Bom dia!

Essa é o primeiro anime da temporada que assisti, mas não se deixe levar pelo meu desânimo e assista mais animes e leia os artigos de primeiras impressões dos meus camaradas, que estão saindo há dias!

Dororo é adaptação de um mangá de Osamu Tezuka. O vejo como mais um de uma série de adaptações ou remakes recentes do dito “Deus do Mangá”, como Metrópolis, filme anime de 2001 que adapta o primeiro mangá do autor, passando por Pluto, mangá spin-off de Astroboy publicado por Naoki Urasawa entre 2003 e 2009 (e que está com projeto anime anunciado desde 2017, mas sem notícias desde então), até animes recentes como Young Black Jack (2015, baseado em mangá spin-off de Black Jack publicado por Yoshiaki Tabata e Yuugo Okuma desde 2011) e Atom: The Beginning (outro spin-off de Astroboy, baseado em mangá de Masami Yuuki, Tetsurou Kasahara, e Makoto Tezuka). Ufa!

Ao contrário de todos esses citados acima, Dororo não é um spin-off, embora não seja exatamente fiel ao original. Minto: quase todos. Metrópolis também não é spin-off, e é o mesmo caso de Dororo: um remake com modificações. A primeira mudança notável é que o número de demônios que o protagonista irá caçar foi reduzido de 48 para 12. Isso significa que provavelmente teremos um final definitivo no anime, e provavelmente diferente do mangá.

Dororo é uma história sobre youkais e demônios e publicada entre 1967 e 1968, tendo apenas 4 volumes. Uma curiosidade relevante é que isso faz dele contemporâneo de Gegege no Kitarou, de Shigeru Mizuki e publicada entre 1965 e 1986 (durou bem mais), considerada uma referência em mangás sobre youkais.

Muito mais sombrio, porém, com moralidade cinzenta, Dororo não poderia ser mais diferente de Kitarou.

A história de Dororo se passa durante o Período Sengoku da história do Japão, uma era de caos. O Xogunato Muromachi se enfraqueceu em seu último século de poder e rebeliões se tornaram comuns. A Guerra de Onin (1467-1477) marca o começo do Período Sengoku, o Xogunato Muromachi se manteria no poder por um século a mais, caindo em 1573, e o Japão só voltaria a ser pacificado após o fim do Cerco de Osaka (1614-1615), com o Xogunato Tokugawa, estabelecido em 1603, consolidando o poder após derrotar definitivamente o Clã Toyotomi.

Foi uma época tão violenta, o desespero, a fome, as doenças, guerras e mortes tão comuns, que acabou se construindo uma aura mística em torno dele, e com efeito histórias sobre youkais são com frequência localizadas no Período Sengoku. InuYasha é um caso famoso dessas histórias.

Se rebeliões e guerras já aconteciam por toda parte no Japão, a então Província de Kaga (equivalente hoje ao sul da Província de Ishikawa) era uma das mais especialmente violentas. Após o lorde local ter tomado parte na Guerra de Onin, a província ainda passou pela Rebelião de Kaga em 1487, depois outra guerra civil em 1531, e em 1580 Oda Nobunaga liderou campanhas que tomaram o controle da província.

O que as guerras em Kaga tinham de especial (e que não era tão especial assim, aconteceu em outras províncias também, mas não todas e não com o sucesso de Kaga) é que foram realizadas pelos camponeses, monges budistas (da seita da Verdadeira Terra Pura) e pequenos donos de terra: os jizamurai.

Daigo Kagemitsu, personagem de Dororo, é um desses pequenos senhores locais e a história se passa em Kaga. E ele quer poder.

 

Um monge reza pelas almas dos mortos em um campo de batalha. Acima dele, os abutres

 

Para isso, Kagemitsu faz um pacto com os 12 demônios: suas terras são constantemente afligidas pela fome e por doenças, e com isso ele não consegue prosperar e aumentar seu poder e prestígio. Eu não sei se foi intencional, mas Dororo me fez acreditar por alguns instantes que ele estivesse preocupado com o seu povo, pela sua escolha de palavras e a ordem das frases. Que nada.

Nem com seu povo, nem com seu filho. No pacto que fez, permitiu que os demônios lhe tomassem qualquer coisa desde que tornassem sua terra próspera. Eles tomaram braços e pernas, nariz, olhos e orelhas, e até mesmo a pele de seu filho primogênito. Ao ver o bebê desfigurado, embora ainda vivo, Kagemitsu regojizou: o pacto foi selado.

