Nem sei se essa introdução tem muito sentido, pois já devem ter reconhecido o anime pelo título ou pela sua imagem, certo? Mas quem liga pra sentido ou desperdício de palavras, esse anime nos ensina o valor daquilo que nem sequer percebemos o valor, o valor do silêncio, e acima de tudo, o valor da escuta.

No ensaio desta semana, apresento um anime que não precisa de apresentações. Aliás, leiam antes o ótimo artigo da Tamao-chan aqui linkado, e só depois, se desejarem, leiam esse aqui.

Enfim, sabe como é, se você não conhece esse anime, com certeza já ouviu falar. E novamente peço perdão, não resiste e acabei desenvolvendo a minha versão de um anime já adequadamente resenhado pela Tamao-chan. Devido a isso, resolvi ser mais ensaístico, ou assim espero.

 

 

Primeiramente, peço perdão por errar e não ter afinco ao revisar os artigos anteriores, dá até vergonha quando releio, mas assim como a perfeição é uma utopia, a perfeição é uma tolice. Koe no Katachi é um anime imperfeito, os personagens do anime são imperfeitos, a sociedade e a própria noção de relação humana, implica atrito e não permanência, e o que não permanece, é falho, é transitório e efêmero.

Não sei se lembram de quando não sabiam falar ou andar adequadamente, de quando ler era uma ação impossível, quando quadrados e círculos eram coisas coloridas que faziam barulho quando arremessados. Sim, vocês esqueceram, todos esquecemos, todos nos tornamos em algo que esquece que esqueceu, que aprende para deixar de aprender e reaprende para voltar a ignorância.

 

 

Koe no Katachi conta a história de Shouko e Shouya, duas crianças que possuem atributos muito comuns. Shouko é plena, um ser humano que por acaso não dispõe de um de seus sentidos, ela é surda, pouco e quase nada pode escutar. Digo isso pois ela usa aparelho auditivo, então suponho que existe algum tipo de frequência que sua audição possa captar, a qual é amplificada pelo aparelho. É uma jovem que tenta sempre ser gentil e afetuosa com as pessoas ao redor, que por não conseguir ser uma igual, acaba sempre sendo um peso para as pessoas ao redor, resultando em abandono, e por vezes, agressão por parte dos semelhantes.

Shouko não consegue se comunicar, ou melhor, ela não é ouvida pelas pessoas ao seu redor, é tratada como um diferente, como alguém inacessível e que vive em um universo outro. Quando somos um universo, enxergamos as nossas fronteiras ao presumir semelhanças, características nos universos que nos circundam que nos garantem a compreensão de nós mesmos. Ao mesmo tempo, quando percebemos que existem dissonâncias, universos outros, exploramos os mesmos.

O problema de Shouko é que ela é vista como um ser alienígena, como um universo desagradável que não condiz com a realidade dos indivíduos que junto a ela orbitam. Esses indivíduos, principalmente guiados pelo aventureiro e inocente, apesar de estúpido e sem noção, Shouya, fazem da vida de Shouko um inferno em vida.

 

 

O interessante é que essa segregação, por vezes e sempre tola, leva com que qualquer um que se aproxime de Shouko, que tenha as mesmas cores, seja entendido como anomalia dentro da normatividade real daquele microcosmo escolar. Miyoko, uma garota tão introvertida e gentil quanto Shouko, tenta arduamente compartilhar com ela a humanidade que preenche a ambas, mas é agredida brutalmente pelos demais alunos da sala, com destaque para Naoka, uma garota egoísta e mesquinha que não tolera as características que ofuscam a sua especialidade, pois sim, ela se sente carente de atenção constante, e percebe em Shouko uma ameaça.

Pessoas que desejam calor, confusos seres que agonizam em sua própria decadência.

Shouya, o rapaz que desejava se conectar com aquele misterioso universo desconhecido, não sabia como o fazer, e quando convidado a compartilhar com Shouko a amizade dentre iguais, a repele brutalmente, repetindo o feito como um comportamento alucinado de conexão corrompida e irracional.

 

 

No coração do jovem Shouya, não existia mal, no coração da jovem Naoka, não existia compreensão, ela se sentia ameaçada, ele, seduzido. Entretanto, Shouko, se sentia só, se sentia triste. Shouko sabia que não conseguia se conectar com os demais, mas ela nunca desistiu, ela sempre estava aberta a entender a diferença, isso exatamente por ela mesma ser a diferença. Ela se aceitava como era, mas não era aceita pelos demais, ela aceita os demais, mas por não ser aceita por eles, ela se fechou para si mesma.

Koe no Katachi é uma história que nos apresenta as feridas do coração, as dores, ressentimentos e a ingenuidade que lateja em todos os momentos e em todas as nossas conexões.

O silêncio do sofrimento de Shouko é ensurdecedor, estamos atados a brutalidade da realidade que a pressiona, estamos reféns de nossa própria falta de conhecimento de seu universo, ela é um igual, mas não somos iguais a ela.

