Bom dia!

O Golem mentiu nesse episódio, e esse foi o acontecimento mais importante desse capítulo da história da jornada dele e Somali, e quiçá o mais importante até agora de toda a história.

É inesperado que um golem, uma criatura quase robótica, minta, mas é longe de ser inédito. Com efeito, ele vem mentindo desde o primeiro episódio. Mas dessa vez foi diferente.

Qual é a mentira de sempre do Golem? A natureza de Somali.

Desde que a abrigou, a disfarçou e partiu em jornada com Somali, o Golem vem escondendo que ela é humana. Ele apenas omite na maior parte do tempo, evitando o assunto, mas quando necessário ele mente de forma direta.

Essa é uma mentira por uma razão lógica: se as feras descobrirem que Somali é humana, a segurança dela estará em risco. Até certo ponto o Golem é capaz de protegê-la, mas melhor do que proteger usando força bruta é proteger com uma pequena mentira branca para garantir a tranquilidade da viagem.

É uma escolha lógica.

E estou destacando isso porque, repetindo a mim mesmo, dessa vez foi diferente.

 

Muthrika guia Somali e Kikila pelo subterrâneo do Buraco de Formiga

 

Somali estava com Kikila no subterrâneo da cidade Buraco de Formiga procurando pela flor lendária que lhe permitiria realizar um desejo, qualquer desejo.

A força do rumor sobre a flor que realiza desejos é tão grande quanto os riscos envolvidos em obtê-la. À rigor, ninguém deveria descer aos subterrâneos por motivo tão frívolo, muito menos crianças desacompanhadas.

E o subterrâneo provou que é mesmo um lugar mortífero. Somali teria morrido se Muthrika não tivesse seguido as crianças. E aquilo ainda não era nada, o guardião do subterrâneo garantiu: para obter a flor teriam de enfrentar risco muito maior, razão pela qual deveriam desistir.

Mas Somali não iria desistir.

Na cabeça de criança dela, aquela talvez seja sua última chance para ficar para sempre ao lado do Golem. Não ficar com ele ou morrer não lhe parecem alternativas tão diferentes assim, embora ela provavelmente não tenha noção do que seja a morte ainda.

Restou ao guardião resignar-se e proteger as crianças na perigosa jornada em busca da flor do desejo.

Com mais alguns sustos e mais demonstrações de coragem de Somali, eles voltam com a flor. Não que o Golem se importe. Já escureceu, Somali demorou muito mais do que haviam combinado, e ele não diz isso, mas ficou preocupado.

E aí vem o problema de comunicação. O Golem diz que se a Somali não o obedecer eles não poderão continuar viagem. O que ele queria dizer é que a jornada se tornará cada vez mais perigosa e ele não poderá garantir a segurança de uma Somali imprevisível, portanto acabariam tendo que desistir. O que a Somali entendeu é que ele vai continuar viajando sem ela – exatamente aquilo que ela não queria.

 

O Golem pergunta a Somali porque o desobedeceu

 

Somali desobedeceu ao Golem, que ficou preocupado e frustrado, e agora todos estão infelizes.

A lógica do Golem não funciona para uma criança. Por que ela o desobedeceu? Uma vez que ela agiu errado, tudo o que vier por consequência será também errado. Fins não justificam meios. É fácil entender a lógica do Golem. Fácil para nós, que não somos crianças, entendemos lógica, certo e errado.

Crianças não entendem o que é certo e errado. A Somali com certeza sabia que estava desobedecendo e que isso era ruim, mas uma vez que ela volte de todo modo ela não consegue entender porque o Golem ficaria irritado, como pareceu ter ficado.

Provavelmente essa é a parte mais difícil de criar uma criança: conseguir entendimento mútuo com alguém que não está fisicamente preparado para compreender conceitos fundamentais sob os quais uma pessoa opera.

Tudo ficou bem quando os dois têm uma conversa franca – na medida do possível dadas as limitações cognitivas ali presentes. Um atalho de enredo é usado, na forma da doença súbita da criança que obrigou o adulto a descer de sua alta posição moral e apenas atender às necessidades vitais daquela criatura frágil que está sob sua tutela.

Sentindo-se melhor da doença, e sentindo-se protegida mais uma vez pelo Golem, Somali aproveita para pedir desculpas por ter desobedecido. O Golem também aproveita para pedir desculpas por não ter dado a ela a atenção devida e deixado que se sentisse insegura.

As desculpas não são a mesma coisa para os dois. De novo, uma criança não tem noção de certo e errado. Somali não está arrependida. Ela só está assustada, com medo que o Golem que ela tanto ama a abandone, e aprendeu que pedir desculpas nessas situações faz o adulto a perdoar e esquecer que estava bravo com ela até então.

Somali não está sendo desonesta, está apenas sendo uma criança. Está insegura, sim, e por conta dessa insegurança ela pede desculpas. O Golem agora sabe que ela está se sentindo insegura, e por isso pediu desculpas. Ele sabe que a culpa é dele. Ele sabe que ele errou. As desculpas dele, sim, vem de seu arrependimento.

Ao pedir desculpas por fazer Somali insegura, o Golem disse, com outras palavras, que ela não tinha porque se sentir insegura. Era tudo o que Somali queria ouvir, e então ela confirma, para ter certeza, escutando as palavras exatas:

 

"— Pai, você promete ficar para sempre comigo?"

 

— Pai, você promete ficar para sempre comigo?

E então o Golem mentiu.

Não foi uma mentira por razões lógicas.

O Golem mentiu porque se sentiu transbordando de emoções.

 

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