Esse bebê deveria ter morrido, e pactos diabólicos ou não, o anime revela, através de uma fala da parteira, que natimortos ou nascimentos de crianças com graves deficiências era comum: ela disse que deveria estar “acostumada” com isso. O bebê insistia em viver, porém.

Fica subentendido que essa força de vontade é uma dádiva do próprio Buda, que sacrificou uma estátua sua – talvez o bebê devesse ter perdido a cabeça também? A parteira escolhe então deixar que o destino decida a sorte do bebê.

Ele acaba sendo criado por alguém (o monge cego caçador de youkais? o médico altruísta que constrói próteses?) e, 16 anos depois, está caçando os 12 demônios para reaver as partes perdidas de seu corpo, tendo recebido o nome de Hyakkimaru.

 

Hyakkimaru, 16 anos, quase todo seu corpo é próteses

 

O busca pelo corpo não é senão a busca pela própria humanidade, que lhe foi negada pelo pai ganancioso. O pai foi marcado por demônios, provavelmente se tornando ele próprio um demônio em forma humana (nem que seja apenas metaforicamente), à custa de seu filho se tornar um monstro, uma aberração.

É uma busca que não se negaria a ninguém o direito. Porém, há pelo menos uma parte de si que ele jamais irá recuperar: sua infância. Embora fosse hediondo, sua mãe ainda o amava e desejava cuidar dele. Seu pai negou isso a ambos, e mesmo que venham a se reencontrar e se reconhecer, nada pode compensar pelos anos perdidos, os mais importantes para nosso desenvolvimento e aqueles em que mais precisamos de uma mãe e um pai.

Se a busca de Hyakkimaru é de cara fadada a ser incompleta, mesmo que ele triunfe, há ainda um dilema moral em potencial: os demônios que tomaram partes de seu corpo são os mesmos que mantém a prosperidade nas terras de Kagemitsu.

 

Essa ponte em ruínas logo na saída da vila não é exatamente o que se espera de um local próspero

 

Ok, talvez com tantas guerras e demônios por aí o lugar não pareça exatamente a terra da prosperidade, mas pelo menos não há mais fome e peste. A alternativa seria haver guerras, demônios, fome e peste. Entende aonde eu quero chegar?

Não se sabe ainda se Hyakkimaru sabe disso ou se vai descobrir em algum momento, mas como eu mencionei, é um dilema moral potencial. Como escrito acima, ninguém pode lhe negar o direito de buscar restaurar sua própria humanidade, mas em seu lugar, que escolha você faria se soubesse que a maioria das pessoas ao seu redor iria morrer de fome ou doenças caso levasse sua jornada às últimas consequências?

 

Tahoumaru, irmão de Hyakkimaru

 

Tem mais: Hyakkimaru tem um irmão, quase de sua idade. Eles provavelmente irão se conhecer, mas em que circunstâncias isso se dará? Como filho de um jizamurai, o irmão de Hyakkimaru é um guerreiro também. Se os dois vierem a lutar, o que seria de sua mãe? Ela seria forçada a escolher um lado?

Seu pai, Kagemitsu, tendo feito um pacto com o demônio, com certeza não irá se furtar a usar todos os métodos que julgar necessários para impedir a busca de seu filho mais velho.

Em um mundo em que não há lado certo e lado errado (bom, Kagemitsu usou poder demoníaco, mas foi para reunir forçar para derrotar outros senhores da guerra tão ou mais vis do que ele), Hyakkimaru só quer resgatar para si algo que parece que todos perderam: a sua humanidade.

    • Fábio "Mexicano" Godoy

      Olá James, tudo certinho?

      Você assistiu o Dororo original, preto e branco?

      Tem 26 episódios, assisti o primeiro, estou pensando em assistir os dois em paralelo. Por um lado ele pareceu mais, er, “preto e branco” na questão do bem versus o mal. O novo Dororo, pelo menos nesse primeiro episódio, se esforçou para construir uma atmosfera de moralidade cinzenta, ainda que saibamos quem está “mais certo”. Por outro lado, o antigo é ligeiramente menos sobrenatural e coloca a culpa pelos males do mundo direto nos ombros dos seres humanos mesmo.

      Sim, claro, tem demônios nos dois. Mas enquanto nesse novo Dororo é simplesmente o templo dos 12 demônios, no antigo é o templo das 48 estátuas de demônios, e para não sobrar dúvida, o monge diz com todas as letras que elas foram esculpidas por um humano. Ou seja: o mal em si pode até ser sobrenatural, mas foi o ser humano quem o criou em primeiro lugar.

