o escambau, já no caso de Jin-Roh, talvez uma introdução mais enxuta teria sido melhor, mas não retiro sua importância.
Diego:
Olha, esse elemento “ditatorial” (?) do filme é tão ignorado pelo próprio filme que eu honestamente me pergunto se a ausência dessa introdução faria qualquer diferença. Tem essa força policial lutando contra esse grupo terrorista, e eu sinto que o filme seria o exato mesmo com ou sem aqueles primeiros três minutos.
Fábio "Mexicano":
Eu realmente não entendi, mesmo com a indumentária nazista, que o Japão de Jin-Roh fosse um país autoritário. Outros animes tendem a retratar o conflito entre as forças de segurança e revolucionários no Japão nessa época de forma semelhante: como uma “guerra”, ainda que para a população geral a mensagem passada fosse a de que era apenas o tratamento policial normal. Claro que o filme é parte de uma trilogia adaptada de um mangá, é possível que o resto desenvolva mais isso.
Vinícius Marino:
As forças de segurança operam esquadrões da morte em que soldados (de máscara e armadura) chacinam civis com MG 42s. E você não acha que esse Estado seja autoritário? Ok, há imaginação pra tudo 😂
Fábio "Mexicano":
São terroristas, não civis. Vi quase isso em Young Black Jack. (digo, terroristas, não civis, sendo a justificativa dentro do universo, e que é compartilhada por outros animes que retratam a época de formas bastante diferentes)
Vinícius Marino:
Eles se vestem como civis, eles se escondem entre civis. Existem pessoas que acham que a polícia tem carta branca para fuzilar pessoas que pareçam bandidos. Elas se chamam “autoritárias”.
Fábio "Mexicano":
Sim, eu entendo. Mas não é particularmente diferente de outros animes que são mais fiéis à realidade histórica, até onde eu sei. Por isso não me pareceu que esse fosse um Japão tirânico – a não ser que você me diga que o Japão real, da época, era tirânico ou flertava com a tirania, no que eu poderia acreditar.
Vinícius Marino:
Pode não ser tirânico no sentido de não ser uma ditadura totalitária (eu vejo pra crer, mas whatever). Mas é tirânico da mesma forma que qualquer Estado que adota medidas de exceções de forma irrestrita contra seus cidadãos é. Poderia ser a Irlanda do Norte durante as Troubles, quando inocentes podiam ser presos sem acusações ou metralhados e listados postumamente como terroristas. Poderia ser o Rio de Janeiro durante a ocupação do Morro do Alemão, quando o BOPE tentou (sem sucesso, graças à cobertura da imprensa) fuzilar todo mundo que fugia da favela. Mas não é, sem sombra de dúvidas, uma democracia funcional que trata seus cidadãos de forma justa.

Também não vejo no que o “Japão real” tem a ver com qualquer coisa, já que vocês estão justificando a verborragia expositiva do anime sob a justificativa de que esse é um mundo fictício.

Fábio "Mexicano":
Ou os EUA macartista? Ok, concordo com isso e é como eu interpretava.
Vinícius Marino:
Macartismo não teve componente armado. Foi uma série de ações de intimidação e difamação que consistia em destruir a reputação de pessoas associando-as (verdadeiramente ou não) com o comunismo. É o mesmo modus operandi usado por justiceiros sociais de hoje em dia, desenterrando tweets comprometedores e pressionando empresas e governo para que seus alvos fossem ostracizados. Um paralelo mais apropriado, ainda nos EUA, seriam as ações de repressão a manifestações por direitos civis. Como os Levantes de Los Angeles em 1992, quando o espancamento arbitrário de um negro pela polícia culminou numa rebelião com 63 mortos.

Ou ainda caso notáveis de excesso policial, como o Cerco de Waco em 1993, quando mais de 70 pessoas (incluindo 25 crianças) morreram num impasse entre o FBI e uma seita apocalíptica.

