Confesso que resenhar esse anime foi um desafio. Não estou motivado e a amplitude de interpretação da obra é grande mais. Por isso já antecipadamente me desculpo por não dar conta de desenvolver uma análise satisfatória.

Posso considerar, com uma certa justeza, que artisticamente Kaijuu no Kodomo é lindo, ao ponto de ser uma blasfêmia visual, no bom sentido. Para comentá-lo, igualmente, terei de ser um herege cultural, no mal sentido, pois não estou à altura de qualificar e significar em resenha o conteúdo que absorvi como expectador.

 

 

Destaco que compreendo esse filme em pelo menos dois ângulos complementares de leitura, o poético e o prosaico. Dentre ambos, o que melhor ilustra a amplitude artística dessa obra, é o poético. Podemos  entender a sua narrativa como um desdobramento de versos, estrofes e rimas, tendo como envergadura a transposição existencial e o conflito das interconexões da forma com a natureza. E penso que, em última instância, ele é um filme de origem, que nos apresenta a gênesis da vida, a transcendência e o nascimento de uma estrela, da luz e gestação constante de um ciclo que se preenche pela relação e pela ausência de fronteiras entre todos os elementos que existem.

Ruka é uma jovem no começa da adolescência que descobre as amarguras da vida. Em conflito com sua mãe, que parece estar, por sua vez, em uma fase particular, depressiva e de muita confusão, dentre a qual se afoga em álcool e se isola ao se distanciar do berço familiar ao qual pertence. Sua filha, ao perceber o mal estar dentro de sua casa, entre seus pais, reflete isso em uma atitude sentimental explosiva, por vezes querendo que a dor e o incômodo se dissolvam. Não é à toa que sente rancor, repulsa e desconta isso em qualquer um que esteja a sua volta.

 

 

Mas Ruka não é o ponto central dessa obra, muito menos esse conflito de feridas familiares e rusgas entre colegas de classe que machucam uns aos outros. Aliás, os conflitos de Ruka não são assim tão impactantes ou dramáticos, muito pelo contrário, é um período conturbado, e apenas isso. Ela se fixa em suas nostálgicas lembranças e busca junto a presença do pai algum porto seguro.

Sem querer, ao procurar o pai no trabalho, ela se depara com Umi, um garoto misterioso, que nunca deixa ou deixará de ser misterioso. Ele tem sensibilidade a luz solar e não pode deixar que sua pele fique seca e, literalmente, mora no parque aquático, que também é um laboratório de pesquisa marinha. Umi é um garoto o qual ninguém conhece a origem, o que se sabe apenas é que ele, e seu irmão, Sora, foram encontrados vivendo no mar junto a Duogongs, um mamífero parente do peixe-boi.

 

 

Sora, assim como Umi, apresenta uma constituição física diferenciada. Ambos podem, ao que o filme dá a entender, respirar debaixo da água, ou mesmo sobreviver de modo autônomo no mar.

Eles se inserem na sociedade e aprendem a se comunicar com as pessoas, descobrem, por assim dizer, a humanidade, mas nunca deixam de ser seres sensitivos e profundamente conectados com o oceano.

Aos poucos o anime se desdobra em nos apresentar a emergência de um evento cósmico único, chamado de festival, ou Hitodama, ao qual os dois estão não apenas conectados, mas são agentes insubstituíveis em sua realização.

 

 

Os seres marinhos, sensíveis a esse evento, começam a se comportar de modo peculiar, e os biólogos, amparados também por forças militares, investigam esse acontecimento no decorrer do filme. Essa parte, dentre outras que não tem implicação direta com um debate existencial ou ante a uma complexa e enevoada relação entre os três jovens protagonistas, acaba por ser complicada de entender, e na verdade, tenho que assistir ao filme novamente para que possa aprofundar o significado por detrás das ações desses personagens no âmbito político.

Também não deixa de ser confuso uma cena onde, já ao fim do filme, uma quantia absurda de dinheiro é encontrada junto a um barco, que se não me engano, pertencia a Jim, um dos biólogos que acompanhamos, ele e a senhora do mar Dedé, são personagens centrais e muito enigmáticos, que em diversos momentos do anime, acabam por guiar ou exemplificar, não necessariamente esclarecer, os mistérios que circundam o evento cósmico que se desdobrará no filme.

 

 

Os papeis de Sora, ou mesmo de Umi, acabam por serem metafóricos. Não sabemos ao certo nem quem eles são, nem o que eles representam. Aposto que o mangá, no qual o filme se baseia, pode oferecer maiores respostas. O mesmo acaba acontecendo em relação a diversas posturas efetuadas pelos pesquisadores e biólogos, com destaque para Jim, um senhor com muitas tatuagens, que efetiva o diálogo e a ponte para com os militares, e Anglade, que está sempre em campo, pesquisando e coletando dados, junto com Dedé, em relação ao evento que se apresentará.

 

 

Como relatei no início do artigo, é um anime que apresenta uma poética e uma abordagem existencial por excelência, sendo que poeticamente consegue impactar e desenvolver a mensagem derradeira. A Hitodama, assim como um gameta da vida, como um cometa que fertiliza a matéria e cria a vida, atinge, em mais um ciclo, chamado no filme de festival, o planeta terra. Quem recebe essa benção, esse nascimento previsto e a muito esperado, considerado como uma nova explosão de existência, é Umi e Sora, ou seja, o céu e o oceano. Ambos são elementais antropomorfizados, que representam a alma desses dois fatores ontológicos centrais para que a vida floresça.

Sora, o céu, se dissolve entre as águas, as oxigena, lhe oferece o combustível que alimenta os fluidos da vida. Umi, o oceano, posteriormente, e ao receber a semente da vida, age como uma ignição, catalisa o nascimento do ecossistema, também, por sua vez, se dissolve em cosmos e energia.

 

 

Ruka, por sua vez, compartilha com eles, por ser um ser vivo, os elementos que os constituem, e através de sua solidão, brilha e atrai para si as luzes primordiais dos dois irmãos, que para além de desejarem se conectarem com ela, aplacar sua solidão e interagir como humanos, acabam entendendo que ela também faz parte do mistério da vida, da existência, e que está conectada com o ciclo e com o festival.

Ela representa ali o papel da consciência, do observador e do efêmero útero que protege os elementos primordiais, principalmente sendo o recipiente que os abriga após a sua necessária dissolução na existência. A consciência, Ruka, é uma convidada, uma representante e um estandarte da memória, aquela que em si mesma carregará os eventos que preenchem o cosmos de vida e sentido.

 

 

De modo prosaico, entretanto e para além do poético, temos os conflitos familiares de Ruka sendo resolvidos, uma reconciliação de seu pai e de sua mãe, que recomeçam e reaprendem o amor que uma vez já sentiram, e o nascimento de uma nova vida, que no caso é literalmente a irmã de Ruka.

O mistério existencial que reveste os momentos centrais do filme, acaba por se apresentar como um processo visual, pontuado por uma filosofia intensa e de densidade indescritível, a qual pode, por vezes, ser entendida como incompreensível, inacessível ou intangível, que apenas tempera uma história que não tem real resposta outra que o processo, seja ele visual, seja ele narrativo, de uma poesia que nos apresenta o canto das baleias, a existência e sua imensidão inesgotável.

 

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