      Enfim, de todo modo estou fazendo só uma análise primeiro episódio versus primeiro episódio, mas em termos de conteúdo eles são bastante parecidos então se o resto da série seguir o mesmo tom, deve apenas aprofundar essas diferenças.

      Enfim, o que acha?

      E obrigado pela visita e pelo comentário! 😃

  1. Depois de ver várias estreias, posso afirmar que nenhuma dela fez despertar a minha atenção como Dororo despertou.
    Posso estar a ser chato, afinal eu gosto e admiro o estúdio Mappa e gosto de história, mas não vi uma única estreia com a qualidade geral que Dororo teve (desde da sua animação, direcção, fotografia, ambientação e por ai vai).
    Outra coisa que tenho de destacar é a abertura de Dororo, não sou fã da música, mas a parte animada está nota 10, aquelas sequências e transições despertam o interesse de um morto. O encerramento, esse também dispensa grandes palavras, a arte usada nele é muito bom e a música essa é excelente.
    Passando mesmo à história do anime, o trailer (que vi em cima da hora) já me tinha convencido e me deixou na expectativa, mas quando vi o episódio, me senti plenamente recompensado do hype que eu tinha. Muito raramente vejo animes com sobrenatural, não porque não goste, mas não me interessam a todo o momento, mas com Dororo foi diferente, não sei se é por causa dele ser o do Ozamu Tesuka (de quem já vi alguns filmes de Hi no Tori), ou por por causa do esforço que a staff do Mappa colocou nele.
    A história do anime meio que me deixou a pensar, eu não sou crente em religião seja ela qual for, e nem acredito em demónios e coisas, mas no anime, na época em que se passa as crenças religiosas eram fortes, logo aquilo que aconteceu ao Hyakkimaru não é assim tão descabível, tal como não era raro senhores como o Daigo serem cheios de ganância e usarem métodos menos ortodoxos para terem o que querem.
    Podia dizer mal e mal do Daigo, mas por muito asqueroso que ele tenha sido, num ponto inicial ele parecia estar realmente preocupado com o seu povo, o sacrifício que ele ia fazer parecia altruísta (mesmo já dando para ver o lado mau do Daigo, ele matou um sacerdote a sangue frio), até ao momento do nascimento do seu primeiro filho varão. Nessa cena só consegui ter pena da mãe, ela não teve culpa da ganância do seu marido (ver a mãe a implorar pelo filho deformado foi tocante). A parte do ataque dos demónios foi muito boa, e o pormenor da estátua do Buda foi o que tornou essa cena muito boa (o próprio Buda ajudou a criança, isso me deixou a pensativo. Porquê que o Buda se daria ao trabalho de dar a sua bênção a uma criança cujo o futuro foi roubado sem pena, espero que o anime explique bem isso).
    O andarilho cego, esse em alguns segundos já me interessou, ele de certeza que terá um papel activo na história. Outro personagem que me interessou logo de cara foi o Jukai, o médico que se deu ao trabalho de colocar próteses nos mortos, atitudes destas eram raras na época do anime.
    O próprio Hyakkimaru na sua versão adulta (no Período Muromachi, todos os filhos de samurai eram considerados adultos aos 15 anos, em especial depois da cerimónia do Genpuku, onde o garoto passava a ser homem) me interessou, a forma como ele aguenta ter um corpo todo apoiado em próteses e como ele combate com as espadas embutidas nos braços.
    Por fim, o Dororo, não tem como não gostar daquele jeito dele, ladrão profissional, enérgico e mal criado, típico de crianças órfãs da época. Espero muito da iteração entre o Dororo e o Hyakkimaru, eles têm química (chega a ser engraçado quando o Dororo faz um monólogo).
    Outra coisa que tenho que elogiar é o som em geral e a dublagem, até se deram ao trabalho de arranjar uma criança para dar voz ao Dororo, coisa rara hoje em dia. O som das espadas e da movimentação das próteses do Hyakkimaru estão excelentes.
    Antes de terminar, muito obrigado pela pequena aula de história, foi um excelente enquadramento de informação com os acontecimentos do episódio. Agradeço também o teu parágrafo de introdução, vi coisas interessantes nele.
    Como sempre, mais um excelente artigo de primeiras impressões Fábio.

    • Fábio "Mexicano" Godoy

      Tudo certinho, Kondou?

      Aqui tá tudo errado. Eu já estava nos finalmentes de uma longa resposta quando apertei uma tecla errada e todo o meu comentário foi jogado no lixo. Amanhã eu tento responder de novo, ok? Desculpe.