Fábio "Mexicano":
Mas se não estamos falando de ditadura nominal, só estamos falando de níveis diferentes da mesma coisa. Usar força bruta do Estado é um nível acima de usar o aparelho do Estado para difamar, ameaçar e ostracizar. Inclusive, o Estado violento não pode prescindir do Estado que controla informações – e vemos isso no começo do anime, quando inventam uma desculpa para a explosão.
Vinícius Marino:
Esquadrões da morte estão num nível tão acima que é quase incomparável se você não estiver disposto a banalizar o valor da vida. Some a isso a indumentaria nazista e você tem de fazer um esforço para interpretar isso como um Estado não-policial.
Fábio "Mexicano":
Bom, acho que até dentro do anime estavam achando que isso era ir longe demais, né? É a trama política por trás da humana
Gato de Ulthar:
O caso é que analisando o filme por si só, não dá para chamar o governo de “estado totalitário”, mesmo os policiais usando armas “nazistas”, isso não diz praticamente nada sobre o governo. As forças em que o Fuse faz parte podem existir em qualquer país democrático ao redor do mundo em um estado de exceção.
Fábio "Mexicano":
Bom, me parece, pelo volume de discussão gerado, que talvez a ambientação tenha sido um pouco pesada demais? Ela sem dúvida é necessária, senão não teríamos uma tragédia, mas será que foi além do ponto?
Vinícius Marino:
Acho que a grande questão é que certas imagens têm um peso próprio. Se você traz stahlhlems e Stg 44s os espectadores imediatamente pensarão em “nazismo”. Talvez seria o caso de usar uma referência menos carregada para o character design. O próprio Oshii fez isso em Sky Crawlers, usando uniformes da Força aérea polonesa como inspiração para os suas personagens. (Isso é sério. Nos extras dos Blu Rays há um documentário mostrando sua pesquisa nas bases aéreas da Polônia)
Gato de Ulthar:
Falando da ambientação, concordo em parte com o Vinicius, talvez se tivessem usado armamentos genuinamente japoneses, mesmo que da época da 2ª Grande Guerra, a ligação ao totalitarismo teria sido mitigada. Afinal de contas tudo que o Vinicius citou se tornou um símbolo do nazismo, e como símbolo, atua até mesmo de um ponto de vista inconsciente na psique humana, quiçá conscientemente com as claras alusões.

Mas eu curti especialmente a ambientação decadente dos cenários, se vê bem que tudo ainda é um tanto caído, uma reminiscência da guerra. Visualmente achei o filme lindo.

Fábio "Mexicano":
Mas tem outra coisa, né? Eu tenho a impressão que o imaginário alemão/nazista não tem exatamente o mesmo significado para os japoneses, que foram aliados deles afinal. Em diversos animes há imaginário alemão, às vezes da época do nazismo mesmo, e absolutamente não quer dizer o que quer dizer para nós. Frequentemente são personagens simpáticos.
Gato de Ulthar:
Tem que ser levado em conta isso também, o filme foi feito primariamente para o público japonês. A impressão geral deles pode ser totalmente diversa da nossa.
Fábio "Mexicano":
É uma imagem de autoritarismo, de força desproporcional do Estado, sem dúvida, mas não tem necessariamente a carga dramaticamente negativa que tem para nós.
Diego:
O problema é que o anime deixa o seu universo tão pouco explorado que toda essa indumentária pode muito bem ser floreio inconsequente. E na prática o é mesmo, já que o anime nunca se preocupa em explorar qualquer pretenso autoritarismo por parte do governo.
Fábio "Mexicano":
Aí o problema é outro: Jin-Roh é a terceira parte (ao que parece, independente o bastante) de uma trilogia. E para completar a esquisitice, as duas partes anteriores são filmes com atores.
Diego:
Aí teria que ver o que “trilogia” significa. Continuidade narrativa? Histórias diferentes dentro de um mesmo universo? Há mesmo casos de trilogias “espirituais”, onde os filmes se ligam por tratarem de um mesmo tema, ainda que suas histórias sejam completamente diferentes (é o caso, por exemplo, da trilogia Animerama, da qual um dos filmes, Cleopatra, estamos discutindo em outro Café 😛)
Fábio "Mexicano":
Se entendi, os três filmes são adaptados de um mangá do Mamoru Oshii, e isso é tudo o que eu sei. Acho que tal mangá cobre décadas de história, desde a ocupação no pós-guerra, então as histórias podem ser mesmo razoavelmente estanques. Ainda assim, algo dependentes. É o motivo para a existência da longa introdução, de todo modo.

