Uma das principais funções da ficção é retratar a realidade na qual seu autor vive, para assim demonstrar ao público quais são as visões e opiniões do escritor sobre um determinado tema. É devido a esse aspecto em particular que um dos temas mais explorados na ficção é o “Coming of Age”, pois quase tão inevitável quanto a morte é o amadurecimento físico e psicológico de um indivíduo.

No mundo dos animes e mangás histórias sobre amadurecimento vêm aos montes e em vários formatos. Algumas são bem diretas sobre o tema que querem trabalhar como Solanin, enquanto outras o apresentam das formas mais distintas e peculiares possíveis, um bom exemplo desse caso seria o anime Fooly Cooly (FLCL). Mas dentre todas essas obras, uma cujas explorações desse tema são particularmente fascinantes é o mangá Beastars.

No mundo de Beastars os carnívoros são doutrinados a sempre se restringirem de toda forma possível para não representarem perigo aos herbívoros. Legosi leva isso muito a sério, ao ponto de basicamente negar qualquer característica básica de sua espécie, sua postura é curvada para aparentar ser mais baixo, suas unhas são cortadas toda manhã e sua grande força nunca é usada para seu próprio interesse. Legosi essencialmente vive nas sombras, buscando a total ausência de destaque para nunca prejudicar ou assustar alguém.

Logo no começo do mangá o status quo da vida de Legosi é quebrado por seu encontro com a coelha Haru. No momento em que sente seu cheiro ele desesperadamente parte para cima da fêmea e por pouco não a devora. Com o passar do tempo, o grande lobo cinzento e a coelha se encontram novamente e começam a construir uma relação de amizade.

O contato com Haru provoca uma série de mudanças em Legosi. Com o tempo o protagonista percebe que não só se deixou controlar por seus instintos predatórios, mas que esses estão se mesclando aos seus impulsos sexuais, e que por consequência não sabe se ama Haru como uma mulher ou como uma presa. A partir desses acontecimentos, nosso protagonista passa a ter uma postura bem mais crítica com o mundo a sua volta e consigo.

 

 

A sociedade é um ponto crucial no roteiro de Beastars, na obra a civilização formada por animais antropomórficos é caracterizada por ser formada a partir da completa hipocrisia. Carnívoros são doutrinados a não aderirem aos seus instintos naturais e assim viverem pacificamente com os herbívoros, porém, é fato que todos os carnívoros adultos consomem ou já consumiram carne. E devido a esse e outros dogmas os dois lados do conflito acabam por ser prejudicados.

Os herbívoros vivem com medo dos carnívoros e esses não só têm toda demonstração de sua cultura vista com maus olhos, pois grande parte da sociedade os enxerga como monstros, como também por terem uma necessidade biológica negada. Eles são obrigados a recorrer a métodos ilegais para consumir carne, que variam desde comprar bifes no mercado negro até assassinato. Dito isso, não é de se estranhar que os arcos dos personagens girem em torno da forma como estes reagem a seus rótulos sociais.

Esse aspecto da obra se encontra mais presente quando examinamos a trajetória do protagonista e a de seu principal contraponto moral, o cervo Louis. Enquanto Legosi tenta ao máximo rejeitar seu lado carnívoro, Louis, por outro lado, odeia sua própria natureza por motivos opostos, por ter sido criado como um pedaço de carne que um dia indubitavelmente iria parar no estômago de um carnívoro.

Louis abomina sua falta de força e tenta compensá-la com uma atitude arrogante e enorme proficiência em todas as suas atividades escolares, dos estudos ao teatro. Porém, ele precisa encarar a realidade de que seu físico nunca irá deixar de ser uma limitação.

A ironia do arco narrativo de Louis na primeira saga do mangá é justamente como ele tenta, e de certa forma consegue, compensar sua musculatura frágil com uma arma de fogo, mas acaba fracassando devido às ordens do prefeito, sendo incapaz de salvar a mulher que ama devido ao estigma social alimentado por uma sociedade cujo topo ele sempre almejou alcançar.

 

 

Ao renegar todas as normas sociais e todo bom-senso para salvar Haru, Legosi acaba em uma situação um tanto paradoxal. Para vencer os leões da Shishigumi, Legosi abraça seu lado carnívoro e inclusive derrota o chefe da gangue com suas presas, se permitindo entrar em contato com sangue e sua própria selvageria pela primeira vez.

Legosi essencialmente faz tudo que a sociedade abomina, inclusive indo na contramão das decisões do prefeito que, por mais que soassem mesquinhas, tinham a clara função de preservar a paz. Porém, ao invés de ser advertido, Legosi é visto como um herói, tanto por Haru quanto pelos cidadãos, pois mais valiosas que as regras que ele quebrou foram os nobres motivos que o levaram a salvar uma vida.

Ao ver as decisões de seu rival, Louis toma uma decisão, determinado a pôr um fim em tudo ele assassina o líder da Shishigumi , só que ao invés de acabar no estômago dos leões, esses acabam por escolher o jovem cervo para assumir a liderança da facção.

Enquanto Legosi se esforçava para proteger as pessoas que ama e preservar a paz na sociedade, Louis trabalhava nas sombras, presenciando o lado mais horrível do seu mundo e se esforçando para construir um novo império a partir dos cadáveres de seus semelhantes.

