A importância do estúdio Ghibli e o seu significado para a animação contemporânea é algo indescritível, a força de seus filmes, as mensagens que eles transmitem, são lápides eternas na história da arte cinematográfica. Isao Takahata, Hayao Miyazaki e Toshio Suzuki fizeram história ao materializar no mundo o quão longe a delicadeza e a fantasia podem nos levar, sem nunca abandonar a seriedade e a maturidade frente aos temas humanos, as tragédias, tristezas, reflexões e a magia onírica que compõem o que entendemos por alma humana.

 

 

The Red Turtle é uma coprodução entre a França, a Bélgica e o Japão, sendo o estúdio Ghibli, por parte do Japão, àquele que tanto financia, como inspira e mesmo orienta o desenvolvimento desse projeto.

Novas gerações devem substituir as antigas, novas histórias devem ser contadas, novas cores devem preencher o coração e a arte que flui em nossas veias. The Red Turtle, cujo título em Francês é La Tortue Rouge, é um desses novos filmes que expandem e consolidam a fronteira que uma vez já foi explorada e aventurada pelos fundadores e demais membros do estúdio Ghibli, e não deixa de ser incrível a força que essa animação possui, amalgamando elementos tradicionalmente europeus junto à poética oriental japonesa como paleta de inspiração.

 

 

A história se adentra pela tempestade do mar revolto onde um homem sem nome naufraga em desespero. Seu barco despedaçado, sua vida poupada. Ilhado junto a uma pequena porção de terra, ele sobrevive precariamente através dos recursos locais.

O náufrago não possui nome, não possui sequer identidade ou características distintiva, é apenas um ser humano à deriva, perdido na imensidão desoladora de sua própria insignificância. Suas roupas são rústicas, o que denota uma possível interpretação de que estamos em face a um homem da era das navegações, mas é uma aposta arriscada querer localizar essa pessoa sob qualquer égide cultural. Sem língua em forma de idioma, sozinho e despido de contato humano, sua missão é buscar o horizonte, fugir de sua situação insuportável.

 

 

De jangada às ondas, praticamente desabastecida e perigosamente frágil frente ao violento oceano, ele tenta uma, duas, três vezes lançar sua sorte. Todas as vezes é impedido de prosseguir ao ser atacado por uma tartaruga vermelha, que mais do que impedi-lo, deseja protegê-lo. É suicídio se lançar ao mar sob tais circunstâncias.

 

 

Dias se passam, a tartaruga vermelha se esgueira pela praia, e em fúria, rancor e ódio desmedidos, o náufrago a agride impiedosamente, deixando-a em face a própria miséria, impotente e a beira da morte. Ele sente culpa e remorso por seus atos, por sua insana agressão, mas é tarde demais.

 

 

Como uma espécie de deus marinho generoso, a tartaruga vermelha, aparentemente morta, rompe sua casca, para desta nascer uma mulher. Uma companhia de forma semelhante, que visa amparar o destino do homem solitário e desolado. Como gesto de gratidão pelo arrependimento do mesmo, ela abandona a sua carapaça e escolhe ficar ao seu lado. Entendendo o sentimento da mesma, o náufrago, por sua vez, escolhe também abandonar a sua fuga, a sua frágil jangada, para aceitar o sentimento desse ser místico que o acolhe.

 

 

Em pacto e humanidade, eles cuidam um do outro, amam um ao outro, completam a existência singela e humilde de cada um ao viverem juntos em meio às regras naturais.

A mulher engravida e um pequeno herdeiro ilumina ainda mais a felicidade de ambos, dia após dia, mesmo sem expressar palavra alguma, eles acompanham o ciclo natural, coletando alimento, brincando e se divertindo junto ao bambuzal da ilha, ou mesmo investigando as praias, as rochas e as peculiaridades do local.

 

 

O jovem cresce, se fortalece e faz amizade com o império de tartarugas verdes que habitam a orla marítima que circunda a ilha. Ele é um ser híbrido, mas não fica claro se manifesta ou não as mesmas características de sua mãe.

Certo dia a calmaria do cotidiano é subitamente perturbada por uma catástrofe natural. Um maremoto devasta a ilha, quase extirpando a vida de nossos protagonistas que a habitam. O jovem desesperadamente se lança em busca ao pai, o qual foi arrastado pela força das ondas, e com a ajuda de seus amigos tartarugas verdes, consegue alcança-lo e traze-lo em segurança para os braços de sua mãe.

 

 

O tempo passa, o jovem se torna um adulto e sente-se impelido a desbravar o mundo. Seus pais entendem o seu ímpeto e amparam a sua decisão. Ele deixa a morada familiar para nunca mais voltar.

Por toda uma vida e dentre um sentimento constante, o náufrago e a tartaruga vermelha, em forma de mulher, vivem juntos. Eles envelhecem, eles se despedem do cosmos e um do outro. Um fim adequado para uma vida simples, porém perfeita.

 

 

The Red Turtle é um filme tocante, humilde e digno de contemplação. Ele flui sem nem nos darmos conta, e quando percebemos, ele se encerra. Os elementos técnicos são precisos, adequados e ricos, a animação cumpre àquilo que promete, transmite a mensagem e a história sem um tropeço sequer, ainda mais por ser um enredo sem qualquer ambição real, mas sim com o intuito de nos enveredar por entre um conto e uma vida, uma fábula mítica narrada visualmente e sentimentalmente, pois é inevitável não nos afetarmos e simpatizarmos com a situação do afobado e angustiado náufrago, sua compreensiva e protetora companheira, ou mesmo com seu enérgico e aventureiro filho. Uma obra delicada que abre as portas a uma nova geração de sonhadores, herdeiros dos mestres, os quais devem amadurecer para se tornarem os próximos mestres, e assim guiar uma nova geração que propague novos sonhos cinematográficos.

Hiperlink rotineiro que direciona ao vídeo onde converso um pouco mais sobre o filme!

 

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