Enfim, vou tentar tirar essa discussão do meta 😛 Com uma pergunta que eu acredito que eu não deveria fazer, mas enfim. Pelo que entenderam do cenário, quem vocês acham que estava “certo”, governo ou rebeldes? Se governo, os à favor do fim dos Storm Troopers ou os contrários (incluindo aí a facção radical do Fuse)? Sei lá, vamos tentar discutir a posição moral de cada uma das partes envolvidas.

Diego:
Tinha alguém certo nessa bagunça toda?
Fábio "Mexicano":
Menos errado que seja 😛
Vinícius Marino:
Faço as palavras do Diego as minhas 😂

Jin-Roh é o típico caso de “black and black morality”. Ou estamos na frigideira ou pulamos direto no fogo.

O que eu considero uma virtude, na verdade. Não é toda série que tem a coragem de mostrar um cenário em que não teme nenhuma possibilidade de nos reconhecermos no bem. E precisamos, portanto, arriscar um julgamento entre males diferentes. Tal como pessoas de outros momentos históricos, sobretudo aquelas que viveram em regimes ditatoriais, tiveram de fazer.

Fábio "Mexicano":
Será por isso que torcemos tanto pelo casal trágico? Queremos tanto que fiquem juntos, que fujam, aceitamos imediatamente que ela o ama sim, mesmo que tenha começado com uma traição? Se todo o resto do mundo está errado, o amor sempre será certo.
Vinícius Marino:
Eu acho que é por aí mesmo. Eu me pergunto de quando em quando: se vivesse num regime fascista o que raios eu faria? Meus avós viveram (na Itália) e resolveram dar uma de João sem Braços. Priorizaram seu próprio bem em detrimento da lealdade ao regime. Para o bem ou para o mal, eles sobreviveram. Meu tio-avô, mais entusiasmado, morreu lutando na Rússia. Uma campanha idiota, que nunca daria em nada e que custou o próprio regime do Mussolini.

Fugir para o pessoal (uma relação amorosa, algo próprio nosso) é um ótimo referencial em tempos de loucura.

Diego:
Tenho absoluta certeza que se vivesse em um regime fascista eu ficaria quieto torcendo pra não morrer. Sirvo pra guerrilheiro não, nem de longe.
Fábio "Mexicano":
Na idade do Diego, eu daria uma resposta diferente 😃 Hoje concordo. Embora eu prefira a incerteza da resposta do Vinicius. A gente nunca sabe sem viver aquilo de verdade.
Diego:
Agora, uma coisa que gostaria de ter visto em Jin-Roh eram planos de ação mais tangíveis. Eu entendo que o terrorismo raramente é racional, mas explodir coisas até a polícia sumir não me parece o melhor plano de ação. Nem sair metralhando quando sua unidade está para ser desmantelada justamente por violência excessiva não ser mais necessária. Talvez seja nitpicking de minha parte, mas ninguém ali realmente parecia saber o que estava fazendo, o que só complica a questão da moralidade.
Fábio "Mexicano":
O chefe da coisa toda (ministro? esqueci) parecia ser o mais sensato, ou pelo menos o que tinha o melhor panorama da coisa toda – o que é esperado de alguém na sua posição. Mas acho que pessoas são irracionais de verdade então não acho que isso seja um defeito.
Gato de Ulthar:
Os terroristas não estavam contra a polícia, mas sim contra os rumos da política governamental. E explodir coisas é típico de atos terroristas, não necessariamente as explosões tem que matar policiais ou acarretar algum dano estrutural infalível, o real objetivo é psicológico, justamente causar choque com a ação.
Fábio "Mexicano":
Outra legal: ao final do filme, a Kei já havia há muito desistido da ideia de ser feliz com o Fuse, se é que em algum momento ela acreditou que isso pudesse mesmo ser possível. O único raio de luz dela deve ter sido quando o Fuse quase sugeriu que eles fugissem, não tanto porque ela acreditava ser possível, porque provavelmente não acreditava, mas porque queria acreditar que ele soubesse de algo que ela não sabia, e que isso fosse a chave para eles poderem fugir juntos. Ao fim e ao cabo, tudo o que ela queria era um suicídio duplo, o que é um tipo de tragédia romântica profundamente japonesa até onde eu sei.

