The Heike Story (Heike Monogatari) é um anime do estúdio Science SARU (Devilman: Crybaby, Yoru wa Mijikashi Arukeyo Otome, Eizouken ni wa Te wo Dasu na!) dirigido por Naoko Yamada (K-On!, Koe no Katachi, Liz to Aoi Tori) e protagonizado por Aoi Yuuki (ao invés de listar os animes que ela fez aqui, só digo que é uma das atrizes de voz mais talentosas do mundo).

O anime pertence ao bloco +Ultra, mas tem sua exibição por streaming antecipada na Funimation essa temporada (na TV japonesa só em 2022).

 

“Na história acompanhamos Biwa, uma musicista cega que viaja tocando seu instrumento e consegue enxergar o futuro. A história começa quando Biwa cruza caminho com Shigemori, um dos patriarcas do clã Taiga, e o avisa do futuro trágico de seu clã.”

 

Antes de comentar a estreia preciso contextualizar algumas coisas sobre o anime. Tanto Heike, quanto Inu-Oh (filme dirigido por Masaaki Yuasa, um dos fundadores do estúdio Science SARU) são baseados em uma série de livros (o Heike Monogatari) escrita por Hideo Furukawa e baseada no conto de mesmo nome do século 14, cuja autoria é desconhecida. Contudo, são partes diferentes da mesma história. Fica aí a curiosidade.

O Heike Monogatari conta a história de um dos pontos de vista sobre o final do Período Heian da história japonesa. Nessa época ocorreu a Guerra Genpei entre os clãs Taira e Minamoto (também conhecidos como Genji e Heike, respectivamente), que culminou na vitória do clã Heike e o estabelecimento do primeiro xogunato no Japão, o Kamakura. O pano de fundo é histórico, ainda que a heroína seja fictícia…

Com isso dito, trato do primeiro elemento notável da produção, sua animação, a qual você pode até considerar feia em uma olhada desatenta, mas rapidamente nota a intenção por trás da escolha técnica. O Science SARU não é conhecido por animações medíocres na acepção artística da palavra e Heike é justamente isso, uma tentativa de entregar animação fluída com muito estilo, algo que combinou com o tema da história.

Tire pela face do pai da heroína, que apresenta uma expressão sofrida tendo como base uma fisionomia que ao mesmo tempo em que não é exatamente verossímil, ainda assim se aproxima mais do real do que qualquer outra coisa que a indústria costuma fazer nos dias de hoje. É um pouco o caso da polêmica animação de Devilman Crybaby, mas com menos liberdades criativas e mais características particulares a obra.

Enfim, se não vou a fundo em meus comentários sobre animação é por pura falta de apuro técnico mesmo, peço desculpas por isso, então tudo bem se eu der um giro de 360º e elogiar o trecho inicial que seria devastador não fosse mal conhecermos os personagens? Imagina perder o pai porque você se rebelou contra uma injustiça que se desenrolava a sua frente? Não é uma pancada forte demais para uma criança?

É isso que a heroína é, uma criança. E ainda por cima uma mulher. Não que ser mulher seja algo exatamente ruim, mas na época e no país em que ela nasceu com certeza era. Sabendo disso o pai a vestia e tratava como homem, uma decisão certamente dura, mas válida dado o contexto desfavorável em que eles viviam. Será que se o pai fosse alguém de posses teria morrido pela mínima declaração de incômodo de sua filha?

Eu não sei, mas acredito que sim. A única certeza que tenho é da brutalidade da cena e do acerto da direção em começar o anime por ali, pois em poucos minutos foi possível entender o que a garota passou, o contexto de repressão que assolava o país e a clara inclinação da história para o drama. Ainda que posteriormente elementos cômicos tenham sido adicionados ao enredo, não há para onde correr com essa sinopse.

O trecho inicial foi simplesmente excelente, mas não é como se eu tivesse achado tudo perfeito também. Por exemplo, tem uma cena em que o chefe do clã conversa com o Shigemori e a trilha sonora se anima de uma forma incompatível com o momento. Acho até que compreendi a intenção da direção de som, mas não deu liga. Diferente das tiradas cômicas que vão sendo distribuídas de maneira mais orgânica pelo episódio.

Enfim, eu diria que a estreia seria clichê se a Biwa tivesse demonstrado desejo de vingança pelo que fizeram ao pai dela no governo da família do Shigemori, mas seria leviano da minha parte me prender a isso, né? A cena em que ela e ele se conhecem e compartilham seus fardos carrega muito mais tristeza e beleza do que sentimentos transmitidos de forma definitiva. Além de se tratar de uma criança indefesa, inocente…

Não ter notado a roubada em que meteu o pai foi um total sinal do óbvio. Mas claro, ela aprendeu da pior forma possível, na base do sofrimento, coisa que se reflete em seu receio ao ser convidada a ficar na casa do “amigo”. Ainda assim ela cede, vai cedendo, precisa ceder. Crianças são talvez a única unanimidade na sociedade, precisam ser protegidas e respeitadas. Mas claro, como toda unanimidade, há exceções.

