Para essa semana lhes trago a resenha do inefável OVA “La Maison em Petits Cubes”, de Kunio Kato, lançado em 2008. “A Casa em Cubinhos”, como pode ser traduzido em português, não é uma animação infantil como o seu título pode sugerir, na verdade ela retrata exatamente a coisa menos infantil possível em nosso entendimento humano cultural, o inevitável e obliterante passar do tempo, a transformação, o dissolver de qualquer ingenuidade perante a decadência do presente que consome o passado para, a partir dele, se manifestar.

 

 

A animação é composta de doze minutos premiados pelo Oscar de melhor curta de animação de 2009, mas isso não é realmente importante. Ela nos conta a história de um senhor cuja situação é a mais inusitada e a mais empática que poderíamos conceber. Assim como construímos a nossa vida sobre o nosso passado, sobre todas as consequências, relações, interconexões e contextos aos quais estamos indissociavelmente amarrados, esse senhor, ou melhor, essa animação, nos mostra e ilustra exatamente a mesma coisa.

 

 

Os anos passam, e com eles a vida passa, os pertences afundam junto às memórias e materiais que não mais compõem aquilo com o que lidamos diariamente. Para esse senhor em especial, essa situação se desenvolve objetivamente. O nível da água, provavelmente água do mar, sobe a cada ano, e nunca para de subir, assim como nunca paramos de envelhecer, assim como o mundo nunca para de se transformar. A casa, o lugar ao qual esse senhor pertence, paulatinamente é inundada pela mudança, forçando-o a se adaptar e a elevar sua morada; ele constrói sobre a base anterior o presente e o momento atual, ele resgata o que pode resgatar, e abandona o que precisa abandonar.

 

 

Com o passar dos anos, depois de sobreviver a todos os desafios do ambiente, ele se vê muito velho, prestes a ser consumido pelo implacável decreto da morte. Mas mesmo perto de seu fim, ele precisa viver, precisa continuar a construir, a apresentar ao presente a sua história no presente, mesmo que o passado tenha sido inundado e ficado para trás. A sua missão é elevar a sua vida, não se submeter ao ambiente, mas sim lutar contra este para conquistar aquilo que ambiciona. Seria muito fácil morar em um barco, ou mesmo abandonar a sua história e o seu lar. O que esse senhor escolhe é lutar contra, e até, o fatídico dia em que toda a sua luta será soterrada pela insignificância da existência.

 

 

Ele carrega às costas o seu fútil objetivo de continuar onde está. Quando se depara com o passado cobrando o seu preço, com o nível da água se elevando e submergindo a sua realidade, ele recomeça, um tijolo por vez, ele se reconstrói, ele não abandona jamais o seu amor pelo lugar que lhe pertence, e ao qual pertence, por direito.

 

 

Cada andar de seu passado, agora inundado, mas ainda não esquecido, sustenta o seu presente atual, a sua fibra que se apresenta composta do material mais resistente que existe, a memória. Ele se lembra, ele ama todos os andares que deixou para trás, ele aproveitou todos os momentos que o elevaram a sua atual situação. Cada momento de sua vida, sua infância, o primeiro contato com o amor de sua vida, sua futura esposa, a construção conjunta de seu lar, a reconstrução conjunta de seu lar inúmeras e quantas vezes fossem necessárias. O nascimento de sua filha, a criação e a posterior liberdade concedida a está ao se casar, e ainda mais, o momento em que ela lhe presenteia com os seus netos, com as novas vidas que devem carregar a história da família.

 

 

Muitas outras casas ao redor, como impérios particulares, sucumbiram à força invencível do meio, e ele mesmo em breve será arrastado para o fundo do mar. A velhice acometeu e arrastou a sua esposa para a calmaria da morte, mas sua vida ainda brilha em seu luto, brilha nas paredes, nas fotos, nas lembranças e nos gestos. Comemorar com um brinde à riqueza e à felicidade junto a uma humilde refeição, é o ponto mais eterno de um presente efêmero. O cachimbo preferido, ou mesmo a mobília atual, cabe a este senhor mergulhar não apenas no passado que sustenta toda a sua existência, mas acima de tudo mergulhar junto ao presente, para valorar e dignificar aquilo que ele é, aquilo que ele foi e aquilo que ele construiu e transformou em sua vida. A sua própria vida.

 

 

Dentre todas as mensagens mais imediatas e leituras mais externas que essa obra pode nos oferecer, convido-os a tentar mergulhar em outras, em nos aprofundarmos pelo mar que não apenas arrasta, mas também fertiliza, espalha e sustenta a nossa possibilidade de sobrevivência. É trágico que não possamos permanecer junto a ela, mas também temos a função insubstituível de propagar os nutrientes que recebemos para que outros os recebam. Permanecer por um instante junto à teimosia ao edificar as bases para os próximos, as quais são as bases para nós mesmos, no presente. Mesmo que essa sustentação seja aquilo que devemos abandonar, para que um dia, quando formos abandonados, por nossa vez, pela própria sustentação, possamos nos dissolver em paz, ou seja, quando a morte nos abraçar e nos usar para transformar a si mesma em uma coisa outra, em uma memória universal que só pode ser lembrada caso seja esquecida.

Hiperlink em que continuo o debate sobre esse incrível OVA ^^

 

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