E o Fuse certamente sabia disso. E ele a amava também. E poderia ter escolhido esse caminho no final. Por que acham que, mesmo claramente sofrendo, Fuse escolheu viver, o que nesse contexto é quase o mesmo que trair o amor da Kei?

Vinícius Marino:
Porque ele é um covarde?

Não me levem a mal, não quero ser cínico. Mas acho notável que o filme tenha começado com Fuse se recusando a tomar A Grande Decisão e terminado da mesma forma.

Mais interessante que essas duas “negações” tenham um sentido quase oposto. Na primeira, Fuse está a princípio desafiando suas ordens – e o próprio sistema que doutrina homens como ele a executar inimigos. Na segunda, “negar” é o equivalente a desistir. O sistema venceu, enfim.

Gato de Ulthar:
Além disso, as decisões que Fuse devia tomar tinham que ser feitas rápido, mas poxa vida, ambas eram questões de vida e morte, Fuse se deixou levar no começo como no final, por isso que o seu superior já havia sacado que ele não seria capaz de matar a garota.
Fábio "Mexicano":
A resposta do Vinicius é cruel, mas acho que é a verdade. Ele se recusou a matar não por pruridos morais – ele mesmo assumiu depois que pensou em atirar, sim. Ele teve foi medo. E é verossímil supor que no final ele só matou a Kei para “expiar” seu erro anterior.
Gato de Ulthar:
No fim das contas ele era um lobo mesmo, como o simbolismo usado no filme.
Diego:
Ele matou? Porque pra mim ficou implícito que o tiro veio daquele outro atirador lá no bunker ao longe.
Fábio "Mexicano":
Eu vi ele com uma pistola, mas sinceramente, não tinha como ele acertar só a garota, com uma Luger, daquela distância 😛 Mas bem, não, a minha impressão foi que ele atirou sim. Se ele não tivesse atirado, ele também teria sido morto. O chefe dele deixou isso claro.
Gato de Ulthar:
Mas é um filme… Eu também entendi que foi o outro cara que atirou já que o Fuse estava demorando demais. Não foi como se ele tivesse negado a atirar. Só estava enrolando demasiadamente.
Fábio "Mexicano":
Gente, foi o Fuse que atirou. Olha a fumaça:

 

 

E a Kei? Há muito tempo ela não tinha mais agência em sua própria vida. Desde que foi capturada pelo menos, mas talvez ela se sentisse assim desde antes até – ajudaria a explicar porque ela aceitou tão fácil mesmo sabendo que iria morrer. Ela não queria se suicidar – talvez por covardia? Ou talvez seja mais complicado. Ela diz que encontrou conforto em obedecer as ordens da polícia, e isso pode servir como uma espécie de razão para viver, de significado para a vida. Não tenho certeza. Mas o fato é que, o que quer que fosse, mudou quando ela se apaixonou pelo Fuse: agora era aquela paixão a sua razão para viver, ainda que ela soubesse que era um amor frágil, falso, e impossível.

