Aprender história com animes
Bom dia!
É possível aprender com animes e mangás? Certamente sim. É possível aprender com qualquer produto cultural, por mais popular e comercial que possa ser. O que não dá é para aprender só com obras produzidas para entretenimento antes de qualquer outra coisa, naturalmente.
Aficionados por história podem partir de uma obra qualquer e pesquisar sobre o período e lugar histórico, bem como personalidades e eventos mencionados. É o que normalmente eu faço.
Outra forma de usar animes para aprender é um professor, alguém que já sabe do conteúdo, usar uma obra como material de apoio para seus alunos para introduzir a matéria a ser passada.
É claro que isso não se resume à história, e há no mercado uma coleção de mangás paradidáticos que ensinam de tudo que não me deixa mentir. Mas meu foco nesse artigo é história, porque eu gosto de história.
Sempre existe a opção de apenas devorarmos os livros. Mas por diversas razões, o apelo do entretenimento pode ser preferível à tarefa de memorização de apostilas.
Uma das razões para isso talvez seja o fato de só uma obra artística conseguir transmitir emoção. Emoção em si não ensina, mas desperta interesse e, acredito, nos coloca em um estado mental mais propício ao aprendizado.
Aqueles personagens que assistimos na tela, o que dizem e o que fazem também servem de mnemônicos fáceis de decorar.
Uma distinção que eu faço, quando lido com animes históricos (ou outras mídias narrativas do mesmo gênero), é entre ficção histórica e história alternativa.
De cara, que se deixe claro que existem obras biográficas, que narram os fatos da vida de uma pessoa da forma mais fiel possível de acordo com as possibilidades e o conhecimento dos responsáveis à época em que foram produzidas. Existem animes assim também, ainda que sejam raros. Não é a eles que me refiro aqui.
Ficção histórica, da forma como eu defino, é um enredo que se atém aos grandes acontecimentos históricos da época em que se passa. Começa e termina exatamente como é na história real, até onde sabemos, e não faz mudanças drásticas nos fatos e personagens mais relevantes. Mas pode adicionar personagens fictícios, elementos fictícios ou fantásticos, ou conter tramas paralelas fictícias.
História paralela, por outro lado, e também de acordo com a forma como eu defino, é quando os fatos narrados pela ficção não correspondem exatamente aos fatos históricos reais. Com efeito, podem divergir bastante. Mas são baseados em fatos históricos reais. São um “e se”.
Esses dois são os tipos mais comuns de animes históricos, seguidos depois pelas histórias de época, que não contam histórias reais, mas se passam em períodos históricos reais que retratam com razoável fidelidade, sendo interessantes por isso.
Não é só a história do Japão que animes contam, embora eu pretenda me concentrar nela. A título de exemplo e curiosidade, aqui vai alguns animes históricos recomendados que não são sobre o Japão:
Kingdom conta a história da unificação chinesa, durante o Período dos Estados Combatentes. Vários de seus personagens, incluindo seu protagonista, são personagens reais da época. O anime tem duas temporadas e é baseado em um mangá que continua em andamento – a China ainda não foi unificada, pois!
Vinland Saga é um mangá com anime marcado para estrear esse ano. Ele conta tanto uma parte da história da Invasão Viking da Inglaterra, quanto a tentativa de colonização da América do Norte pelos vikings. Também ainda está em andamento.
Rosa de Versalhes é um mangá e um anime, completos, sobre a Revolução Francesa. Sua protagonista, Oscar de Jarjayes, é uma personagem fictícia, mas quase todos os demais, bem como a maioria dos fatos narrados, são baseados na história real.
Há animes de época também, como Emma, que se passa na Inglaterra vitoriana, e Ikoku Meiro no Croisée, que se passa na Paris do século 19. Por fim, há muitos animes de história alternativa que se passam no teatro europeu da Segunda Guerra Mundial que, embora contenham histórias completamente fictícias, possuem muitos elementos inspirados por fatos e personagens reais, como Youjo Senki e Shuumatsu no Izetta.
Mas o foco aqui é a história do Japão, então história do Japão. Isso é quase uma lista, sem ser na prática um artigo de lista. Considere-o uma referência. Vou seguir ordem cronológica.
Período Heian e Kamakura
Angolmois se passa no começo do período Kamakura mas faz diversas referências à Guerra Genpei, que pôs fim ao Período Heian. Com efeito, na época o primeiro xogunato da história do Japão ainda estava assumindo forma.