Com o decorrer do mangá, Legosi inicia um árduo regime de treinamento para trazer o assassino de seu amigo Tem, a justiça. Esse treinamento tem duas funções, narrativamente cumpre o papel de justificar o aumento na força do protagonista, já tematicamente ele é mais uma forma para que o lobo cinzento negue sua natureza, ao aumentar sua repulsa por carne, o que, como efeito colateral, diminui drasticamente a força de suas mandíbulas.

Enquanto isso, Louis, como novo líder da Shishigumi, acaba por presenciar os piores lados da sociedade enquanto continua a imergir cada vez mais dentro das sombras. Depois de meses ao lado da Shishigumi, Louis aprende que não é o único com um passado difícil ao descobrir sobre a vida dos demais membros da gangue e como a sociedade também os forçou a lidar com rótulos que iam na contramão de seus gostos, mas que sempre seriam parte importante de suas vidas.

O leão Ibuki em particular o mostrou o quanto os carnívoros também sofriam com as pressões sociais e, mesmo com essas dificuldades, ainda continuavam a viver da melhor maneira que conseguiam — fazendo uso de suas garras e presas para se protegeram como uma família, e sempre com um sorriso no rosto.

 

 

No decorrer do mangá fica claro que Legosi e Louis viveram vidas apostas justamente para que aprendessem a mesma lição, porém de formas diferentes, e essa lição está ligada ao amadurecimento pessoal dos dois.

Ambos se viam perturbados pelos rótulos que lhes eram impostos e por isso agiam de maneira oposta a como a sociedade estipulava, ambos tiveram seus arcos impulsionados pela mesma presença feminina, Haru, e também passaram a se aceitar por meio da compaixão. No caso do Legosi, essa compaixão foi algo que ele deu ao assassino, Riz, o urso, após alguns confrontos.

O protagonista percebeu que Riz não era o monstro que ele imaginava, mas sim alguém que, assim como ele, sofreu uma grande pressão social devido a sua biologia e abraçou seus instintos predatórios não por pura psicopatia, mas por um longo e doloroso processo que o levou a um caso severo de depressão e até a dependência química em um certo nível.

Riz via Tem, como seu único amigo, alguém com quem ele finalmente poderia se abrir. Para o grande urso a amizade de Tem era mais doce que qualquer mel, e mais importante, pois fazia com que esse acreditasse que não era de fato um monstro. Por conta dessa amizade, Riz para de tomar as pílulas que o governo dava a todos os ursos para que controlassem suas forças, e foi essa falta de controle que fez com que Tem entrasse em pânico e terminasse morto pelas mãos do amigo.

 

 

Riz é a sombra que Legosi precisa derrotar para enterrar tudo que odeia sobre si mesmo, enquanto Ibuki é a figura paterna e o amigo que Louis sempre precisou. É bem apropriado que a conclusão para os protagonistas seja atrelada ao destino desses personagens.

Durante o confronto com Riz, Legosi é motivado de todas as maneiras a odiar seu algoz, porém, em meio aos socos e as mordidas, ele acaba desenvolvendo certa simpatia pelo inimigo. Legosi logo admite que seu ódio por Riz, apesar de justificado, era completamente hipócrita e, ao perceber que seu oponente não era o monstro que ele imaginava, mas sim alguém que como ele sofreu com as pressões da sociedade, o herói tem uma epifania.

Ele percebe que sua existência como um carnívoro não é algo moralmente tão hediondo como ele imaginava, que seus desejos não eram impulsionados por maldade e sim por necessidade e que suas garras e presas não existem para matar e sim para proteger aqueles que ama.

Louis eventualmente também chega a sua própria epifania. As relações que formou com diversos carnívoros finalmente o convenceram de que sua falta de força não é um demérito e nem o que de mais importante irá definir sua vida. Louis vai ao encontro de Legosi e ao ver seu amigo no chão, derrotado, lhe oferece sua carne para que o protagonista recupere suas forças.

No momento mais importante de todo mangá os dois personagens principais finalmente entram em bons termos com suas naturezas, ao agirem como um predador e uma presa de forma deliberada pela primeira vez em suas vidas.

Esse ato não só é um marco na relação entre os dois personagens, mas também exemplifica o ponto máximo de entendimento em empatia na sociedade de Beastars, um predador e uma presa trabalhando juntos, ambos cientes da natureza do outro, porém, com uma confiança e um desejo em fazer o bem maior que transcende qualquer medo ou instinto.

 

 

Legosi suprimia sua força, mas no fim aceita seu poder. Entretanto, ele continua a negar sua natureza carnívora. Louis odiava seu físico, mas foi por sua obsessão por poder que foi capaz de criar laços verdadeiros. Ambos aceitam e negam suas naturezas para continuar a viver. Ambos são hipócritas e eu creio que essa é uma das melhores formas de contar essa história.

Mesmo com todos seus outros temas, Beastars é primordialmente uma história sobre amadurecimento, por isso que seus personagens iniciam seus arcos narrativos ao repensar e contemplar melhor o valor de seus relacionamentos; sejam esses laços de amizade, laços familiares ou laços amorosos; ao mesmo tempo que repensam e refletem sobre seus papéis no mundo e essas e outras questões são respondidas por meio da hipocrisia.

Negar sua natureza, mas usufruir dela, pregar a paz, mas reconhecer que essa só vem da violência, negar seus valores políticos baseado apenas na pura emoção e assim se manter fiel ao seu coração. Essa é a grande lição de Beastars, que por mais cruel que seja nossa realidade não significa que ela não o é por uma boa razão, mas que nem por isso não podemos ser a melhor versão de nós mesmos, fazer do mundo um lugar melhor enquanto permanecemos fiéis as nossas convicções.

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