Não foi o caso dos militares que mataram o pai dela, nem do Shigemori, que a estendeu a mão, isso é fato, ainda que tenha demonstrado fascínio pela capacidade de enxergar o futuro que ela demonstrou. Aliás, eu não entendi isso tão bem (olha eu vacilando de novo), mas ele tem uma habilidade da mesma natureza que a dela, a diferença é que ele só consegue ver os mortos, ela vê mais, vê além e vivencia essas mortes.

E é aí que surgiu uma conexão, quase uma amizade, entre os dois. O Shigemori precisa da Biwa para evitar a queda de seu clã, ela precisa dele para não restar à deriva, ou pior, sofrer com mais violências do que as que já sofreu. Inclusive, quando seu pai é morto, os flashes que se seguem são do passado da garota (talvez de quando a mãe morreu) ou são “spoilers” do fim do clã Taira? É, eu deveria ter revisto antes de vir parar aqui.

Porque, sério, The Heike Story teve uma estreia bem promissora para quem se interessa por animes com uma veia mais artística, um pano de fundo histórico e uma inclinação ao drama sem abandonar a comicidade, que achei bem útil para facilitar nosso afeiçoamento aos personagens, principalmente a heroína. Não que já não seja fácil simpatizar com ela, mas é mais gratificante encarar sua complexidade enquanto indivíduo.

Biwa é uma criança com um backgroud muito difícil, sentimentos conflitantes sobre a morte do pai e sua associação a alguém do clã que a provocou, além de uma artista por vocação. Aí a interpretação e musicalidade da seiyuu, a talentosíssima Aoi Yuuki, fizeram toda a diferença. Dublar, e nesse caso cantar também, não é só emprestar a voz a uma personagem, é dar vida a ela, é desenvolver outra personalidade.

Os melhores atores e atrizes de voz são capazes disso e eu diria que poucas seiyuus fariam tão bem esse trabalho quanto a Aoi Yuuki, ainda que eu ache que a indústria é extremamente bem servida de profissionais talentosos na área. Porque temos que levar em consideração não só a voz da personagem, mas as músicas que ela canta enquanto toca o instrumento que tanto ama e a dá nome. Há muita profundidade nessa criança.

E isso nem é surpreendente, ainda mais no contexto e época em que ela está inserida, é só que queria frisar esse ponto devido a faceta da obra. The Heike Monogatari é um anime sério, não à toa tem pano de fundo histórico, e alguns personagens que podem até ser fictícios (caso da protagonista), mas não destoam ou forçam algo que não pertencia aquela época. Tirando essa história de ver o futuro, ou não, vai saber, né…

Chegando mais perto do final deste artigo, não poderia deixar de elogiar outros acertos do anime, os quais passam muito pelo apuro da direção, mas também se devem ao arrojo da animação, que em vários detalhes conseguiu imprimir seu próprio ritmo e em pouco tempo acostumar o público ao que é visto em tela. Rapidamente me peguei apreciando a animação, principalmente o cuidado que há com os olhos da Biwa.

Seus olhos são o meio pelo qual se expressa, mas também um reflexo do que é o mundo ao seu redor, afinal, é através deles que ela enxerga o futuro, mas também o presente. Além disso, a diferença de cores e funcionalidades dão bem a medida de como os tons da personagem podem e devem variar não só durante o anime, como também em uma perspectiva mais particular, que tem a ver com o crescimento da personagem.

Se ela durar até a vida adulta, se vermos isso no anime, me pergunto como ela estará, e melhor, como lidará com o ônus de sua visão do futuro? Sim, eu sei que se ela não visse o futuro e não contasse ao Shigemori ela não teria onde cair morta, mas está na cara que as coisas não vão ser sempre tão amenas para ela como foi na maior parte desse episódio. Vimos isso na cena dela vendo a irmã do Shigemori morrer afogada.

Esse talvez tenha sido um válido lembrete da seriedade da trama. Ou nem isso, mas do quão duras são as circunstâncias dela, o que gratifica seu riso, a interação com os filhos de seu benfeitor e qualquer outro sinal de uma meninice reprimida. Não sei por quais caminhos a história seguirá a partir daqui, não conheço o material em que se baseia, mas sei que ela é promissora qualquer que seja a direção em que você esteja mirando.

Como últimos adendos, achei sensacional a sequência da qual retirei a foto de capa deste artigo, desde o uso da trilha sonora a escolha de cenas e as interações dos personagens. Outros pontos que valem nota são a construção narrativa sutil, mas bastante pertinente e pontual, da vida da mulher em todas as suas dificuldades (que devem ser esmiuçadas adiante) e os trechos de interlúdio de tom poético, a apresentação da Biwa.

Por fim, Heike é um anime de arte e sei que não é para todo mundo, mas mesmo assim o indico a todos dada a qualidade e originalidade da produção. Gosto de animes comuns, até medíocres na acepção da palavra, mas não é esse o caso aqui e isso é louvável, deve ser valorizado e apreciado. E o artigo demorou, desculpa, mas está entregue. Fique à vontade para compartilhar sua experiência com o anime nos comentários.

Até a próxima!

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