 

 

Por outro lado, percebemos o abismo em que adentra Shouya, por mais que ele seja um igual aos demais, suas ações o tornam um alvo, ele substitui a Shouko quando esta não suporta mais o desespero diário do bullying que sofre. Shouya tentou se esquivar de suas responsabilidades como carrasco, mas a única coisa que conseguiu foi transformar-se em vítima da mesma dinâmica que as regras do local, e das relações, impugnavam. Até mesmo Naoka, que por ele sempre nutriu afeto, efetiva em direção a ele a violência daqueles que não suportam a própria fraqueza e o próprio sofrimento. Ela foge para a luz ao utilizá-lo como contraste de miséria e trevas.

Sem amigos, traído e abandonado, finalmente Shouya compreende e adentra o universo que uma vez ele ajudou a pavimentar em relação a Shouko. Seu arrependimento e tamanho, que todos os seus sentimentos de empatia, de redenção, lhe fazem se auto arremessar em uma tortura avassaladora de penitencia. Ele se exclui, se isola, ensurdece a si mesmo, emudece o seu coração em martírio.

Por outro lado, sua admiração por Shouko se intensifica ao extremo. Amor, ou ao menos humanidade, é isso o que pulsa em suas veias.

 

 

Já adulto, ou em direção a essa fase, Shouya, que estava morte em vida, se vê acuado por outros universos, indivíduos, que transladam ao seu redor. Sua mãe, digna e afetuosa, lhe abraça em absoluto, e um jovem solitário e empolgado, Tomohiro, abre caminho em direção a amizade que derrete o gelo da estagnação.

O filme nos conta o processo de amadurecimento de jovens cheios de cicatrizes e temores, inseguranças que os guiam à deriva dentre o oceano de sentimentos e peculiaridades, a consolidação da identidade de cada um depende em muito de todos ao seu redor.

Shouya encontra Yuzuro em sua jornada de penitência e reconciliação, Yuzuro é a irmã mais nova de Shouko, à qual também está em uma situação limítrofe de agonia dentre as correntes da sociedade e suas instituições repletas de indivíduos em fase de efervescência e depredação, que vandalizam uns aos outros para descobrir o que são e o que é essa tal entendida realidade da qual fazem parte.

 

 

Yuzuro protege a irmã dos tormentos, pois não apenas soube de sua jornada, como está em uma jornada de igual tormento. A sua mãe e avó zelam por elas, mas se veem impotentes frente ao mundo que lhes soterra. Cabe a elas, com as próprias mãos, romper as barreiras que lhes sufocam e mutilam.

Nesse intrincado e delicado processo de crescimento, temos outros personagens centrais, como Kawai, uma jovem passiva que seguiu o fluxo e negligenciou os maus tratos em relação aos amigos, fechando os olhos e até mesmo cooperando em manter a situação como tal. Uma jovem covarde e esquiva que finge não ter nada a ver com a situação de sofrimento que despenca sobre as pessoas ao seu redor.

Temos Satoshi, um rapaz, neutro e que busca o equilíbrio e a felicidade das pessoas ao seu redor, como Kawai, sua namorada, e Shouya, rapaz pelo qual tem apreço e com o qual realmente se importa.

 

 

E o não menos importante, mas o mais perdido em completo da história, Kazuki, o ex melhor amigo e cúmplice de todas as coisas que o jovem Shouya concretizou.

Kazuki é a expressão do caos, um jovem que usa de ações vis para satisfazer o fato de que se sente completamente deslocado em relação ao ambiente em que se encontra. Ele não consegue nem mesmo encontrar uma real saída para a confusão, utilizando da plena violência e desdém, para se efetivar como alguém minimamente vivo, mas que apodrece internamente sem conseguir sentir a humanidade que lhe escapa.

O filme guia o espectador pelas cores e borrões de corações juvenis, de universos que não conseguem se fazer ouvir, ou que não conseguem expressar adequadamente as fragilidades que estruturam os seus sentimentos.

 

 

Shouko ama, Shouya floresce, Naoka abranda, Yuzuro acredita, Tomohiro acompanha, Miyoko acolhe, Satoshi persevera, Kawai compreende, Kazuki colapsa. Os jovens iluminam os caminhos de todos, juntos, como estrelas ao céu.

Destaque especial para Miyako, a mãe de Shouya, que se livra das posses materiais e toca fogo em mais de 80 mil reais! Para a avó e mãe de Shouko e Yuzuro, que tem uma fibra invejável e para o professor inútil que não consegue intervir e ensinar os jovens a serem respeitosos e a se conectarem uns com os outros.

É sempre fácil “apontar dedos”, mas fica a pergunta, conseguem escutar o silêncio? Conseguem calar a si mesmos para ouvir o silêncio de seu próprio coração?

 

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