Antes de começar o artigo gostaria de relatar algo que me intriga. Já perdi a conta de quantas resenhas com personagens que não possuem nome nenhum eu desenvolvi aqui nessa seção especial de filmes e OVAs de domingo. E adivinhem, esse é mais um que entra pra coleção.

 

 

Nesse adorável e intrigante OVA chamado de Mitsuami no Kamisama, acompanhamos a singela história de uma jovem de cabelos trançados. Não sei ao certo a idade da garota, mas chuto que seja menor de idade, na faixa dos 15 anos.

A história tem duas narrativas paralelas, uma é a visual, onde somos apresentados pela travessia junto ao cotidiano da jovem, as pessoas com quem ela se relaciona, que no caso é só o garoto mesmo, e o modo como leva a sua vida. Presenciamos o toque de maturidade, coragem e mesmo resignação em todas as suas ações.

A segunda narrativa nos é apresentada pelos objetos do cenário, ou seja, em alguns momentos a caixa de correios fala algumas palavras que nos indicam o que está acontecendo ali, em outro é o guarda-chuva, ou a almofada, a escova e a paste de dentes. São todos personagens vivos, literalmente vivos, como podemos presenciar ao ver os pregadores de roupa entrarem em guerra uns com os outros.

 

 

Todos os seres não humanos, materiais, nesse OVA são vivos, mas ao que tudo indica, eles só podem se comunicar entre eles, e não com os humanos que estão ao seu redor. Podemos entender que a garota, em sua solidão absoluta, em seu luto pela perda de todos as pessoas que ama, pelo trauma da tragédia sofrida, que no caso foi a de um terrível terremoto que devastou a sociedade. Levaram ela a imaginar, ou mesmo a dar vida, a tudo o que a circunda. Embora os objetos estejam vivos mesmo quando ela não está presente, a vida que eles possuem representa a morte e a ausência de outros seres humanos na história.

Por outro lado, temos os misteriosos médicos que visitam periodicamente a garota. Monitorando o seu bem estar, a sua saúde e lhe trazendo os mantimentos necessários para a sua subsistência. É uma relação fria e impessoal, mas é um cuidar, o único que ela possui em sua vida.

 

 

Os eventos que engrandecem a obra são, para além do contato tímido, mas destemido do rapaz com a nossa protagonista, é o desvelo da situação em que ambos se encontram. O rapaz em questão parece estar preso a uma rotina desnecessária, mas que lhe preenche com significado, de entregar cartas para pessoas que não existem. Tirando a garota de tranças, que existe, e para quem ele hesita, mas se esforça, para entregar uma carta.

O que a carta diz, quais as suas palavras para a moça? Só podemos imaginar. Ele não tem uma relação de proximidade com a equipe médica, vive afastado da planície onde a garota se encontra, em um casebre próximo a um lixão, e aparenta não estar muito bem de saúde.

É revelado por um dos objetos da casa da garota que rádios e a televisão são proibidos. O que nos faz perguntar, o que diabos são esses médicos. Por que informação não é algo permitido a menina? Outra coisa interessante, para além da bela cena onde ambos, o menino e a garota de tranças, descobrem que existe um mundo além, com música e prosperidade, é quando ele resolve resgatar a garota para que possam fugir, enfrentar o mundo e pular o muro que os prende e distância do mundo exterior.

 

 

Entretanto, muitos enigmas ficam no ar. Quem é a garota outra, a que perdeu um de seus braços, que o garoto vem a encontrar quando colapsa e é levado ao laboratório dos médicos. Quem são esses médicos, que não parecem desejar prende, obrigar ou mesmo fazer qualquer tipo de mal a ninguém. Mesmo embora o lugar seja uma fortaleza e uma prisão, não existe segurança ou qualquer coisa que impeça que as pessoas circulem, mesmo o garoto facilmente transita por onde quer que deseje.

E o mistério mais contundente de todos. Por que as pessoas se predispõem a cederem as suas vidas, os seus órgãos e membros, o seu corpo como um todo, para serem desmontadas? Elas aceitam, festejam a despedida e cumprem com a normalidade dessa situação. Apenas o garoto tenta fugir disso, fugir para um mundo outro que vemos brevemente na tv que ele encontra em um momento do OVA.

 

 

Realmente, é uma obra intrigante, muito intrigante. A decisão final da garota de tranças é permanecer na nostalgia, no passado e no presente, relegando o seu futuro ao acaso e a qualquer coisa que venha a lhe acontecer. Ela decide não fugir, não sair de seu conforto, de suas memórias e de sua nostalgia. Ela não abandona a felicidade que nem sabemos se ela realmente tem, mas escolhe permanecer no mundo ao qual pertence, circundada por todos os objetos e por toda uma circunstancialidade não completamente esclarecida a nós.

Ao fim o que posso dizer, para além de todas essas indagações que o OVA me causou, é que adoro esse tipo de animação instigante e desprovida de conclusão, que levanta de modo tão natural um grau tão elevado de questionamentos que parece até que não levanta questionamento algum. Fico aqui matutando sem rumo por entre essa teia adorável em que esse OVA me arremessou. E que venha o próximo.

 

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