A história de Angolmois em si se passa durante a Primeira Invasão Mongol do Japão, e enxergar esse período da história japonesa à luz de tamanha ameaça externa, e como a nova ordem eventualmente se organizaria para repelir os estrangeiros, é muito interessante. É mangá e anime. O anime conta apenas a Invasão de Tsushima, o primeiro passo da guerra, mas o mangá continua em andamento.
Período Sengoku
Após o Xogunato Kamakura se seguiu o Muromachi, e esse se enfraqueceu de tal forma em seus estertores que o Japão foi engolfado por uma série de guerras civis que durariam pouco mais de um século no total, até a reunificação sob Nobunaga, Toyotomi e, finalmente Tokugawa, que estabeleceu o terceiro xogunato. Esse período ficou conhecido como Sengoku, que significa Estados Combatentes e é emprestado diretamente da unificação chinesa, aquela contada em Kingdom.
Há muitos animes que se passam durante essa época, aliás, procure qualquer coisa com Nobuna, Oda ou Nobunaga no título, e terá um exemplo. A maioria deles porém se concentra na história dos grandes generais, os transformando em heróis e colocando um dado importante da realidade em segundo plano: o sofrimento do povo japonês. Não escrevo isso por retórica, mas porque ele é de fato relevante para os desdobramentos da época. Cansados de guerras, camponeses e pequenos samurais se rebelaram diversas vezes. Chegaram a governar, com sucesso, algumas províncias.
Dororo se passa durante essa época e é contado exatamente do ponto de vista do pobre coitado, do que pode pouco, de quem tem pouco poder. Hyakkimaru foi vendido pelo pai como sacrifício para demônios, para que seu domínio prosperasse e ele pudesse se tornar poderoso. Os demônios devoraram partes de seu corpo, e o protagonista depois de crescido parte em uma jornada para recuperar sua humanidade.
Em Dororo vemos um elemento comum em animes que se passam no Período Sengoku: o uso do sobrenatural. É uma forma, digamos, poética, de retratar quão terrível era viver nessa época. InuYasha se passa durante o Período Sengoku também, embora ele revele bem menos sobre a época do que Dororo.
Bakumatsu
O Bakumatsu é o período de transição entre o fim do Xogunato Tokugawa e o começo do Período Meiji. A Restauração Meiji ocorre durante ele, e com ela o fim do poder do xogum e a transferência de seus poderes para o imperador. É claro que ocorreram várias guerras civis durante ele também, e além disso foi uma época marcada por intervenções estrangeiras. Também há muitos animes sobre essa época e eles também tendem a glorificar os personagens históricos de então.
Começo indicando o interessante anime biográfico Hijikata Toshizou: Shiro no Kiseki, que conta a história de um dos mais importantes samurais da época, Hijikata Toshizou. Ele lutou pelo xogunato, e depois que esse caiu, tentou criar uma república independente em Hokkaido.
Samurai X, ou Rurouni Kenshin, é outro bem famoso. Tecnicamente ele já se passa após o fim do Bakumatsu, mas seu personagem principal, Kenshin, é uma cria dessa época, bem como vários de seus inimigos. É como se politicamente os poderosos já tivessem se resolvido, mas ainda houvesse muitos assuntos pendentes nos escalões inferiores da sociedade.
Samurai Champloo se passa durante essa época também, sendo mais uma história de época, já que não toma parte em nenhum dos grandes acontecimentos. Ele retrata razoavelmente bem a sociedade japonesa de então, seus conflitos, sua organização.
Período Meiji, Japão imperial e contemporâneo
Golden Kamuy é um mangá e anime que se passa durante o Período Meiji, após a Guerra Russo-Japonesa, que é aliás de importância crucial para seu cenário e a quase totalidade de seus personagens, ex-veteranos da guerra. É também uma obra que retrata como era Hokkaido, a ilha mais ao norte das grandes ilhas japonesas, e os costumes do povo ainu, indígenas da região que foram assimilados pelos japoneses.