      Obrigado pela visita e pelo comentário!

    • Fábio "Mexicano" Godoy

      Olá Titin, tudo certinho?

      Não, Hyakkimaru não morreu. Acredito que nos próximos episódios você conseguirá entender o significado daquela cena, mas se quiser spoiler é só te pedir que eu te conto o que aconteceu ali 😊

      Obrigado pela visita e pelo comentário!

  2. Olá! tudo bem? Aqui tá blz! Referente a comparação de não ter fome e peste apesar de ter demônios e guerra, não acho muito sensata, no mangá fica explícito que o pai biológico de Dororo aplica altas taxas ao povo, as terras férteis acabam que beneficiam exclusivamente a ele, o que aitomaautomatic se mostra como melhor escolha moral a jornada de seu primogênito e a recuperação de suas 48 partes, afinal ele junto com Dororo sempre ajudam as vilas apesar que no final e comum seus habitantes serem injustos com eles, ou seja apesar do discurso de Dororo ser ladrao os dois seguem uma jornada nobre.

    • Fábio "Mexicano" Godoy

      Olá Valmir, tudo certinho?

      Eu definitivamente não quis dizer que é “a mesma coisa”. O que eu quis dizer (e deixo mais claro ao longo dos artigos dos episódios, conforme repito o argumento quando cabível) é que era uma época difícil de se viver. Tão difícil que talvez não fosse possível para ninguém tomar uma decisão moralmente irrepreensível e sobreviver. Alguns sentem menos remorso do que outros, as decisões de alguns afetam mais pessoas do que outros, mas não é disso que estou falando. Dizer “quem é mais culpado” não serve muito propósito.

      Certamente os senhores da guerra eram os “mais culpados”, mas o Japão era tão fragmentado que é difícil condenar completamente a decisão de um senhor local, pequeno, mesmo que um terrível capaz de vender o próprio filho e tão ambicioso quanto possível.

      Quero dizer, insisto: a guerra eles já tinham. O pacto demoníaco aliviou a fome a e peste, independente da motivação do Daigo Kagemitsu. E se eles não fossem à guerra, a guerra iria até eles. Vimos isso no arco da Mio e das crianças, com o clã Sakai guerreando contra o Daigo. Era possível não ir à guerra? A opção era ficar parado enquanto seus vizinhos saqueavam seus territórios e matavam sua população. Aqueles soldados foram detestáveis, mas como afastar a suspeita bastante razoável de que fossem mesmo espiões? E se fossem, e fazer nada significasse perder a guerra? Lembrando que eles queriam encerrar aquele fronte logo justamente porque ele já se arrastava há muito tempo e isso estava custando muito para a população. Claro que a preocupação de Daigo e seus conselheiros provavelmente tinha mais a ver com evitar o risco de uma rebelião (comum na época) do que com o bem-estar do povo, mas o efeito final é o mesmo.

      Não é como se famílias de samurais estivessem livres dos dessabores da guerra também. O episódio do Tanosuke mostrou isso. Perder naquele fronte, que já estava sendo esticado por tempo demais, poderia significar a morte para as famílias daqueles samurais e soldados. E não havia tempo para jogos, para tentar usar a espionagem a seu favor (conceito que de todo modo o Japão não abraçou até a Segunda Guerra mundial; espionagem e contra-espionagem eram simplesmente “desonrosos”). Qual a solução? Qual a resposta terrível?

      De modo algum estou diminuindo ou perdoando os pecados de quem quer que seja, por favor, não entenda dessa forma. Muita gente fez muita coisa detestável nesses episódios todos, e eles são todos pessoas tão detestáveis quanto os seus atos.

      A única forma de livrar-se desse ciclo de violência e morte era se suicidando, como fez Jukai. Ou sendo capaz de morrer pelos outros – eles não necessariamente viverão muito ou melhor, mas viverão mais um dia. Tem alguns exemplos disso ao longo dos episódios também, e, como não sou leitor do mangá, me pergunto se não é o destino final do Hyakkimaru.

      Sobre o mangá, inclusive: bem, esse artigo é uma análise só do anime, e só de seu primeiro episódio. Pelo que me consta, esse anime está desviando bastante do material original e do anime anterior. Simplesmente não vem ao caso usá-los como sustentação de argumento, portanto, mas mesmo que viesse eu não faria isso porque nesse artigo escrevi apenas sobre esse episódio.

      Obrigado pela visita e pelo comentário 🙂

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