É em situações de amor impossível que a literatura japonesa evoca o shinjuu – o suicídio duplo. Fosse na emboscada, fossa na fuga que o Fuse quase propôs, fosse no esgoto ou no terreno baldio. A Kei ansiava pela morte ao lado do Fuse. O suicídio duplo não é uma fuga ou um ato covarde, mas um mero reconhecimento de que seu amor é impossível por causa de fatores sociais externos que estão além de seu controle. Ao invés de apenas desistir, o que seria sim uma fuga e talvez pudesse ser chamado de covarde, o casal que realiza o shinjuu toma a única atitude corajosa que pode tomar diante daquela situação: renuncia à própria vida, na esperança de que essa virtude os permitam reencarnar juntos de novo, dessa vez em um mundo que não os rejeite. Ok, a Kei não pensou tão longe assim, mas ela certamente queria ser especial para alguém, e não apenas viver sua vida sem sentido e morrer esquecida. Ela teve a opção de fugir, o Fuse perguntou a ela se não pretendia fugir após o telefonema que ele deu depois deles escaparem da emboscada.

Ela, ao contrário do Fuse, seria uma pessoa corajosa? O que acham da Kei em geral, e em particular da escolha final dela?

Diego:
Sinceramente, não sei o que pensar dela. É uma personagem que me pareceu até mais carregada pelo roteiro do que o Fuse, mas esse era meio que o ponto da personagem mesmo, e apesar disso eu sinto que o filme fez um bom trabalho de caracterizá-la, melhor até do que o do protagonista.

Não acho que a chamaria de corajosa, mas talvez de perdida. Primeiro em um grupo terrorista, agora pau mandado da polícia que ela um dia tentou exterminar (legalmente, claro, pelo que entendi o que os terroristas querem é o fim dessa força tarefa especial violenta). Ela parece aquele tipo de pessoa que já passou por tanta coisa que nem sabe mais o que está fazendo ou o que deveria fazer.

Vinícius Marino:
Ela parece bastante ciente de que está caminhando com lobos, a despeito do anime, com suas referências à Chapéuzinho Vermelho, dar a entender que está fora de seu elemento. Eu vejo nela aquela esperança resignada de quem sabe que vive numa corda bamba. A polícia de um Estado tirânico não é uma aliada confiável; uma célula terrorista muito menos. Ela deve ter vivido a vida toda explorando as poucas oportunidades que lhe surgem, fazendo apostas a cada instante para maximizar suas chances de sobreviver.
Gato de Ulthar:
Todos os personagens foram carregados pelo destino, eu gostei da melancolia estampada no rosto da Kei, um desejo profundo de levar uma vida longe daquilo tudo, mas que desvanece em virtude da resignação do seu destino. Ela, juntamento com o Fuse, fizeram uma casal que realmente me tocou.
Fábio "Mexicano":
Ela é tão nova mas às vezes parece tão velha, né? O que um mundo opressivo não nos causa. Concordo com o Vinicius: ela está ciente do que está fazendo e com quem está fazendo o tempo todo. Ela sabe que deixou os terroristas mas continua sendo a Chapeuzinho Vermelho da história.

Acham que o filme no final das contas tem alguma mensagem? Se tiver, eu arriscaria algo como … sendo o protagonista o Fuse, contando a história na maior parte do tempo pelos olhos dele, o que Jin-Roh nos diz é que uma vida agarrada à convicções não vale à pena nem mesmo (ou talvez especialmente) quando o mundo cobra de você um posicionamento o tempo todo. Por conta disso ele parecia estar sempre menos do que vivo. Foi usado, manipulado, zombado. E quando encontrou algo importante de verdade não pôde manter para si.

Diego:
Não se apaixone pela irmã de uma terrorista suicida? 😛 Mas brincadeiras de lado, não vejo nenhuma mensagem em específico em Jin-Roh, exceto talvez algo como “life sucks, i gess”
Vinícius Marino:
“Quem nada com tubarões cedo ou tarde será mordido”. Ou com lobos, nesse caso.
Gato de Ulthar:
Acho que a principal mensagem seja que uma vida devotada a uma causa nem sempre é a mais feliz.
Fábio "Mexicano":
Perfeito.

Muito obrigado a todos, encerro por aqui essa sessão do Café com Anime, e agora voltemos à nossa programação normal. Espero que todos tenham se divertido e se entretido como eu, e espero que os leitores tenham gostado desse conteúdo especial. Até breve! ☺️

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