E não poderia ser diferente, há uma profusão de animes sobre a Segunda Guerra Mundial. Desses, eu recomendo os seguintes, todos filmes:
Túmulo dos Vagalumes, que retrata a realidade cruel de crianças japonesas em uma cidade alvo de bombardeios incendiários. Gen, Pés Descalços, baseado em mangá, que conta a história de Gen e sua família após o bombardeio atômico de Hiroshima. E Kono Sekai no Katasumi ni, de novo sobre as dificuldades de viver em período de guerra por causa das restrições e dos bombardeios, mas dessa vez da perspectiva de uma jovem adulta, recém-casada.
Para encerrar esse artigo de recomendações mais ou menos soltas, indico Shouwa Genroku Rakugo Shinjuu, que conta a história de um contador de histórias, um artista de rakugo, durante todo o Período Showa, que começa pouco antes da Segunda Guerra Mundial e termina com 1989. É uma história de época que retrata com sensibilidade as mudanças pelas quais o Japão passou durante essas décadas.
É isso aí. Prometo algo um pouco mais organizado a partir da semana que vem para essa coluna, e quem sabe um dia não publico um artigo mais interessante sobre animes históricos?
Kondou-san
Que artigo bom, me identifiquei muito com ele.
Como fã de história, consumidor compulsivo de tudo o que seja livros de história, filmes históricos, documentários afins, não podia concordar mais com o teu segundo parágrafo.
Pessoalmente gosto mais de ler livros de história, desde dos manuais escolares aos romances históricos, mas admito que que ver documentários e animes com temática histórica também é muito bom (aprendi tanto com animes históricos).
Passando para as recomendações, até hoje não vi Kingdom, o facto da história se passar na China me afasta do anime. Vinlad Saga li um pouco do mangá e estou ansioso pelo anime. A Rosa de Versalhes, tanto o mangá como o anime são excelentes, esta obra foi a única que me fez interessar pela história da França.
O anime de Emma, até hoje é dos melhores josei que já vi, além que é único anime a representar tão bem a Era Vitoriana.
Agora a parte da história do Japão, as referências estão excelentes, teve uma que me deixou super feliz, mas já chego a esse ponto.
No Período Heian e Kamakura além de Angolmois dava para colocar Uta Koi (mesmo este sendo uns momentos fora do seu contexto histórico) e Gengi Monogatari (neste não posso opinar, só vi um episódio).
A escolha para o Período Sengoku foi certeira como uma flecha, Dororo até ao momento está a ser excelente, em especial na demonstração do sofrimento que a época em questão trouxe consigo.
Agora o Período Bakumatsu, o período que mais gosto e admiro da história do Japão, fiquei super feliz pela referência ao anime biográfico de Hijikata Toshizou Shiro no Kiseki, o único anime que em meia hora apresenta a vida de um dos maiores samurai do seu tempo.
Rurouni Kenhin, o único shounen que guardo no coração, anime bom e história excelente. O mangá dele é nota 10 e ainda se tem os ova de Rurouni Kenshin Tsuioku-Hen, neste mostra o Kenshin nos seus dias de carrasco para as forças pró-Imperador.
Samurai Champloo tenho que ver um dia.
Por fim, o Período Meiji, Japão Imperial e contemporâneo, a referência ao Cemitério dos Pirilampos e Gen Pés Descalços foi certeira, ambos são filmes muito bons e tocantes ao mesmo tempo. Kono Sekai no Katasumi-ni, este ligeiramente mais leve se comparado aos dois filmes que citei acima, mas tão realista quanto.
Shouwa Genroku Rakugo Shinjuu é um dos melhores animes históricos que já vi, ficará na minha memória para sempre.
Que venha o dia em que publicarás outro artigo sobres animes históricos, artigos deste tipo são excelentes.
Fábio "Mexicano" Godoy
Olá Kondou, tudo certinho?
Eu sabia que você iria adorar esse artigo. Foi quase um míssil teleguiado, acredito 🙂
Contudo foi bastante raso. Realmente quero escrever mais e melhor sobre o tema, e um dia eu vou. Não assisti todos os animes que citei, infelizmente, mas pesquisei o suficiente para saber que seriam boas indicações.
Em particular, se me permite uma só indicação, assista Kingdom. A China é para o extremo oriente o que Roma é para o ocidente, afinal. Entender a história eurasiática como uma tensão indireta entre esses polos distantes é uma forma bastante satisfatória de estudar o básico da história da maior parte da população mundial.
E note como essa dicotomia se mantém até hoje, só que com o avanço das comunicações e transportes é de forma bem direta mesmo.
Obrigado pela visita e pelo comentário!